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sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

"Berta Isla" de Javier Marías

 

Citação

"Esse conceito moderno de «crimes de guerra» é ridículo, é estúpido, porque a guerra consiste sobretudo em crimes, em todas as frentes e desde o primeiro até ao último dia."

Voltei à leitura daquele que se tornou ou meu escritor contemporâneo preferido: Javier Marías, do seu penúltimo romance de 2017 "Berta Isla" que também não me desiludiu, até manteve o fascínio e levou ao interesse de leitura de outros dele, sobretudo o seu último publicado antes de morrer, cujo protagonista é o marido de Berta Isla: Tomás Nevinson, que deu título à obra.

Berta apaixonou-se no colégio pelo seu colega Tomás, um jovem sobredotado línguas, imitar pronúncias e com dupla nacionalidade (espanhola e inglesa) com quem iniciam uma relação. Na universidade ele vai para Oxford e ela fica em Madrid, só que Tomás volta diferente, mas casam-se. Ele parece perdido, inquieto e no tem muitas viagens a Londres de que não pode falar e na sequência de um incidente ameaçador descobre que o marido tornou-se agente secreto inglês, por isso terá sempre uma vida oculta e demasiadas ausências. Por amor aceita ser uma mulher em simultâneo casada e sem parceiro, viúva e mãe de órfãos de um pai desaparecido, amada e ignorada. Tudo isto gera um conjunto de reflexões sobre o outro, a sua intimidade e dúvidas sobre as funções do marido situadas no fio da navalha entre o bem e o mal.

Já falei nos anteriores romances que li sobre uma escrita riquíssima de sinónimos e sem pressa deste autor. Em Berta Isla, talvez, haja um menor confronto de vocabulário e as cenas curtas não se estendem por tão grande número de páginas como em O teu rosto Amanhã, ou Amanhã na Batalha pensa em Mim, existem personagens que são retomadas neste romance, todavia as reflexões éticas sobre as questões da realidade e não realidade, da vida e da morte ou existênciais estão igualmente bem desenvolvidas neste livro, tornando-o num Javier Marías puro, mas mais enxuto, sendo que neste há muito que se subentende sem se dizer, um técnica que o escritor domina com uma genialidade única. Gostei muito espero em breve ler mais romances deste que se tornou um escritor fetiche para mim, embora não escreva obras muito fáceis.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

"Ensina-me a voar sobre os telhados" de João Tordo

Citações

"Mas que sei eu sobre Deus? Não sei nada. Se somos feitos à sua imagem, então Deus não deve ser grande coisa ou, se for parecido comigo, é feio como a noite dos trovões."

"Cada um tem o seu deus, a sua maneira de acreditar no infinito."

"O medo impede-nos de acreditar naquilo que o medo nos diz que é impossível."

Voltei à leitura do escritor português contemporâneo, João Tordo que venceu o prémio literário José Saramago, destinado a laurear jovens que escrevem em português. "Ensina-me a voar sobre os telhados" uma narrativa em dois lugares, Lisboa e Japão e atravessa gerações.

No liceu Camões um professor suicida-se e deixa o corpo docente em estado de choque, um deles - ex-alcoólico cujo vício destruíra a sua relação familiar e membro dos alcoólicos-anónimos - decide então organizar um grupo de reflexão do cariz semelhante na escola para exorcizar as tensões desta morte, ali desfilam problemas e ansiedades. Mais tarde, ao abrir-se as reuniões a mais gente, surge um luso-japonês de comportamento estranho e sarcástico, que se aproxima do fundador. Este desenvolve uma relação de proteção ao nipónico que sofre de distúrbios, o que lhe vai gerar novas tensões entre a ânsia de o ajudar e a sua vida pessoal. O romance intercala a história problemática da família Tsukuda no Japão, temperada por abuso de poder, egoísmos e a obsessão de quererem levitar, objetivo que atravessou gerações até ao psicótico Henrique, um comportamento com vítimas e punições que ameaça destruir o professor viciado em ajudar, enquanto reflete sobre a vida real, o papel de deus e a infelicidade das limitações da humanidade e até do demónio.

Tordo tem uma escrita magnífica, poética, cheia de metáforas inovadoras e intercala a narrativa com reflexões sobre a vida contemporânea, os anseios e os receios da humanidade. Nesta obra, além de uma permanente sombra sobre tudo o que move as pessoas e as limitações do homem, tecem-se, pontualmente, considerações sobre as angústias das personagens que vão desfilando no romance, que talvez seja extensiva ao demónio representado pelas figuras de Doré, ou até a deus ou aos deuses, que estão limitados pela incapacidade de se libertarem pela morte.

Gostei muito de voltar a João Tordo e se no anterior livro iniciei com perspetivas muito elevadas não superadas, neste foram as minhas perspetivas ultrapassadas, em comum há uma certa angústia existencialista, mas considero "Ensina-me a voar sobre os telhados" um excelente romance que nos faz pensar sem impor nenhuma resposta. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

"Arsène Lupin - A Agulha Oca" de Maurice Leblanc

 

Acabei de ler o romance policial, escrito no início do século XX, "Arsène Lupen - A Agulha Oca" do francês Maurice Leblanc.

Um assalto ao Castelo de Ambrumésy e intercetado pelos seus moradores, onde tudo aponta que tenham morto um dos assaltantes sem hipótese de fuga, só não conseguem encontrar o corpo, também à partida levaram várias peças volumosas, só não dão pela falta de nada, entretanto foi perdida uma mensagem encriptada e deixada uma ameaça. Isidore Beautrelet, um jovem estudante de mente brilhante, penetra na equipa de investigação e deduz que pelas características inverosímeis da situação que se está perante uma operação do grande ladrão e cavalheiro Arsène Lupin, um mestre em disfarce e especialista em contaminar a investigação com delicadeza e simpatia ao participar no desenrolar do processo. Esta é uma personagem de vários livros do género que deram origem a séries de televisão e a filmes. Neste, a inteligência do jovem, ao ser a aproveitada pelas autoridades, é um desafio maior para Arsène Lupin que ora o atrai ora lhe prega armadilhas. O jovem apercebe-se que a genialidade do roubo está integrada num esquema  mais vasto que envolve segredos e tesouros nacionais históricos que vão desde imperadores romanos até aos grandes reis absolutistas de França descoberto pelo ladrão, o que lhe dá um grande poder, entrando-se numa investigação surpreendente onde Isidore e Arsène ora cooperam ora organizam embustes de modo a se descobrir uma realidade surpreendente.

Uma curiosidade das obras do escritor prende-se deste gostar de confrontar o seu personagem gaulês com o inglês Sherlock Holmes, este entra nos seus livros com o anagrama Herlock Sholmès a tentar vencer a inteligência superior de Arsène Lupin.

Um livro de suspense e lazer cheio de momentos emocionantes ao estilo das grandes obras populares do género aventuras, com surpresas, tensões e pistas que cativam até um final grandioso e também inesperado.

Uma obra muito fácil de ler, bem escrita, mas sem preocupação de arte literária, feito para entretenimento, entusiasmar o leitor e desafiá-lo com as pistas lançadas na narrativa. Muito bom neste género.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

"O Guarani" de José de Alencar

Citações

"Não se pode viver somente de ódio e desprezo"

"De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso da nossa alma?"

Acabei de ler um dos livros clássicos da literatura brasileira: "O Guarani" de José de Alencar, um romance histórico, escrito em meados do século XIX, cuja a trama se passa no início do século XVII quando Portugal perdera a independência e ficou sob a soberania espanhola, um período em que a fidalguia no Brasil oscilava entre a fidelidade ao antigo reino lusitano ou ao domínio filipino.

António de Mariz, insatisfeito com o domínio filipino, decide isolar-se para o interior da floresta da Serra dos Órgãos com a família e um conjunto de serviçais que defendem e se envolvem na gestão da sua fazenda. Esta situa-se numa zona selvagem com indígenas não convertidos, mas é o seu domínio fiel a Portugal. Num incidente, o índio Peri salva a sua filha Cecília e o fazendeiro agradecido acolhe-o, depois o salvador, por paixão, dedica-se de todo à moça para descontentamento da mãe desta e de sua meia-irmã. Paralelamente, noutro acidente, o ilho Diogo mata uma índia, o que leva a uma ação de ataque revanchista da sua tribo, enquanto um dos guardas de Mariz, ex-monge renegado por ambição de riqueza, também se apaixona por Cecília e decide criar uma revolta para raptar a donzela e levá-la para uma mina de prata que só ele sabe o segredo da localização. No nestes perigos e paixões é Peri, o herói gentio, quem, com o conhecimento de sobrevivência na floresta e dedicação total à jovem, tentará, in-extremis, salvar a família e a jovem lutando o preconceito de uns e o ódio de outros em momentos de grande suspense e surpresa.

Trata-se de uma narrativa tipicamente do século XIX com cariz nacionalista, mas que prenuncia a literatura romântica. As personagens tendem a ser boas de todo ou completamente más, podendo evoluir de um campo ao outro. José de Alencar descreve com grande pormenor, abuso de figuras de estilo e em tom poético a floresta atlântica, os costumes indígenas, a subserviência religiosa e os preconceitos da época e da evangelização. A obra, que li em e-book, tem um conjunto de notas que explicam numerosos aspetos históricos, florísticos, faunísticos e dos costumes dos povos descritos na trama, o que enriquece em muito o conteúdo do texto sem o tornar fastidioso.

A história dá para compreender o contexto de comportamentos, hoje tido por errados, dos colonos de então, vivendo numa sociedade dominada por uma religiosidade exacerbada a enfrentar culturas animistas e representantes de um reino à conquista e em missão de evangelização destes povos pagãos que viviam livres nos seus domínios há séculos, um choque cultural semeado de preconceitos que José de Alencar procura subtilmente denunciar enquanto eleva a dignidade do índio. Todavia o romance também é escrito numa época em que não a de hoje, a sociedade não era ainda tão laica, nem liberta de muitos desses preconceitos, além de regida por uma castidade aguerrida e dominada pelo masculino, sendo evidente o esforço de equilibrar e justificar a crítica perante a moral e ética aceite no século XIX, daí a riqueza cultural desta obra que a transforma num clássico e permite a reflexão sobre o passado. Fácil de ler, gostei e por isso a recomendo a qualquer leitor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"A Informação" de Martin Amis

 

Sabia que o estilo de narrativa de Martin Amis me criava dificuldade de concentração na leitura do texto, este é o terceiro romance do escritor que lia, contudo ando numa fase pessoalmente difícil e onde esforço não é compatível com lazer e prazer e por isso não concluí a leitura da obra, apesar de tudo confesso que nos meus bons momentos teria me divertido com as agruras desta vida contemporânea.

A informação trabalha o ódio entre um escritor que fez 40 anos de idade, que se considera de qualidade, mas que escreve livros que não têm saída devido à dificuldade leitura dos mesmos, e outro amigo pessoal de igual idade que com uma escrita e assuntos banais é um sucesso editorial. Assim o primeiro decide-se vingar sobre o invejado medíocre escritor.

Houve momentos em que me diverti na crítica sarcástica e mordaz da vida urbana dos tempos modernos e frustrações da meia-idade e outros onde não me consegui concentrar para os pormenores. Talvez volte um dia à obra. Por agora uma pausa, mas ainda li até à página 203, um sinal promissor que valeria a pena ler em bons momentos, mas a cultura não precisa de me gerar sofrimento e ansiedade sem a devida compensação de tal também me dar um prazer maior, o que com este livro não estava a conseguir neste momento.

sábado, 22 de outubro de 2022

"As duas Águas do Mar" de Francisco José Viegas

Acabei de ler "As duas Águas do Mar" um romance do escritor português Francisco José Viegas, que há mais de três décadas dá vida aos seus investigadores melancólicos da judiciária: Jaime Ramos, a trabalhar no Porto, e o seu colega e amigo Filipe Castanheira, a exercer as suas funções em Ponta Delgada, o que tem permitido uma descrição única das paisagens, vivências e especificidades  da cidade nortenha e das ilhas dos Açores.
Num local ermo na ilha de São Miguel surge o corpo de uma mulher, chamado ao local, Filipe Castanheira vem a saber depois que a autópsia nada prova de violência ou assassinato, apesar do lugar distante para um turista ir mergulhar no mar sozinho. No mesmo dia, em Finisterra na Galiza, Espanha, um homem é assassinado a tiro na praia e Jaime Ramos é convidado a investigar, apesar de ser alguém cujos serviços de informação assumiram o caso e não se tratar de um assunto da judiciária. Todavia os dois colegas amigos em pouco descobrem que Rita e Rui Pedro eram namorados, será coincidência as duas mortes em simultâneo tão separadas no espaço e unidas pelo mar?
Os romances de Francisco José Viegas são classificados como policiais, na realidade, estes narram vivências melancólicas nos Açores e no Porto dos investigadores por criados pelo escritor, conhecemos as respetivas paixões íntimas, a solidão de cada um e o amor de ambos pela gastronomia e confeção de grandes pratos e são estas as vertentes mais intensas dos seus livros. Pelo meio vão-se desenrolando as investigações dos casos policiais que têm entre mãos ou que lhe levantam dúvidas de se serem de facto crimes camuflados de acidentes.
As duas águas do mar é precisamente este género de obra, com descrições das ilhas de São Miguel, Faial e da Galiza cheias de componentes meteorológicas, confeções de pratos cheios de sabores e odores as que se juntam as mágoas interiores dos protagonistas que temperam a obra, até se descobrir que os seus mortos também foram vítimas de criminosos, gente sofrida de amores, solidão e nostalgia, os mesmos sentimentos norteiam a vida de Jaime Ramos e Castanheira.
Gosto muito destes romances cheios de sentimento e descrições únicas das paisagens e vida dos locais por onde a narrativa vai passando. Fácil de ler e recomendo pela sua originalidade e melancolia.

domingo, 9 de outubro de 2022

"Amanhã na batalha pensa em mim" de Javier Marías

 

Excertos

"ninguém faz nada convencido que é mal feito, acontece apenas que em muitos momentos não podemos ter os outros em conta, ficaríamos paralisados, às vezes não podemos pensar senão em nós mesmos e no instante presente, não no que vem a seguir."

"Há coisas que devemos saber de imediato para não andarmos pelo mundo um único minuto com uma convicção de tal forma errada que o mundo é outro para nós."

Seis meses após a descoberta de Javier Marías, que então era ainda um autor vivo e para mim desconhecido, voltei àquele que considero o maior escritor que se me revelou nos últimos tempos e, entretanto, já falecido. Se tanto me impressionou então o romance em três volumes "O teu rosto amanhã", a minha admiração por este romancista espanhol não diminuiu nada com "Amanhã na batalha pensa em mim", mesmo sendo uma obra de menor envergadura em extensão.

Quando Víctor Francés vai para a cama de Marta, uma recém-conhecida e casada e em casa de quem  fora convidado a jantar, deparou-se com um mal-estar desta que acaba inesperadamente por lhe morrer nos braços. À surpresa inicial, seguem-se as indecisões perante a necessidade de deixar o filho dela em segurança e a conveniência de comunicar o facto ao marido ausente no estrangeiro, a que se junta as comunicações comprometedoras no gravador de mensagem entretanto recebidas. Então o protagonista opta por uma solução de ficar incógnito e se sair silenciosamente, mas as questões pendentes levam-no a aproximar-se da família de Marta e do seu marido, bem como a refletir na sua anterior relação com a ex-mulher e no fim a conhecer consequências imprevistas da sua opção.

Tão importante como os acontecimentos que vão sendo narrados e que fazem fluir a narrativa gota a gota, é a pormenorização dos momentos que se desenrolam no romance, a dissecação  das personagens envolvidas e as reflexões que se vão tecendo e entrelaçando em torno de tudo o que se passa no livro. 

A narrativa de Javier Marías não é para se ler em ritmo acelerado, é para se ir degustando calmamente cada frase, cada pensamento, cada aparte, cada reminiscência da própria obra (não é frequente um autor citar-se a si mesmo e menos ainda fazendo-o com frases e ideias expressas na mesma obra, Javier fê-lo e soube-o fazer no que queria realçar). Por vezes há que reler a densa teia de ideias lançadas ao longo do parágrafo. Não há perigo porque não é uma repetição, há sempre um pormenor e uma perspetiva que brota a cada nova leitura de uma parte do texto.

Tal como em Proust e Faulkner, mas sem qualquer imitação destes, a narrativa de Javier Marías é um fluxo contínuo de ideias, de pormenores dos acontecimentos narrados, de reflexões do momento vivido, de pensamentos dos respetivos efeitos e de justificações de comportamentos reativos do ser humano, expondo as situações e as personagens sobre múltiplos ângulos de visão e de abordagem em que o passado e a memória fundamentam parte do presente e este é condicionado pelas várias possibilidade do futuro por se concretizar. Temas como a vida e morte, presença e ausência, memórias e desejos a concretizar vão montando quadros psicológicos com mais pontos de que muita pintura impressionista.

Nem sempre concordo com todas as deduções e afirmações que vão sendo libertadas ao longo do fluxo narrativo, mas estou certo que nem Javier Marías, ou não haveria lugar a algumas possíveis contradições lançadas à reflexão na obra, mas sublinhar a riqueza de pensamentos colocados nos diferentes parágrafos dos livros deste escritor que já li levava quase a um sublinhado contínuo de todo o texto.

Para mim, há escritores que são reconhecidos devido à atribuição de um prémio Nobel da literatura, há outros que enobreceram o prémio por estarem na lista dos laureados por ele e há aqueles que teriam enobrecido se tivessem recebido este galardão literário no período da vigência deste, neste grupo coloco Tolstoi, Proust e agora, estou convicto também Javier Marías. Este romance foi premiado com outros galardões como Fastenrath, Internacional Rómulo Gallegos e Fémina Étranger.

Gostei mesmo muitíssimo do romance, mas, tal como já antes alertara na outra obra, não é um livro de leitura fluída rápida e fácil devido à densidade e riqueza de conteúdo narrativo, neste caso menos lexical, e, como tal, recomendo-o a leitores maduros na apreciação da beleza da escrita e da riqueza literária e pensamentos do um texto.

sábado, 24 de setembro de 2022

"A dança dos Ossos - Antologia do conto gótico luso-brasileiro" Vários Autores

 

Uma coletânea de 27 contos de teor gótico, 13 de autores lusos e 14 de escritores brasileiros, selecionada por Ricardo Lourenço, que cobrem este género literário desde meados do século XIX até às duas primeiras décadas do XX.

No conjunto existe escritores de grande renome literário como Eça de Queiroz e Machado de Assis, outros conhecidos e alguns de quem nunca ouvira falar, a heterogeneidade de autores também se reflete na diversidade dos contos, alguns quase da dimensão de novela, outros curtos e muitos entre uma a duas dezenas de páginas.

Desde lendas medievais, passando por pseudociências mais atuais, bruxas, espiritismo, até narrativas onde o sobrenatural é apenas fruto da sensação extremada que conduz ao terror ou à suspeita deste, alguns com lições de moral, outros inócuos, a coletânea vale sobretudo pela informação biográfica dos seus autores, do seu papel na história da literatura, da cultura ou da política do seu país e ainda pela amostra do género pouco divulgado em Portugal.

Confesso que alguns contos gostei mesmo muito, outros divertiram-me, nenhum me tirou o sono e também houve alguns (poucos) que nada me disseram, mas valeu a leitura do conjunto "A dança dos ossos" e recomendo a quem se interessa por este tipo de literatura mais negra, que explora medos das pessoas, fenómenos menos claros para a ciência e as crenças e superstições existentes nestas duas sociedades de língua portuguesa. 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

"Homens Bons" de Arturo Pérez-Reverte

 

Citação

"Uma biblioteca não é algo para ler, mas sim uma companhia - disse ele, ... Um remédio e um consolo."

Em pouco tempo regressei a este escritor espanhol: Arturo Pérez-Reverte, agora com uma obra que quando foi traduzida logo quis ler: "Homens Bons", por ser um romance que fala da importância dos livros e de pessoas que lutam pela sobrevivência e propagação de livros. Neste caso, a aquisição, no século XVIII, pela Real Academia Espanhola, da primeira edição da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert, uma coletânea de saberes que é um marco da época das luzes e considerada subversiva pela Inquisição ao dar prioridade à verdade científica e à razão nos seus artigos em detrimento da Bíblia e diretrizes religiosas como era regra até então.

Dois membros da Real Academia Espanhola são nomeados para irem de Madrid a Paris comprar a primeira edição de Enciclopédia Francesa, então o expoente máximo da época das luzes, mas ignoram que outros dois membros, em segredo, um jornalista por conservadorismo doentio e outro filósofo medíocre por inveja do reconhecimento do saber de outros, conspiram para que a viagem não concretize este objetivo. Pedro Zárate e Hermógenes Molina, duas pessoas muito diferentes mas amantes do saber, no meio de dificuldades arrancam na sua atribulada deslocação sem perceberem que alguém os segue e conspira. Na cidade das luzes os protagonistas descobrem um mundo diferente, grandes nomes das ciências e cultura, como o próprio Diderot, além de outros sábios e amigos de Voltaire e Rousseau, bem como um abade revoltado contra a ignorância que a igreja impõe e o despotismo da elite absolutista que escraviza a população, encontramos também uma dama que domina a vida social da cidade, o que permite pôr a nu uma capital de contrastes, vícios e onde nem tudo é razão e luz.

Pérez-Reverte vai romanceando esta viagem histórica verídica, intercalando textos de como investigou e encenou os principais episódios do livro e narrando as entrevistas que realizou, referenciando os livros que leu. Monta assim uma série de textos que ora são o desenrolar do romance, ora são o trabalho do escritor, mas, à semelhança de Proust na sua obra-prima, aqui o autor também não é exatamente o escritor, uma série de pormenores, como a referência aos seus livros torna evidente que também este autor é uma personagem ficcionada, um alter-ego que não é exatamente Pérez-Reverte.

O conjunto do romance permite fazer um retrato da época, mostrar a realidade que então se vivia numa Espanha conservadora, dominada pela Inquisição e com um rei que queria mudar o estado das coisas sem conseguir sempre sobrepor-se aos poderes instalados. Assistimos ao ambiente explosivo que se vivia então em Paris, cheia de contradições em choque que prenunciavam não só a revolução francesa, mas também a chacina a ela associada  cujas ideias que marcam as luzes e a razão não previram.

Um romance que não só ensina como foi aquela época tão marcante no século XVIII, como cultiva o amor pelos livros, o saber e apela ao fim da ignorância baseada no misticismo sempre em luta com a verdade resultante da ciência.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

"Maigret e os crimes de Montmartre" de Georges Simenon

 

Tenho na memória da minha adolescência os episódios televisivos do inspetor Maigret, passados em Paris, quase sempre associados a meteorologias desagradáveis e sei que li diversos casos por ele resolvidos nessa época inicial das minhas leituras de adulto, eis a razão porque quis reencontrar-me com o escritor belga Georges Simenon e ao deparar-me com este "Maigret e os crimes de Montmartre" na biblioteca pública da Horta.
Uma bailarina de striptease após o fecho do seu bar noturno dirige-se alcoolizada à esquadra de Montmartre para avisar de um crime de uma condessa cuja preparação ouvira durante o trabalho. A polícia faz o relatório e no dia seguinte a mesma tenta desvalorizar o seu depoimento, nesse mesmo dia é assassinada em casa e mais tarde no bairro é encontrada morta uma mulher com tal título nobiliário. Maigret entra em ação não só explorando a vida no bar, descobre que um dos guardas estava apaixonado pela artista e pesquisa as relações desta com os patrões e colegas, envolvem-se outros guardas que descobrem que um médico, um homossexual e a segunda vítima estão unidos pela droga e há um elo comum a todos vindo de um passado distante que vive no bairro, mas ninguém fala, embora muitos pareçam saber algo mais até ao desenlace final.
A um ritmo paciente debaixo de um tempo frio e chuvoso a investigação prossegue, é um policial típico liderada por um comissário público e sem grandes temas em discussão para além do caso, por isso surge-nos uma história cinematográfica, pouco extensa, mas bem escrita e articulada, onde os pensamentos e sentimentos de Maigret são o principal tempero humano com poucas personagens. Gostei, fácil de se ler e adequa-se a um episódio policial calmo e bem redigido.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Vercoquin e Plâncton de Boris Vian

 

Acabo de ler o primeiro romance do escritor francês Boris Vian, escrito no final da primeira metade do século XX e sua obra de estreia neste género literário: "Vercoquin e Plâncton".

O livro pode ser dividido apenas em 3 partes, apesar de o estar em 4. Na primeira, Major organiza uma festa surpresa em sua casa e jardins onde conhece Zizanie e se apaixona. Ficamos a conhecer numa linguagem mordaz e surrealista o ambiente  eufórico e libertino destas festas com muito álcool e liberdade sexual a romper com todos os costumes e restrições ocorridas durante a guerra em Paris. Na segunda parte, o Major através do seu "Mordomo" tenta pedir a mão de Zizanie ao seu tutor que trabalha numa empresa de criação de burocracia e ficamos a conhecer as peripécias absurdas para o alcançar o noivado, bem como o efeito bola-de-neve e voraz da burocracia e dos funcionários que tentam fugir às suas obrigações. Na última entramos novamente numa festa para o noivado do Major e onde se vão cruzar todas as loucuras e surrealismo de uma forma avassaladora .

Estamos perante uma paródia surrealista e cómica sobre a loucura, os excessos de diversão e os liberalismos dos costumes em que entrou a juventude que se seguiram aos tempos de contenção da segunda grande guerra, terminada poucos anos antes deste romance ser publicado, bem como, uma crítica sarcástica dos exageros e inutilidade de muitos serviços e procedimentos burocráticos impostos pelos sistemas administrativos e a forma como os funcionários e dirigentes contornam os controlos laborais.

Um escritor que se tornou de culto em meados do século XX pela sua originalidade, com diálogos estranhos e situações que retratam a sociedade de uma forma única.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

"Para onde vão os guarda-chuvas" de Afonso Cruz

 

Excerto

"Andamos todos em órbita a nós mesmos à procura de uma porta que nos leve para dentro da nossa alma. Procuramos entrar dentro de nós, mas é um mundo que nos está vedado."

Acabei de ler o romance "Para onde vão os guarda-chuvas" do português contemporâneo Afonso Cruz. No início sabemos que o Sr. Elahi, empresário muçulmano num país do oriente, adotou uma criança cristã e tenta convencer a sua irmã a casar-se com um hindu, no que esta grita: vergonha!, por todos estes desvios à tradição secular da família. Então percebemos que a situação resultou de graves problemas trágicos do passado que afetaram a vida do fabricante de tapetes. Assim, através de episódios, curtos, que cobrem a infância dos atuais membros da família, vamos conhecer todas as desventuras e fenómenos fantásticos por que passaram, vivências a coberto das crenças e dos mitos religiosos que condicionam as suas vidas que se cruzam com saberes do islamismo, hinduísmo e cristianismo radicado na filosofia mítica oriental. Afinal, tal como as pessoas que perdemos, os guarda-chuvas perdidos nunca mais aparecem, logicamente devem ter um destino semelhante...

Afonso Cruz tem uma narrativa muito própria e cheia de metáforas que mistura a sabedoria mítica e transcendente oriental com a racionalidade fria e laica do ocidente contemporâneo, uma teia de conceitos que nos surpreende e ao juntar a perspetivas infantil com a contemplativa dos crentes e maldosa dos oportunistas, numa delícia de situações e deduções que vão do fantástico ao racional, uma crítica de comportamentos sociais transversais a todos os povos e personalidades sem agressão dos alvos preconceituosos, nem glorificação das vítimas inocentes e ingénuas movidas pelos seus sonhos de serem felizes.

Cheio de citações de sabedoria (não sei se inventadas de facto pelo autor ou baseadas em textos orientais, mas esta mistura dúbia entre o real e o ficcionado é uma característica comum de Afonso Cruz, um dos escritores mais originais da literatura portuguesa atual de que já li várias obras). Gostei e recomendo.

domingo, 24 de julho de 2022

"O mistério de Edwin Drood" de Charles Dickens

 

Regressei ao inglês Charles Dickens com a leitura do seu último romance publicado, mas que, devido a morte súbita do escritor, o deixou inacabado: "O Mistério de Edwin Drood".

Edwin é um jovem órfão cujo pai deixou o seu futuro casamento acordado com a filha do seu melhor amigo, curiosamente também falecido, ficando assim ambos os noivos sem pais e com o seu futuro decidido e gerido pelos seus tutores. Tudo corria normalmente até que um casal de irmãos, de novo órfãos, vêm viver para a mesma cidade, os rapazes se tornam adversários e parece desenvolverem uma atração pelas raparigas do outro par ao arrepio do acordado. Entretanto, na noite de Natal, após um encontro realizado na tentativa de se efetuar uma reconciliação entre os jovens, Edwin desaparece e o outro logo fica alvo de todas as suspeitas. Terá sido? O clérigo que protege o acusado está convicto da inocência deste, entretanto, descobre-se que o tio de Edwin nutria uma paixão pela sua futura sobrinha de quem era professor de canto e no seu sofrimento viciara-se em ópio. Tutores, raparigas e tio tentam descobrir a verdade até à chegada de um potencial detetive... as pistas apontam várias hipóteses e a obra ficou inacabada...

Sem dúvida está-se perante a primeira parte do que seria um grande romance do género policial num período em que este tipo de literatura estaria a iniciar-se, mas os mais importante é o próprio rol de hipóteses que ficam em aberto perante um cenário de provável crime onde não há justiça, o que cria um mito e uma abertura à especulação que é colocada no livro num posfácio do grande escritor G K Chesterton, que se foi um dos pioneiros da literatura de crime e mistério e muito conhecido pelas investigações do padre Brown.

O conjunto do romance incompleto com a especulação de Chesterton torna este livro muito interessante, fácil de ler e agradável. Fica a dúvida de como Dickens solucionaria realmente o mistério e também o espanto por algumas frases da obra mostrarem que este grande mestre da literatura e da denúncia das injustiças sociais, ele próprio, tinha os seus pecados preconceituosos à luz dos princípios humanos de hoje.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

"A Rainha do Sul" de Arturo Pérez-Reverte

 

Excertos

"O medo não deve ser avidado de chofre,... A arte reside em infiltrá-lo pouco a pouco: que dure, e tire o sono, e amadureça, por desse forma se converte em respeito."

"Há silêncios que não podemos alegar não ter ouvido com absoluta clareza. Sim. A a partir de determinado momento da vida, cada um é responsável pelo que faz. E pelo que não faz."

Acabo de ler mais um romance do escritor espanhol Arturo Pérez-Mendoza: "A rainha do sul", no qual um jornalista faz a pesquisa biográfica Teresa Mendoza : uma simples mulher, pobre, sem estudos e companheira de um traficante de narcóticos na província de Sinaloa no México; mas que após o assassinato deste e de ela sobreviver à ordem para a matar, consegue em seguida refugiar-se no sul de Espanha e construir um império de narcotráfico e uma fortuna que a tornam uma referência para a imprensa social e em simultâneo com ligação à classe política e aos maiores cartéis mundiais.

O texto é uma sequência de episódios que correspondem a cenas romanceadas de recolha de informações de testemunhas que conviveram ou conheceram Teresa Mendoza e onde o jornalista é o narrador na primeira pessoa, estes são intercalados com outras onde são expostas, de forma cinematográfica e intensa a vida da protagonista, sendo esta quem descreve a ação e expõe os seus pensamentos e sentimentos.

Como habitual em Pérez-Reverte, as suas personagens são muito realistas com virtudes e defeitos, aqui ninguém é exclusivamente mau ou ingenuamente bom, e as suas narrativas são cinematográficas, por vezes muito intensas, e onde se nota, na descrição e pormenores, uma investigação técnica e social profunda dos meios de vivência e dos objetos que integram as suas cenas. Tudo isto é exposto num texto bem trabalhado com referências as marcas de equipamentos, objetos de luxo, sensações dos seus usos e a descrição profunda da vida nas redes de narcotráficos com as suas regras, dureza e desumanidade no México, bem como a fragilidade das forças de segurança na Europa face a um controlo legal e ético dos mídia muito fortes em democracia aquando dos seus atos de combate ao banditismo, e ainda, o laxismo destes aspetos no Norte de África, tudo isto a coberto de uma rede política, legislativa e financeira internacional que permite a montagem de esquemas de branqueamento de capitais, corrupção e cooperação entre o poderes legítimos e dos fora-da-lei.

Um bom romance que retrata com qualidade literária os mundos mafiosos, com alguns episódios muito intensos, gostei, texto acessível a qualquer leitor e recomendo.

terça-feira, 21 de junho de 2022

"O Quarteto de Havana II - Morte em Havana" de Leonardo Padura

 

Acabo de ler o terceiro romance deste quarteto de casos policiais, independentes, que se desenrolam na capital de Cuba nas estações sucessivas do mesmo ano de 1989 e resolvidos pelo tenente Mario Conde: o polícia frustrado que sempre desejou ser escritor. "Morte em Havana" começa com a descoberta do corpo de um travesti estrangulado na noite da festividade da transfiguração de Cristo. Este é filho de alguém poderoso na cidade, vestia o traje de uma mulher criado por um grande cenógrafo do país, mas retirado do ativo por perseguição à sua orientação sexual e não acatar as diretrizes para a arte impostas pelo regime.

O detetive, com preconceito contra os homossexuais, vai descobrindo o que fora o sofrimento da vida da vítima: um católico em confronto com a pai, a sua intimidade e a hipocrisia do regime; apercebe-se do grande homem do teatro e cultura exilado profissionalmente que lhe conta a sua vida e a cruz dos chamados de invertidos, o que desemboca em autorreflexões sobre a sua paixão pela escrita numa Havana que persegue cidadãos de grande valor e honra por questões íntimas, mas criadores livres, num sistema que martiriza o povo, até compreender como tudo isto levou a um homicídio hediondo que também foi um autossacrifício de entrega de um crente.

Bem escrito, com reflexões que servem de metáfora para denunciar as revoluções culturais comunistas, mas sem criticar o sistema tão diretamente. Padura escreve um romance policial que é, ao mesmo tempo, uma obra de apelo ao respeito pela diferença e contra o preconceito, a que junta um nível literário e informação cultural e onde entram personagens reais marcantes da filosofia e cultura parisiense dos anos 1960/70, mostra a vida difícil do povo em Cuba e tudo isto no género policial fácil mas sem ser uma narrativa banal de entretenimento.

Como bónus, o romance contém um excelente conto de Mario Conde, neste, Padura mostra a sua genialidade de escrita de histórias curtas e as influências de Sartre e Camus na forma de pensar do detetive. Gostei.

terça-feira, 14 de junho de 2022

"Senhora Oráculo" de Margaret Atwood

 

Frase inicial na obra

"Planeei com todo o cuidado a minha morte; ao contrário da minha vida, que passou sinuosamente de uma coisa para a outra, apesar das minhas débeis tentativas para a controlar."

Margaret Atwood é sem dúvida a escritora Canadiana de quem mais obras li, se antes sempre na língua original, "Senhora Oráculo" foi o primeiro romance dela que li traduzido para português, a sensação não é a mesma, mas a velocidade de leitura compensou.

Joan Foster, ao sentir-se acossada com todos os seus problemas, decidiu simular a sua morte no lago Ontário e refugiar-se em Itália. Ali vê o seu passado: desde uma infância complexada como gorda perante uma mãe que não perdoava os seus desleixes e até ser uma figura pública com o sucesso "Senhora Oráculo" - livro que assumiu ter inspiração espírita -, só que também é uma escritora de literatura barata de cordel, personagem que esconde por vergonha num pseudónimo, sendo ainda esposa de um universitário de esquerda revolucionária e a quem mente dizendo-se ensaísta e a quem trai com um artista de choque, de repente é chantageada por um homem que descobre todos os seus segredos e decide desaparecer mas a sua situação complica-se cada vez mais. 

Ao longo da obra vamos conhecendo os receios e desejos de Joan Foster, as suas mentiras, o conforto dado por sua tia e o medo e revolta com sua mãe, os homens diversos e por vezes estranhos de que se aproxima e se relaciona, a sua experiência espírita e o esforço de criar personagens típicas da literatura de cordel mas em parte inspiradas na sua experiência de vida e excertos desta literatura sem ambições mas rentável.

É uma das primeiras obras de ficção de Atwood: uma autora profícua que intercala romances, ensaios, coletâneas de poesia, contos, e até livros infantis. Este livro já tem indícios dos caminhos que a escritora seguiria: mistura numa obra de várias narrativas, poesia, estilos distintos de escrita, factos reais, paranormais, medos e psicoses e até refere a via que a tornou famosíssima da ficção-científica. A exposição nem sempre linear e alguns pontos não me parecem totalmente resolvidos, mas é interessante ver como a autora expõe algumas dificuldades no desenrolar das personagens e da narrativa. Gostei.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

"O Mistério do Ataúde Grego" Ellery Queen

 

Acabo de ler um livro que faz parte das republicações da coleção Vampiro, edições retomadas há poucos anos de uma série de publicações periódicas que existia e fazia parte das obras policiais e de mistério que devorava na minha adolescência. Alimentei então o meu gosto pela leitura até passar para géneros de outro calibre literário. Infelizmente não sei o nome da maioria das obras que naquela época lia, retive melhor o nome dos escritores e dos protagonistas, alguns muito conhecidos no género, contudo não me lembro de Ellery Queen, este é o pseudónimo de dois autores: Daniel Nathan e seu primo Emanuel Lepofsky que criaram o detetive com aquele nome e cujas obras correspondem às narrativas dos seus casos.
"O Mistério do Ataúde Grego" ocorre quando o advogado de Khalkis, após o funeral do negociante de arte, descobre o desaparecimento do testamento que o morto alterara na véspera e guardara no seu cofre. O advogado dizia que ninguém na casa do defunto tivera acesso à caixa-forte entre a  colocação do documento e o enterramento, chamada as autoridades, a situação vai conduzir ao mistério de quem o retirou e onde o escondeu num sítio que ficou fechado, a que se seguem homicídios relacionados com um caso de chantagem e tráfico de uma obra pintura de Leonardo da Vinci antes roubada. Entre procuradores do ministério público, um conjunto de polícias e detetives e várias voltas no desenrolar dos acontecimentos, será o cérebro do jovem Ellery Queen, para espanto dos seus superiores mais velhos, quem desvenderá o desaparecimento do testamento e identificará o homicida.
Uma obra de mistério e crime cuja escrita é trabalhada sem grandes pretensões literárias mas correta e elegante, segue à risca os traços do género policial: vão-se lançando pistas verdadeiras e falsas que confundem as o enredo e desafiam o leitor numa narrativa que não deseja ir além de um romance de entretenimento agradável.  Para quem gosta do estilo, é de facto uma história desafiante.

sábado, 28 de maio de 2022

"Os detetives selvagens" de Roberto Bolaño

 

Citação

"o poeta não morre, afunda-se, mas não morre."

Acabei de ler o meu segundo e extenso romance do chileno Roberto Bolaño: "Os Detetives Selvagens" e tal como o enorme anterior "2666" este é sem dúvida uma obra difícil de classificar, aliás, é este o legado dos livros deste autor: trabalhos que procuram mudar os estilo e a forma de fazer literatura latinoamericana e, sem dúvida, que ele conseguiu distinguir-se.

O romance está dividido em três partes: a primeira, em 1975, é a narrativa, em forma de diário, de Juan García Madero, um órfão com 17 anos que é forçado pelos tutores a seguir direito quando queria literatura, mas que entra em contacto com um grupo de poetas que querem criar um novo movimento literário de poesia mexicana: o "real visceralismo"; que teria origem numa poeta há muito desaparecida e cuja obra era quase desconhecida: Cesárea Tinajero. O grupo é então liderado por Arturo Belano e Ulises Lima a que se associaram diversos jovens, uns filhos de ricos, outros miseráveis, que vivem uma vida revolucionária em termos de arte e de costumes livres que Juan relata e onde mergulha nessa forma de viver e prática sexual. Esta parte termina numa cena de fuga na noite de final do ano em que Garcia Madero participa para proteger uma prostituta do seu explorador.

Na segunda parte temos múltiplas narrativas ao estilo de memórias, desde muito curtas a mais extensas, por vezes são quase contos autónomos. Nestas temos episódios de vida dos diversos membros reais visceralistas ou de gente que esteve em contacto com Belano e Lima. Relatos que vão de 1976 a 1996 e além de mostrarem o estilo de vida de sexo livre, álcool e drogas de muitos das personagens envolvidas, evidencia a busca do grupo em descobrir quem foi Cesárea e a sua obra desaparecida. Entretanto, vai-se montando, de um modo mais ou menos caótico, a biografia daqueles dois líderes e poetas não aceites pela escolas artísticas estabelecidas e, muitas vezes, em confronto com a própria lei. É evidente que Arturo Belano é um alter ego do autor, pois, conhecida a biografia de Bolaño, verifica-se ao longo da narrativa que estes dois são ambos chilenos de esquerda, refugiados no México devido a Pinochet, procuram mudar a literatura, vivem com dificuldades e estabelecem-se mais tarde em Barcelona onde têm família. Talvez muitas das memórias expostas mais não sejam que retratos do que foi a vida de muitos jovens próximos do autor e algumas personagens e referências na obra são escritores e artistas consagrados que se misturam com outros ficcionados no livro.

A terceira parte, retoma novamente o diário de Garcia Madero, com a continuação da fuga na passagem para o ano de 1976, a que se associa uma busca para encontrar Cesárea Tinajero pela região desértica de Sonora, enquanto são perseguidos por inimigos que tentam recapturar a fugitiva que retiraram ao explorador desta, isto numa viagem e investigação que dura cerca de um mês e com um final surpreendente.

A escrita é muito cativante, com um estilo fácil de leitura, mas verifica-se que é muto cuidada, mesmo quando segue a forma do falar diário banal e nas memórias, onde por vezes se adequa a forma ao tipo de personagem que a narra, culto em várias áreas ou cidadão comum. Bolaño faz uso de vocábulos grosseiros, sobretudo de cariz sexual, e relatos explícitos das relações íntimas sem se ater perante as várias orientações das personagens, o que pode ferir certos leitores mais pudicos ou preconceituosos, mas faz um retrato cru e, provavelmente, realista do grupo constituído pelos artistas e jovens de esquerda latinoamericanos de língua hispânica que se exilou na cidade do México e em Barcelona na década de 1970 por razões políticas e das suas ligações com as gentes destas cidades e a outras partes do mundo. Gostei da obra, é efetivamente original e mostra todo um universo hispânico, contudo, não deixa de ser um romance extenso com partes mais ou menos vivas, mas todas cheias da força da capacidade narrativa que era o forte deste escritor.

terça-feira, 10 de maio de 2022

"O Duplo" de Fiódor Dostoievski

 

Acabei de ler a novela "O Duplo" do russo Fiódor Dostoievski, uma obra da juventude literária do escritor, talvez autor que mais me marcou até hoje.

Yakov Petrovich Goljadlkin é um funcionário público de meia idade que trabalha numa repartição, um dia opta por faltar ao serviço e gozar um pouco de liberdade, alugou uma carruagem para viajar por São Petersburgo, onde, sem querer, se cruza com colegas e o seu chefe, nesta tensão, decide ir ao seu médico onde se torna evidente o seu estado de perturbação psicológica. Ali critica as pessoas que lhe são próximas e o doutor avisa-o da necessidade de tomar a medicação. À noite, na sua viagem, encontra uma réplica sua mais nova, Goljadkin Jr., que se torna seu amigo inicial, mas, no dia seguinte descobre que é o seu novo colega e entra desequilíbrio e em guerra com o seu duplo, sente que este conspira contra ele e todos à sua volta o pretendem destruir, até assistirmos ao desenlace possível desta luta  consigo mesmo e as instituições.

A novela tem uma escrita por vezes vertiginosa e um relato caótico que mostra a amargura de Goljadkin e a sua perturbação psicológica, embora sem a profundidade das obras maduras de Dostoievski, mas já aqui estão presentes os temas de desequilíbro da personalidade fruto das pressões sociais e a revolta impotente dos cidadãos contra as instituições, isto numa Rússia onde o poder dos superiores não é discutido pelos inferiores.

A narrativa pode ser vista como uma alegoria das dificuldades porque passou o escritor cruzada com um retrato dos problemas da sociedade russa e das disfunções que minam a sanidade mental. Gostei do livro, é uma boa iniciação ao autor, mas ainda muito longe da profundidade de outras obras posteriores que definem a sua genialidade. Fácil de ler.

terça-feira, 3 de maio de 2022

"O teu rosto amanhã - Veneno e sombra e adeus" Volume III de Javier Marías

 

Excertos

"Oh, sim, uma pessoa nunca é, o que é" ... "como tão-pouco deixamos de ser inteiramente aquilo que fomos"

"O Estado precisa da traição, da venalidade, da intrujice, do delito, das ilegalidades, da conspiração, dos golpes baixos (em contrapartida, as heroicidades apenas a conta-gotas e de tempos a tempos). ... Porque julgas que se criam cada vez mais delitos novos?"

Acabei de ler o terceiro e último volume de "O teu rosto amanhã" do espanhol Javier Marías, um romance difícil de classificar, é essencialmente uma obra de ficção, mas possui duas personagens importantes que foram pessoas reais, Peter Wheeler e o pai do escritor, além de aspetos da experiência de vida do autor e da sua relação com a Universidade de Oxford, aqui como narrador no papel do seu avatar: Jacques Deza, além de referências a numerosas ocorrências hist´rocas da guerra civil de de Espanha e, um pouco menos, dos serviços secretos ingleses na II Grande Guerra.

Efetivamente, este romance que começa com o alerta do narrador de que ninguém devia falar e contar nada, mas centra-se num grupo anónimo de pessoas, não reconhecido pelos serviços secretos ingleses que tem como tarefa "a «coragem de de ver» e que assumem «a irresponsabilidade de ver», e o contam.", tal como diz Javier Marías no epílogo e, como eu percebi da obra: fica sem remorsos das consequências perniciosas e, até mesmo por vezes catastróficas, para as pessoas por eles observadas e descritas nos seus relatórios ultrassecretos. Pelo meio, vamos acompanhando a relação do protagonista com a sua mulher, de quem está separado, mas que mantêm uma amizade e relação em virtude dos filhos, além de uma incerteza se ao nível da manutenção do amor entre eles.

Assim este romance resulta num extenso desfilar de inconfidências e reflexões sobre como somos num dado momento, como mudamos no tempo, como nos denunciamos no que fomos ou no que podemos vir a ser no futuro através das nossas conversas, interpelações e de como podemos observar nos outros todas essas indiscrições e as potencialidades dos eus de cada um.

Apesar da originalidade do tema, que não é um romance do género de espionagem, nem policial, nem de memórias, nem histórico, nem ensaio, nem romântico, mas que de facto envolve isto tudo, foi a escrita que me fascinou, apesar de com menos sinonímias e adjetivações neste volume, talvez para não exagerar a extensão do texto, a narrativa continua sem pressa em concluir as ideias e os factos que vai lançando vão sendo intercalados por divagações que se afastam do ponto inicial, mas após uma caminhada mais ou menos longa retoma-se o tema com um remate final e completando o assunto muitas linhas ou páginas posteriores após uma viagem com numerosas referências paralelas.

A riqueza lexical, as variações de sintaxe e as comparações das subtilezas linguísticas existentes entre a várias frases em inglês (por norma traduzidas dentro do parágrafo) e as ideias e dizeres em espanhol geram uma beleza intencional e trabalhada ao pormenor do ponto de vista literário e evidenciam estar-se perante um escritor contemporâneo com um valor acima da média, contudo, como já disse, poderá não ser uma leitura fácil para quem não tenha por hábito degustar as frases e as palavras, além da extensão do romance.

Este foi o romance que mais gostei nos últimos tempos, mas não é uma obra fácil para qualquer leitor. É livro para quem degusta a escrita e não tem pressa. Um texto para gente que não desespera ansiosa pela conclusão duma ação rápida  e ágil, pois esta espraia-se por reflexões e divagações do narrador, criando uma imagem parada sobre a qual recai uma extensa legenda analítica e psicológica. A introspeção sobre a mente humana, como fomos, somos e podemos vir a ser e a consciência que temos disto e do que assistimos e fizemos ou pensamos vir a fazer é um traço que atravessa toda a exposição narrativa. Para mim uma obra-prima e original, uma peça de literatura de alto gabarito que requer estar preparado para a apreciar.

Mensagem sobre o volume I

Mensagem sobre o volume II

sábado, 23 de abril de 2022

Dia Mundial do Livro, os melhores livros ao longo de um ano

É sempre na celebração do Dia do Livro que apresento aquelas obras cujas leituras considerei as melhores em várias categorias das que li nos 12 meses anteriores. Este foi um ano onde, por motivos vários, li muito menos livros que em iguais períodos anteriores, mesmo assim, eis as minhas escolhas:

Melhor Livro de Literatura em Português

Apesar da releitura do emblemático "Memorial do Convento" e de José Saramago ser e um dos meus escritores preferidos, talvez pela novidade e questões que levanta sobre o 25 de Abril e o regime democrático que desde 1974 se estabeleceu em Portugal, a minha escolha recaiu sobre "Os Memoráveis" de Lídia Jorge, com uma excelente escrita e vários pontos para lusitano refletir.


Melhor Livro de Literatura Canadiana

Estive quase a não incluir esta categoria habitual por ter sido um único livro que li nesta rubrica ao longo destes 12 meses, mas a sua qualidade é tal que não permitiu deixar de recomendar "selected stories" da Nobel Alice Munro.


Melhor Romance Histórico

A biografia de César Augusto de John Williams exposta através do género epistolar "Augustus" vale mesmo uma leitura.


O melhor ensaio em  formato de  livro digital

Pelas questões e informações nele contidas, a escolha recaiu em "Sapiens - História breve da Humanidade" por Yuval Noah Harari, não subscrevo integralmente as suas ideias e penso que há aspetos especulativos, mas vale a pena ler esta ensaio.


Boas leituras neste Dia Mundial do Livro.

sábado, 16 de abril de 2022

"O teu rosto amanhã" Vol. II - Dança e Sonho, de Javier Marías

 

Excerto

"Nunca sabemos até que ponto e de que modo somos observados pelos que nos rodeiam, pelos mais próximos e mais leais, que aparentam renunciar há muito à objectividade e dar-nos por certos..."

Continuo a leitura desta vasta narrativa que começou no primeiro volume com o aviso de Jacques Deza de que nunca devemos contar nada, falar, dizer, responder, mas  que logo se tornou numa extensa e prolixa exposição do modo como foi recrutado para um serviço secreto inglês no ambiente da Universidade de Oxford e das memórias benevolentes do seu pai denunciado ao regime de Franco na sequência da guerra civil de Espanha e da sua relação com a sua mulher de quem recentemente se separara em Madrid o o trouxera de novo para Londres.

O segundo volume, com o subtítulo das suas duas partes: Dança e Sonho, o narrador, Jaime, Jack ou Jacobo Deza continua a contar pormenorizadamente a sua vida, as justificações de seu pai para a sua benevolência e as surpresas de comportamento dos membros da equipa de trabalho do serviço secreto e dos seus orientadores académicos Peter e . Jacques continua a não saber quem o dirige, talvez Tupra e para quem o seu esforço contribui. Enquanto a narrativa se torna numa reflexão sobre o comportamento humano face à culpa, à reação ao medo, à necessidade de nos proteger e de nos integrarmos socialmente  e à capacidade de fazer o mal extremo como defesa e factos históricos e da atualidade política.

Confesso, Javier Marías - com o seu texto cheio de sinónimos, paralelismos e referências a semelhanças e diferenças entre o idioma inglês e o castelhano para levar à análise das múltiplas faces de cada questão ou assunto que debate ou reflete - conquistou-me pela riqueza da sua escrita e beleza literária da sua forma de narrativa. Onde um escritor em momento de suspense tende de cortar o momento para nos deixar presos e retomá-lo mais tarde ou então despejar de chofre o que nos vai surpreender, Javier Marías dilata o tempo e expõe reflexões do instante em câmara lenta ao longo de páginas sucessivas sem nos cansar, enquanto a espada no seu trajeto vertiginoso ao longo de todo esse período prossegue o seu caminho para uma cabeça em risco de ser decepada e, terminada essa duração esticada, não houve perda de emoção, nem do efeito que nos prendeu ao instante inicial. Só um génio consegue fazer isto em texto.

A teoria de que o tempo é relativo está de facto intrinsecamente instalada nesta narrativa, tudo decorre a uma velocidade cronológica variável de acordo com a vontade do narrador e transposta para a escrita, por norma sem pressa alguma, mas não ao ritmo a que o leitor está habituado ver decorrer uma ação. A riqueza lexical e as variações de sintaxe no texto são de  modo a gerar uma beleza intencional e trabalhada ao pormenor do ponto de vista literário e evidenciam estar-se perante um escritor contemporâneo com um valor acima da média, contudo poderá não ser uma leitura fácil a quem não tem por hábito degustar as frases e as palavras, além da extensão do romance... entretanto, já entrei no terceiro volume que vem em continuidade de cena iniciada no segundo.

quarta-feira, 30 de março de 2022

"O teu rosto amanhã" Vol. I - Febre e Lança - de Javier Marías

 

Excertos

"tudo tem o seu tempo para ser acreditado, até o mais inverosímil e o mais anódino, o mais incrível e o mais ignorante."

"Há uma obsessão por compreender o odioso, no fundo há uma malsã  fascinação por isso, e com isto faz-se um imenso favor aos odiosos. Eu não compartilho essa curiosidade infinita do nosso tempo..."

Há muito que ouvia falar do espanhol Javier Marías como um dos escritores mais originais da atualidade, mas só agora me decidi a descobrir e logo através da sua obra mais extensa: o romance de três volumes "O teu rosto amanhã". No primeiro tomo duas partes do romance: "Febre" e "Lança".

Jacques Deza, começa a obra a explicar a importância de estar calado, de nunca se contar nada, ele, um madrileno recém-separado regressou à Inglaterra para fazer um programa de cultura espanhola na BBC, doutorado na Universidade de Oxford, frequenta a casa de um professor amigo naquela academia, lá é convidado a integrar um grupo secreto. Este procura interpretar o comportamento de pessoas seguidas pelo serviços de informação britânicos e ver-se-á num mundo onde responder, contar e dizer são armas bumerangue que atacam quem fala. Seguem-se reflexões sobre os indivíduos, a importância da comunicação, a pressão social, questões da atualidade, efeitos psicológicos da guerra civil de Espanha e da II Grande Guerra, disserta ainda sobre a sua vida individual, familiar e com quem convive e vai contando, contando, contando memórias ao contrário do que avisara.

A escrita, com um vocabulário rico e culto, cheia de referências linguísticas, é de uma fertilidade de adjetivos e pormenores, sinonímias lexicais que se estendem por longos parágrafos que vão desenvolvendo uma musicalidade em ritmos lentos que é única nos autores atuais que conheço. A densidade dos pensamentos, dos conteúdos desenvolvidos e das referências históricas e culturais tornam o texto como uma versão contemporânea de Proust, Musil temperado com o género de literatura de ficção académica anglo-saxónico típico de Robertson Davies e David Lodge, mas  mais rebuscado que estes.

A narrativa não tem pressa em concluir as ideias e os temas que vai lançando... vai divagando sem se perder no ponto inicial, embora o leitor por vezes se desencontre, mas após uma caminhada mais ou menos longa retoma com um remate final e completa o assunto começado muitas linhas ou páginas antes.

Não será um texto fácil para leitores apressados ou que não apreciem deixar-se passear na beleza do texto saboreando-o para depois chegar à conclusão, é um romance que avança a velocidade lenta, quase de caracol, mas para quem sabe apreciar é delicioso e compreendo porque se diz ser mais um candidato a Nobel, não sei, para mim já atingiu tal nível que não necessita de tal prémio para eu reconhecer a sua grande qualidade... não consigo parar e já adquiri e iniciei o segundo volume.

segunda-feira, 14 de março de 2022

"Vício Intrínseco" de Thomas Pynchon

Excerto

"O quê? Só devia confiar nas pessoas boas? Meu, as pessoas boas são compradas e vendidas todos os dias. Mais vale confiar em alguém mau, de vez em quando, não faz nem mais nem menos sentido. Quer dizer que dava a mesma hipótese a ambos os lados.

Acabei de ler o meu segundo livro do escritor americano contemporâneo, de estilo pós-moderno, Thomas Pynchon: Vício Intrínseco. Passado nos anos de 1970, Doc Sportello, é um detetive privado, viciado em marijuana que entre as suas alucinações, passagem por bares, cervejas, mulheres várias e confronto com a polícia que persegue hippies e drogados na região de Hollywood e tem nele um alvo, faz investigações de raptos e crimes, embora por vezes ele confunda a realidade com os devaneios provocados pela erva. No início é visitado por uma sua ex-namorada a dizer que o seu amante riquíssimo está em vias de ser raptado ou assassinado pela esposa e respetivo amante e sai em seguida. Só que ambos desaparecem e Doc entra a investigação num mundo de droga, tráfico, hippies, polícias, crimes e justiça feita fora das regras legais e infiltrados em redes mafiosas.

O romance monta como um puzzle a Califórnia de então, o movimento hippie cheia de droga, gente do cinema, muitas referências a grupos musicais reais e músicos de então, trajes e cortes de cabelo, a contestação ao Vietname e o choque cultural da época. Contudo a narrativa não é linear, típico no movimento pós-moderno, existem mudanças bruscas de ambiente de reais para alucinatórios, muitas personagens, entrada na mente do protagonista que nem sabe se está a assistir a factos reais ou a efeitos da droga, o que faz com que o leitor se possa perder, mas vale a pena prosseguir pois as peças vão-se ligando no meio deste labirinto de cenas ora psicadélicas ou com humor negro, ora de crítica social, ora de entrada no submundo da prostituição, tráfico de droga ou de influências, interesses imobiliários, polícias corruptos e os que não olham a meios para alcançar a vingança ou limpeza de uma sociedade que consideram decadente e bons e maus marginais e personagens que são caricaturas originais. 

Não é fácil seguir a história, mas diverti-me e por isso valeu a pena a leitura, um policial onde nem sempre sabemos se houve de facto crimes e assassínios, umas vezes sim, outras não, faz parte da linguagem labiríntica da obra.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Putas Assassinas" de Roberto Bolaño

 

Citação

"Uma pessoa nunca acaba de ler, embora os livros acabem, da mesma maneira que uma pessoa nunca acaba de viver, ainda que a morte seja um dado certo."

"Putas Assassinas" é um livro com 13 contos do escritor chileno Roberto Bolaño, de quem só tinha lido, há muitos anos, o romance que foi um sucesso de vendas quando publicado no início deste século: "2666", que deu a conhecer a todo o mundo este autor já pouco depois da sua morte.

Nestes contos sente-se a a referência frequente a aspetos autobiográficos do escritor, que parece ser o narrador de quase todos eles. Assim, temos relatos com a família na cidade México na sequência da fuga desta do Chile devido ao golpe de estado que derrubou Allende. Há textos com acontecimentos intercalados com reflexões pessoais sob a vida difícil dos poetas e escritores chilenos de esquerda devido à perseguição da ditadura. Em três contos acompanhamos a vida errante de B em vários locais da Europa, nomeadamente Barcelona, onde Bolaño viveu grande parte da sua vida. Temos narrativas que são contadas a ele de experiências passadas por outros refugiados. Os contos sobre terceiros são autênticas descidas ao inferno negro no mundo da prostituição, pornografia e até abusos, não sexuais, de crianças na Índia associados a ritos e crenças religiosas. Certos contos são de uma negritude extrema mas com uma escrita cativante que mesmo no relato do horror dá prazer ler o texto. Não sei se muitas dos nomes referidos nos contos são poetas reais ou ficcionais, mas o conjunto dá a conhecer a dificuldade deste tipo de autores, onde muitos passam incógnitos e com dificuldades pela vida literária, numa luta pessoal pela sobrevivência artística e individual.

Gostei do livro, alguns contos tocaram-me mais do que outros, por vezes existem referências a atos de depravação sexual e uso de termos grosseiros associados, mas nada de erótico, apenas um retrato duro e difícil da vida porque muita gente passa sem o autor fazer uma abordagem moral do assunto. No campo político, a obra é marcadamente de esquerda e honra as vítimas das ditaduras na América hispânica e embora o autor dê a entender que o seu poeta de eleição não seja Neruda, esse surge como um farol no Chile.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

"Quarteto de Havana I - Ventos de Quaresma" de Leonardo Padura


Acabei de ler o segundo romance do primeiro volume do Quarteto de Havana do escritor cubano Leonardo Padura: "Ventos de Quaresma", outro policial protagonizado por Mário Conde, tenente da esquadra central de Havana que sonhava ser escritor e se tornou polícia de investigação criminal. Sobre o anterior obra podem ver o texto aqui.

Havana sofre os efeitos da fustigação habitual de ventos intensos e penetrantes que costumam sentir-se pela época da quaresma na cidade, neste ambiente, pouco a seguir a se cruzar na rua com uma mulher por quem se sente imediatamente atraído, é entregue a Mário Conde o caso do assassinato de uma jovem professora da escola pré-universitária de que ele fora aluno anteriormente. A vítima é alguém da juventude do partido e cidadã exemplar para as novas gerações. Ao longo da investigação, o tenente vai descobrir ligações promíscuas desta docente ao elenco diretivo, ao mercado negro, ao mundo da droga e, inclusive, a ultrapassagem dos limites éticos de intimidade com certos alunos. Entretanto, sob a pressão deste vento contínuo, o investigador deambula entre as suas recordações da escola, a amizade com os colegas, sobretudo o gordo Magricela (tornado inválido na guerra de Angola) e a necessidade de satisfazer a sua paixão aguda e perturbadora por aquela mulher que toca saxofone, enquanto a sua vida prossegue o crónico percurso decadente com amigos frustrados com a vida que afogam as mágoas no álcool, na comida, no beisebol e nas recordações dos tempos de sonho em que eram estudantes.

Padura tem uma forma única de escrever a decadência culta das suas personagens, onde, em simultâneo, transpira a banalidade da vida comum e vazia das classes que sobrevivem com as dificuldades do dia-a-dia e a elegância e o cuidado de um bom escritor que junta o discurso e pensar banal ao pensar culto e escrever literário. A forma de descrição dos efeitos do vento sobre as pessoas e Havana, bem como a denúncia discreta dos problemas sociais do regime, sem ofender este último, e os vícios privados da sociedade e das suas personagens, dão-me um grande prazer na leitura da sua prosa, uma vez com tons poéticos e elevados e outros de elogios dos prazeres decadentes. Um livro que não se fica por ser um policial mas também é uma texto literário. Gostei.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

"As mil e uma noites" Volume 2

 

Acabei de ler o segundo volume da tradução feita pela E-primatur da coletânea de contos que constituem a obra "As mil uma noites" e com a informação de se basear nos manuscritos mais antigos desta. Este conjunto é composto de 3 volume e já falara aqui do primeiro quando o lera.

O presente volume é a continuidade do anterior a partir da narrativa de Xerazade na 102.ª noite  como mulher de Xariar e vai até à 282.ª. Cada conto, por norma atravessa noites sucessivas, sendo interrompidos muitas vezes em momento de suspense com a confissão à irmã Dinarzade de que haverá muitas mais a contar se o príncipe lhe poupar a vida, uma estratégia de lhe alimentar a curiosidade e a poupar a sua morte como costumava fazer às suas mulheres após a noite de núpcias. Frequentemente, a mudança de de uma para outra história diferente faz-se também a meio da narrativa noturna para assim manter a suspenso com a nova e o interesse de Xariar.

Ao contrário do primeiro volume, neste poucos contos são curtos e raramente têm uma lição de moral no seu cerne, sendo comum a beleza dos jovens, o luxo das elites, a atração sexual como normalidade, os atributos físicos das mulheres dependentes de ricos que evitam o acesso ao exterior e o erotismo da narrativa que entra em choque com a ideia atual de um islamismo muito conservador e casto. Aqui o enlace no casal apaixonado, nem sempre com o laço matrimonial, é visto frequentemente como um prémio e sem a censura de moral religiosa, mas sempre sujeito à bondade do deus altíssimo e as referências ao Corão são muitas. Nem todos os contos são fantásticos, mas os mais extensos são dominados pela fantasia e personagens mágicas.

O texto que intercala narrativa em prosa com passagens complementares em verso, procura verbalizar a linguagem oral ao estilo antigo. Existem muitas notas sobre a escolha de determinados termos na tradução, explicações de vocabulário, de costumes da época e referências a correções e adoção de excertos de edições antigas de diferentes regiões geográficas do médio oriente de modo a tornar coerente o discurso e consistente o conto.

Fácil de ler, embora, por vezes, me cansei do excesso de pormenores de luxo, gastronomia rica, beleza e fantasia, mas isto resulta do estilo da obra original que procura entrar num mundo que vai muito além da realidade e procura ir ao encontro da imaginação de estratos sociais ricos, belos e cheios de luxo que estariam na base da felicidade e justiça na idade média no médio oriente no seio da cultura islâmica de então.

Pelos dados transmitidos até ao final deste volume, o terceiro completa histórias já narradas que têm outros desenvolvimentos e variantes noutras edições das Mil e Uma Noites e textos com informações gastronómicas e de costumes muito referidos nestes 2 volumes mas pouco desenvolvidos. Um tomo para completar a visão do conjunto que foi esta obra e das variantes que havia no passado, sendo que não há contos para além da 282.ª noite, muito longe do total de 1001 que se poderia depreender do título. 

Gostei, vale a pena ler para compreender como no início do segundo milénio os árabes eram bem diferentes daquilo que são hoje em termos de mentalidade.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"ULISSES" de James Joyce

                                    

Tentei ler o romance "Ulisses" do irlandês James Joyce, considerado um marco na literatura contemporânea pela sua forma revolucionária de escrita e o recurso ao fluxo da consciência, obra que este ano celebra 100 anos de publicação.

O romance não tem um enredo linear, vai narrando cenas que decorrem ao longo de um dia desde o pequeno almoço (sabe-se ser 16 de junho de 1904) de várias personagens que se cruzam em Dublin por serem colegas, partilharem espaços comuns ou irem a acontecimentos ao longo de 24h e termina na madrugada seguinte. Entre as várias personagens, Harold Bloom é a mais presente e por isso o protagonista da obra, sendo em torno dele quem o texto mais se centra e na sua vida pessoal, nomeadamente a sua mulher soprano que o trai. Há personagens que surgem em várias momentos diferentes e outras são meros aparecimentos acidentais neste percurso. Na primeira centena de páginas ocorrem cenas de preparação do pequeno almoço, passeio por uma praia, ida a um talho, entrada numa igreja, participação num funeral de amigo, discussão na redação de um jornal, entrando nós nas reflexões pessoais da personagem central da cena e de outras, bem como de acontecimentos lhe vêm à memória ou discussões sobre o relacionamento da Irlanda e sua sociedade com o Império em que ainda estão integrados.

A escrita flui à semelhança do dia, ora descrevendo o meio, ora expondo as reflexões, ora entrando nas memórias, ora expondo diálogos e muitas vezes com referências bíblicas, aos clássicos da Grécia antiga, às obras de Shakespeare ou a factos históricos. Ao longo do parágrafo pode ocorrer mudanças bruscas mesmo de sujeito, de tempo ou de assunto em sequência onde o leitor se pode perder e reencontrar, ou não como me aconteceu por vezes ou referências a outras momentos do texto.

Assumo, gosto de obras desafiantes difíceis e várias delas até me cativaram e me marcaram e me divertiram, como "O homem sem qualidades" de Musil, o conjunto de "Em busca do Tempo Perdido" de Proust, ou "A Piada Infinita" de Foster Wallace e até mesmo "A divina Comédia" de Dante, entre outros. Em todos os livros que acabo de citar entrei com medo e depois cativaram-me, mas este Ulisses não. Não sei se mais tarde darei continuidade à leitura e possa algum dia vir a tirar gozo da leitura deste romance, para já não tirei qualquer prazer, nem interesse. Motivos suficientes para interromper na página 168 quando ainda faltavam outras 562, não me submeto aos críticos da literatura que endeusarem esta obra, não estava a gostar minimamente e pronto.

Não recomendo a quem goste de apreciar uma história ou uma escrita agradável pela sua elegância e poesia. Salvou-se a capa desta edição que para mim é linda.