Páginas

segunda-feira, 26 de maio de 2025

"O Papagaio de Flaubert" de Julian Barnes

 
Excerto

O que é que nos faz querer saber o pior? É por nos cansarmos de preferir saber o melhor?... Ou, mais simplesmente, aquele desejo de saber o pior é a perversão favorita do amor?

Regressei novamente ao escritor britânico Julian Barnes de quem tudo o que li até hoje gostei e "O papagaio de Flaubert" não foi exceção.

O médico inglês, reformado e viúvo, Braithwaite, visita Ruão, na Normandia, como admirador do escritor Gustave Flaubert, onde se depara com dois papagaios embalsamados em dois museus e ambos a assumir a autenticidade de corresponderem à ave que esteve no centro de um dos contos famosos do autor. O dilema leva a uma dissertação sobre a vida do grande romancista francês do século XIX, iniciador do realismo literário, os seus defeitos, virtudes, a sua genialidade, os seus gostos, o seu bestiário, o seu comportamento público e incoerências privadas, as suas relações amorosas e culturais, o seu posicionamento perante os maiores autores da sua época, as suas viagens e pesquisas, os seus ditos e aspetos dos seus livros mais importantes, como "Madame Bovary". Tudo isto para no fim procurar descobrir a verdade sobre qual era mesmo o papagaio de Flaubert.

À semelhança de "O ruído do Tempo" cuja personagem principal é o histórico músico Shostakovitch do século XX; o romance que agora li, também não é bem uma biografia no verdadeiro sentido do termo sobre a figura histórica de Flaubert, seguramente não é uma coletânea de verdades sobre o mesmo, mas é um encadeado de factos sobre o escritor, com algumas especulações e reflexões sobre o mesmo, bem como uma análise sobre a literatura, a verdade no interior da ficção, a presença do autor e dos seus conhecidos dentro desta e uma discussão sobre a cultura e o papel da arte num contexto de época. Tudo isto muito bem escrito, com algum humor, irreverência e sentido crítico.

Talvez não seja uma narrativa fácil para quem gosta de seguir uma história linear simples, mas é sem dúvida um excelente texto, provavelmente uma obra de culto que se pode tornar num clássico do final do século XX. Gostei imenso.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

"O Jogo Preferido" de Leonard Cohen

 

Decidi ler este livro, que encontrei casualmente na Biblioteca Pública da Horta, por ser um apreciador de muitas das canções do Canadiano Leonard Cohen, que sabia também ter publicado livros de poesia, mas que não o conhecia como ficcionista. 

Em "O jogo preferido" Lawrence Breavman é o filho único de uma família judia rica e influente do bairro favorecido de Montreal: Westmount. Ele, com o seu amigo Krantz, vão descobrindo desde a infância a sexualidade ingénua com amigas comuns e depois, de forma cúmplice, vão amadurecendo as relações com outras jovens até que o seu pai morre precocemente, então, para se libertar do comportamento egocentrista da mãe, opta por uma vida de liberdade, de descoberta da cidade e das mulheres que vai conhecendo e com quem vai vivendo, assim estas vão desfilando na sua vida enquanto começa a desenvolver a sua carreira de poeta. No encadear das suas ligações amorosas em série, numa estadia em Nova Iorque, ele descobre Shell, apaixonam-se e passa a fazer um autoanálise do seu passado, a questionar-se e a procurar o seu caminho que se cruza com uma oferta para um emprego de verão na sua cidade.

Breavman, não sendo exatamente um alter ego de Cohen, tem provavelmente muito da vida do autor, do modo como estabelecia as suas relações amorosas, as transformava em amizades, bem como mostra o estilo de vida da juventude da minoria judia anglófona da cidade de Montreal, esta maioritariamente francófona, em meados do século XX.

Na narrativa, o escritor, ainda sem a projeção da sua carreira que o tornou um ícone do Canadá, coloca, por vezes, o protagonista a observar o seu passado e a descrever a cena como um espetador de si numa película cinematográfica. O texto pontualmente possui uma linguagem mordaz sobre o modo de viver das gentes como Breavman, os judeus e a cidade de Montreal e, muito provavelmente, Cohen.

Além das várias mulheres que defilam neste romance, uma criança que entra  na obra, que se deduz ser um autista a viver numa época em que a diferença era algo pouco aceitável, Cohen, através de Breavman, mostra uma ternura e compreensão que evidenciam o humanismo daquele cantor de ligações amorosas instáveis.

Gostei, embora não me tenha deslumbrado como com muitas das suas canções e poemas.

sábado, 10 de maio de 2025

"O Pequeno Amigo" de Donna Tartt

 

Acabei de ler o segundo romance da escritora norteamericana Donna Tartt: "O pequeno Amigo" que ficou conhecida, sobretudo, pelo seu terceiro dos três que escreveu e que li há uma década atrás "O Pintassilgo".

Harriet cresceu num ambiente familiar de uma pequena cidade do Mississipi e marcado pelo assassinato de seu irmão Robin, ocorrido quando ela era recém-nascida: uma mãe tornada apática e desinteressada das suas obrigações maternais; um pai que se distanciou para esquecer; várias tias-avós vizinhas que recordam os tempos faustosos o pai delas era importante que e vão olhando pela sobrinha e sua irmã pouco mais velha; e a criada que mantém a higiene e cuida verdadeiramente das meninas. Perto de entrar na adolescência, Harriet começa a interrogar-se o que se terá passado, faz pesquisas com o seu colega de escola Hely, questiona os familiares e vai deduzindo que o assassino saíra de uma família desestruturada que vive em roulotes: são traficantes, ladrões, a avó protege o mais velho e perigoso, outro é escravizado, outro um convertido obsessivo ao cristianismo e ainda um retardado. Harriet começa por delinear um plano para retaliar com a colaboração com Hely e a estratégia evolui para uma situação extrema e só quando é muito tarde ela descobre uma verdade chocante.

Donna Tartt narra sem pressa, todas as personagens são psicologicamente dissecadas ao pormenor, o decorrer da história desenrola-se incluindo as particularidades ínfimas diárias e com comparações do passado faustoso dos Clever, são retratadas todas particularidades de cada família envolvida e dos pensamentos de cada um.

A narrativa, modo de expor as personagens e o ambiente fazem lembrar Faulkner, mas também Mark Twain, este pela importância das crianças como protagonistas, contudo, depois da lentidão de 500 páginas, eis que nas últimas 100 entramos num estilo de suspense e a narrativa que passa a ser extremamente cinematográfica e com a grande tensão de fazer cortar a respiração.

Sem dúvida que se está perante um bom romance, apesar de por vezes cansar a lentidão nunca perde o interesse e ficamos a amar os protagonistas, para depois desembocar num grande final que nos deixa suspensos e a pensar.