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terça-feira, 24 de junho de 2025

"Zona" de Mathias Énard

 

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"... estamos todos ligados uns aos outros pelas amarras indissolúveis do sangue heróico, pelas intrigas dos nossos deuses ciumentos..."

Estreei-me num dos mais originais escritores atuais de França: Mathias Énard, com uma das suas obras mais singulares e premiadas, "Zona".´

Francis quer deixar o seu passado e com uma identidade falsa está na estação de comboios de Milão numa ligação para Roma onde é abordado por um louco que lhe fala do fim do mundo. Este incidente irá levá-lo no resto da sua viagem a refletir sobre o que foi a sua vida, as suas relações amorosas e as repetições dos atos de violência por muitas outras vidas que também amaram e construíram a história da Europa. Numa sucessão de pensamentos, descobrimos o que ele foi depois de ter sido voluntário no exército croata na guerra civil dos Balcãs do final do século XX, nesta matou, foi violento, viu as atrocidades da guerra e perdeu amigos de luta. Na sua nova função circulou por toda a bacia do Mediterrâneo e recolheu dados de numerosos casos de comportamentos atrozes no passado do Continente, incluindo de seus antepassados, envolvendo homens de cultura como escritores, fotógrafos, filósofos, bem como espiões, militares e executivos políticos que foram gente degenerada e autores de tantos horrores.

Aos poucos vamos conhecer intervenientes e comportamentos medonhos na guerra civil de Espanha, no genocídio nazi, na Itália fascista, na luta da independência e ditadura da Grécia, na guerra de Israel com os seus vizinhos Palestinianos, passamos pelo Líbano, a Síria, a Argélia, Marrocos e Egito, recuamos aos homicídios da primeira grande guerra do século XX, ao genocídio Arménio e vamos até o tempo da batalha de Lepanto, a queda de Constantinopla sempre à sombra das vontades dos deuses gregos ávidos de sangue nomeadamente na batalha de Troia e sua redescoberta.

A narrativa é constituída por XXIV capítulos mas apenas um único parágrafo de mais de 400 páginas, sem pontos finais, com menos vírgulas face ao normal e sinais de interrogação limitados ao mínimo, quando geraria dúvidas não estarem lá. Nas deambulações de Francis muda-se de lugar, de tempo e de sujeito em cadeia. Este extenso parágrafo é intercalado por dois capítulos não sucessivos, onde é exposto um conto da guerrilheira Intissar da OLP em Beirute, este com pontuação regular e integrado num livro que Francis leva, lê e interrompe os seus pensamentos.

Apesar de várias personagens em torno de Francis serem ficcionais, há numerosos e extensos relatos em torno de pessoas históricas e ocorrências conhecidas com nomes no campo da cultura, da guerra e da política que vão desde Espanha ao Médio Oriente, ao genocídio dos judeus e dos arménios, do império Austro-húngaro que envolvem Cervantes, Caravaggio, Céline, Ezra Pound, Wlliam Burroughs, Malcom Lowry, Millan Astray, Rudolf Hess, Brasillach, Globocnik e muitos outros associados aos locais por onde a narrativa passa, com relatos de situações negras da vida pessoal deles, referências a livros, quadros e descrição de atrocidades públicas cometidas na bacia do Mediterrâneo, isto de modo a montar uma edifício gigante de horrores, derramamento de sangue e de loucuras que pesa na história de toda esta bacia, berço da civilização ocidental, onde tudo está ligado num campo de batalha sob os desígnios dos deuses gregos, cuja memória e culpa Francis de que se quer libertar.

Nem uma única vez Portugal é mencionado, fascismo, nazismo, sionismo, colonialismo e outros ismos terríficos ocorridos em espaços que não bordejem este mar não são desenvolvidos na obra, daí o Estalinismo e afins de esquerda passarem praticamente incólumes.

Descrições sublimes de algumas cidades como Salónica, Alexandria, Tanger, Beirute, Istambul, Veneza, Trieste, Barcelona e algumas ilhas Gregas e referências a obra de arte como canções, com destaque para Lili Marleen, livros históricos, de poesia e grandes romances, fotos, pinturas e acontecimentos históricos, que já fizeram notícias dos jornais do meu tempo como a guerra dos Balcãs e do Médio Oriente, entram cheios de vida neste parágrafo.

Uma técnica nova de escrita obriga o leitor a encontrar o seu modo de leitura, o que para começar não é fácil, aceitei as memórias narradas como uma sucessão de pequenas ondas que se vão espraiando na praia enquanto eu as olho meio mergulhado e me deixo banhar sem me preocupar com a anterior ou a seguinte, depois tudo flui e se vai encaixando no seu lugar, o tempo, o lugar e os autores e a partir daí é degustar esta ondulação que nos vai banhando até à última página. Gostei muito, apesar de não ser uma obra fácil, cheia de informações históricas e culturais, um texto que não deixa de desafiar um amante de literatura.

sábado, 7 de junho de 2025

"O Problema Final" de Arturo Pérez-Reverte

 

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"Tratando-se de seres humanos, nunca se deve atribuir à loucura o que se pode atribuir à perversidade"

Voltei ao versátil escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte com a leitura do seu mais recente romance, agora de género policial: "O Problema Final" mas onde, intencionalmente, revisita o estilo de tantos livros clássicos do mesmo género da primeira metade do século XX.

Em junho de 1960, numa pequeníssima ilha grega, ao largo de Corfu e com apenas um hotel, ficam retidos nove hóspedes por questões meteorológicas, quando se dá a morte de uma destes, inicialmente parece um suicídio num quarto fechado, só que entre os presentes encontra-se Hopalong Basil, um dos principais atores de filmes de Sherlock Holmes na primeira metade do século que encarnou muito do caracter da sua personagem, bem como, um escritor com algum sucesso de livros policiais, provavelmente medianos e conhecedor da obra de Conan Doyle, que são indicados pelos presentes para tentar desvendar o caso, que assim assumem o papel da dupla Sherlock e Watson. Após o aparecimento de indícios cada vez mais evidentes do crime, dá-se uma segunda morte, novamente em quarto fechado e quando o círculo aperta, a terceira surge com evidências bem diferentes. Será que o ator de Sherlock por excelência conseguirá igualar a sua personagem? Uma obra com surpresas até às últimas páginas. 

Numa excelente qualidade de escrita, a obra do género policial, onde a sagacidade e minúcia de observação do investigador está acima do género negro mais recente, em que a violência da descrições, o suspense do ato seguinte se sobrepõem à frieza da análise que vai sendo exposta na narrativa e discutida entre protagonista e seu auxiliar, com abordagens à psicologia e numerosas referências e citações da obra de Conan Doyle, menções de casos de Agatha Christie, Gaston Leroux, Poe entre outros escritores policiais. Assim, resulta uma obra que permite muitos sublinhados de citações que, frequentemente, são referenciadas a outras obras

Por o protagonista ter sito um ator famoso de cinema, a obra fala de numerosas estrelas da sétima arte da primeira metade do século XX, bem como de alguns realizadores, fazendo assim memória e homenagem àquelas luzes da ribalta de há longas décadas que encheram as colunas sociais e hoje quase esquecidos fora dos historiadores desta arte. Igualmente é colocado em confronto numerosos aspetos da representação e a realidade ou a forma de narrar pela escrita, desnudando estratégias de encaminhar o leitor ou o espetador ao longo do romance mistério, tendo em vista engrandecer a capacidade do detetive ou prender o público.

Cativante sobre todos os ângulos, eis uma obra-prima literária no género policial clássico, sem deixar de ser de entretenimento, sendo também uma grande homenagem aos grandes autores deste mesmo estilo de obras e do cinema. Gostei muito é, sem dúvida, um livro muito bom.