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domingo, 26 de março de 2023

"Testemunha muda" de Agatha Christie

 


Voltei aos romances policiais da mestre inglesa Agatha Christie, agora com um investigação de Hercule Poirot com "Testemunha Muda".

Durante a estadia em sua casa dos sobrinhos, a idosa Emily Arundell sofre um acidente que é atribuído a um descuido com um brinquedo do seu cão, mas memória desta permite desconfiar de um caso premeditado vindo dos seus hóspedes ávidos da sua herança. Semanas depois ela morre naturalmente, mas deixou todos os seus bens à sua dama de companhia, só que, entretanto, alguém expeliu para Hercule Poirot uma carta esquecida da falecida para investigar o acidente. Este entra em ação e está convencido que, apesar das aparências, Emily foi assassinada. Por qual sobrinhos e familiares ou a empregada que de repente se tornou numa rica herdeira. O nosso detetive, com as suas células cinzentas, estuda a psicologia dos envolvidos e dos seus testemunhos para chegar à verdade.

Numa escrita simples, sem grandes rasgos artísticos, eis mais um caso típico ao estilo desta autora, narrado pelo ajudante Hasting que nos mantém entretidos com a sua imaginação ao tentar perceber o que de facto aconteceu ao acompanhar o seu mestre, mas onde só Poirot consegue ligar todas as pontas. Gostei, fácil de ler e muito acessível.

quinta-feira, 9 de março de 2023

"O Primo Basílio" de Eça de Queirós

 

Acabei de ler "O Primo Basílio" do grande escritor português do século XIX Eça de Queirós, de quem tenho toda a obra, de cuja edição tirei a foto da capa. Ao nível de ficção penso que me falta apenas ler o romance "A tragédia da rua das Flores", além de diversos contos dele.

Jorge, engenheiro de minas, casou-se há poucos anos com Luísa, vivem felizes e calmamente numa casa num bairro de Lisboa onde recebem vários amigos dele, à exceção da principal amiga dela, uma mulher divertida que tem uma vida de infidelidades conhecida. Num sarau falam de política, de cultura e um dramaturgo discute o final da sua peça sobre um adultério feminino e o papel do marido ao descobrir a traição. Pelo jornal Luísa sabe que o seu primo Basílio, com quem namorara antes, visitava a cidade e enriquecera no Brasil e Jorge tem de ir para o Alentejo em trabalho. O reencontro dos primos desperta a antiga paixão, estão criadas as condições para uma relação alvo dos olhares mexeriqueiros da vizinhança, a descoberta da traição pela sua criada torna-a alvo de chantagem e as tensões e incidentes levam à interrupção da relação e a uma vida infernal. Luísa, é auxiliada pelos amigos para uma solução condigna na volta de Jorge.

Um texto realista, cheio de pormenores descritivos do vestuário, mobiliário, ruas da capital, das características das personagens, onde também se faz a denúncia sarcástica dos defeitos da sociedade lisboeta no final do século XIX. Uma época onde os constrangimentos da mulher num meio machista são postos em cima da mesa e o retrato da vida social da capital, cheia de valores morais públicos e vícios privados que convivem com a hipocrisia e o mexerico que tecem um drama que se vai tornando cada vez mais intenso.

Um romance típico do realismo queirosiano que coloca a nu os defeitos da sociedade portuguesa, mesmo na sempre provinciana capital. Pode ser interpretado como uma lição de moral ou uma denúncia da dureza do machismo face ao papel atribuído à mulher. Fácil de ler num tratamento genial da língua portuguesa.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

"Tomás Nevinson" de Javier Marías

 

Regressei ao escritor que descobri e me cativou intensamente no ano passado: o espanhol Javier Marías. Agora li o seu último romance escrito antes do seu recente falecimento: "Tomás Nevinson". O título é o nome de uma personagem importante da anterior: Berta Isla, e este o da principal narradora desta obra, de quem Tomás era o marido, embora houvesse partes significativas também contadas por este e apesar da maioria da sua vida ao longo da duração do romance nos ser intencionalmente escondida. Confesso, que foi a curiosidade do ocultado que me levou adquirir este último para descobrir o que não fora relatado, só que a obra é uma sequela, continuando omissos os casos em que este narrador antes se envolvera.

Após tomar a decisão de abandonar a carreira nos serviços secretos ingleses sob as ordens de Tupra no fim do livro anterior, Tomás regressou ao trabalho oficial na embaixada e aproximou-se da mulher, sente agora os prazeres da vida comum, mas ficou-lhe o saudosismo dos tempos de ação à margem da lei e do conhecimento público e reflete sobre os males maiores que evitou com os seus atos ilegais. Mas Tupra volta a aliciá-lo para descobrir uma terrorista corresponsável de um atentando sanguinário (evento real) que se suspeita ser uma de três mulheres de passado desconhecido que vivem numa cidade nordeste de Espanha. Cede e, disfarçado de professor de inglês, aproxima-se destas, mas as dúvidas são muitas sobre qual delas é responsável de tantas mortes e as questões morais sobre a oportunidade de eliminar ou não alguém errado antes que esta possa matar de novo levantam-se. Houve quem teve a hipótese de disparar contra Hitler antes do mal que fez, será ético agir erradamente por precaução?

Este romance continua a misturar factos reais e ficcionais, bem como a levantar questões morais e éticas dos atos à margem da lei para evitar males maiores, e ainda a manter uma exposição de particularidades linguísticas que distinguem o inglês do espanhol para qualificar situações, pensamentos e comportamentos numa escrita sem pressa e cheia de sinónimos e adjetivos que criam extensos parágrafos onde se comparam expressões para referir os aspetos em discussão e, nisto, é um Javier Marías típico. Embora haja referências e menções a momentos retrospetivos relatados noutros romances do autor e repetição de personagens que já haviam surgido em O teu rosto Amanhã publicado décadas antes, esta obra pareceu-me menos perturbadora e com um desenrolar temporal mais linear e fácil de seguir. Gostei muito, mas tirando a surpresa de não descobrir as partes que buscava, não me provocou nenhum murro no estômago como outros que li dele, mas continuo fã e interessado em descobrir mais da sua obra.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

"Pastoral Americana" de Philip Roth


Citação

"Uma vez iniciado o inexplicável, o tormento da auto-análise nunca mais acaba."

Há bons livros cuja leitura nos faz sofrer, a que resistimos em entrar neles e "Pastoral Americana" de Philip Roth, que com esta obra ganhou um prémio Pulitzer, é um romance que em mim teve esse efeito, aliás, este escritor tem-me provocado luta, se "O Complexo de Portnoy" não consegui concluir a leitura, reconciliei-me com ele através de "A Mancha", agora valeu a pena, mas foi difícil.

Na escola, Seymour Levov, filho de um judeu luveiro tradicionalista, é um jovem alto, louro e um herói do desporto escolar, é um exemplo de sucesso e conhecido por "o sueco". Zuckerman era então um aluno com menos idade, amigo do irmão mais novo dele e um fã, ao crescer  torna-se num escritor famoso (alter ego?) e perto dos seus 60 anos encontra casualmente o sueco e este depois agenda um jantar para falar da importância e força do pai, só que foi um fiasco, só fala do orgulho que tem nos filhos do segundo casamento. Mais tarde, num jantar de antigos-alunos, quase todos com achaques e a lembrar os seus males e desilusões (muita da dificuldade de leitura ronda este evento), o narrador reencontra o irmão do sueco, veio ao funeral deste e descobre quanto foi frágil e infeliz foi a vida de Seymour que se sujeitara a agradar ao pai e ao mundo à sua volta, querendo ser um exemplo do sonho americano e enquanto o mundo se revoltava com a guerra do Vietname e mudava, ele amarrava-se a ideias ultrapassadas sem quebrar as barreiras que os preconceitos sociais lhe impunha, até ao choque que a sua filha lhe deu com o seu temperamento de adolescente rebelde e quando descobre quão falsa era a sociedade americana  que o cercava, desilusão que é um apelo à superação que o narrador transforma em livro das desventuras do seu ex-herói destroçado por aquela América cheia de vícios, contradições e preconceitos e assim monta esta pastoral americana que mais não é que um retrato duro da história deste país em mais de meio século XX.

O texto cruza memórias do passado das personagens, relatos do antigamente da geração mais idosa e eventos e reflexões da década de 1990 face à história, montando uma análise crítica da sociedade e fazendo uma psicanálise dos anseios e desilusões das personagens. Assim, Roth monta um puzzle e faz um retrato de um derrotado e das forças americanas em presença.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

"Travessuras da Menina Má" de Mario Vargas Llosa


 Citação

"fundava a sua teoria da inevitável desintegração da humanidade devido à gangrena burocrática"

Após vários anos, voltei ao laureado com o Nobel da literatura Mario Vargas Llosa, agora com o romance "Travessuras da Menina Má". O adolescente Ricardo tem o sonho de viver em Paris e apaixona-se no seu colégio em Lima, Peru, por uma recém-chegada que se diz chilena e o aceita de forma fugidia, mas descobre-se que a moça bonita é uma menina má, envolta em mentiras com o objetivo de parecer alguém de classe alta e ser alvo de atenções e desmascarada desaparece. Muitos anos mais tarde, Ricardo torna-se tradutor da UNESCO em Paris, faz um amigo peruano que recruta compatriotas para formação revolucionária em Cuba, entre estes surge a chileninha. Ressuscita a paixão que a menina má alimenta do forma fugidia, vai para Havana e torna-se amante de uma chefia guerrilheira, eis a a vocação da mulher: buscar alguém que lhe dê um estatuto social para ter vida de rica. Inventa passados falsos, mas todas as suas conquistas acabam mal e tem sempre à espera Ricardo, o seu menino bom, que a ama e a acolhe nos interregnos de nova fuga. Uma sucessão de casamentos e amantes em capítulos, décadas, países e cidades diferentes que construirão as memórias da vida de Ricardo que por amor nunca singrou verdadeiramente na sua vida.

A obra, bem escrita e com uma história bem narrada, origina uma trama ao estilo de novela com um amor difícil do protagonista vítima da menina má. O romance vale, sobretudo, porque cada capítulo faz um enquadramento histórico, geográfico social e cultural, assim assistimos sucessivamente à vida dos adolescentes num bairro de classe média alta em Lima na década de 1950, depois a expansão dos ideais da revolução cubana nos anos seguintes na América Latina vistos a partir de uma Paris, que é então o epicentro da cultura mundial com escritores e filósofos como Camus e Sartre, a admiração internacional da canção francesa e do cinema de autor como Truffaut. Depois, tudo muda para Londres entre a década de 60 e 70: o movimento hippie, a minissaia, os Beattles entre outros agentes da revolução cultural de então, uma das páginas que mais gostei do livro. Mas as aventuras da menina má em seguida saltam para uma Tóquio hiper-higienizada e de sentimentos escondidos mas capaz de realidades extremas que chocam. Para se avançar para tempos mais próximos onde é menos evidente a diferença dos costumes face ao presente, um centrado na esperança e desilusão da evolução política do Peru, outro em Paris e o último que mostra a abertura à cultura de Madrid após a ditadura, momento em que a história tem um fim.

Um livro fácil de ler, por vezes cansa a subserviência por amor do narrador à menina má, mas que se torna interessantíssimo por mostrar a evolução cultural no hemisfério ocidental e apontar por alguns dos nomes da literatura mais importantes da Rússia, pelo que se torna um magnífico guia nestes assuntos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

"Berta Isla" de Javier Marías

 

Citação

"Esse conceito moderno de «crimes de guerra» é ridículo, é estúpido, porque a guerra consiste sobretudo em crimes, em todas as frentes e desde o primeiro até ao último dia."

Voltei à leitura daquele que se tornou ou meu escritor contemporâneo preferido: Javier Marías, do seu penúltimo romance de 2017 "Berta Isla" que também não me desiludiu, até manteve o fascínio e levou ao interesse de leitura de outros dele, sobretudo o seu último publicado antes de morrer, cujo protagonista é o marido de Berta Isla: Tomás Nevinson, que deu título à obra.

Berta apaixonou-se no colégio pelo seu colega Tomás, um jovem sobredotado línguas, imitar pronúncias e com dupla nacionalidade (espanhola e inglesa) com quem iniciam uma relação. Na universidade ele vai para Oxford e ela fica em Madrid, só que Tomás volta diferente, mas casam-se. Ele parece perdido, inquieto e no tem muitas viagens a Londres de que não pode falar e na sequência de um incidente ameaçador descobre que o marido tornou-se agente secreto inglês, por isso terá sempre uma vida oculta e demasiadas ausências. Por amor aceita ser uma mulher em simultâneo casada e sem parceiro, viúva e mãe de órfãos de um pai desaparecido, amada e ignorada. Tudo isto gera um conjunto de reflexões sobre o outro, a sua intimidade e dúvidas sobre as funções do marido situadas no fio da navalha entre o bem e o mal.

Já falei nos anteriores romances que li sobre uma escrita riquíssima de sinónimos e sem pressa deste autor. Em Berta Isla, talvez, haja um menor confronto de vocabulário e as cenas curtas não se estendem por tão grande número de páginas como em O teu rosto Amanhã, ou Amanhã na Batalha pensa em Mim, existem personagens que são retomadas neste romance, todavia as reflexões éticas sobre as questões da realidade e não realidade, da vida e da morte ou existênciais estão igualmente bem desenvolvidas neste livro, tornando-o num Javier Marías puro, mas mais enxuto, sendo que neste há muito que se subentende sem se dizer, um técnica que o escritor domina com uma genialidade única. Gostei muito espero em breve ler mais romances deste que se tornou um escritor fetiche para mim, embora não escreva obras muito fáceis.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

"Ensina-me a voar sobre os telhados" de João Tordo

Citações

"Mas que sei eu sobre Deus? Não sei nada. Se somos feitos à sua imagem, então Deus não deve ser grande coisa ou, se for parecido comigo, é feio como a noite dos trovões."

"Cada um tem o seu deus, a sua maneira de acreditar no infinito."

"O medo impede-nos de acreditar naquilo que o medo nos diz que é impossível."

Voltei à leitura do escritor português contemporâneo, João Tordo que venceu o prémio literário José Saramago, destinado a laurear jovens que escrevem em português. "Ensina-me a voar sobre os telhados" uma narrativa em dois lugares, Lisboa e Japão e atravessa gerações.

No liceu Camões um professor suicida-se e deixa o corpo docente em estado de choque, um deles - ex-alcoólico cujo vício destruíra a sua relação familiar e membro dos alcoólicos-anónimos - decide então organizar um grupo de reflexão do cariz semelhante na escola para exorcizar as tensões desta morte, ali desfilam problemas e ansiedades. Mais tarde, ao abrir-se as reuniões a mais gente, surge um luso-japonês de comportamento estranho e sarcástico, que se aproxima do fundador. Este desenvolve uma relação de proteção ao nipónico que sofre de distúrbios, o que lhe vai gerar novas tensões entre a ânsia de o ajudar e a sua vida pessoal. O romance intercala a história problemática da família Tsukuda no Japão, temperada por abuso de poder, egoísmos e a obsessão de quererem levitar, objetivo que atravessou gerações até ao psicótico Henrique, um comportamento com vítimas e punições que ameaça destruir o professor viciado em ajudar, enquanto reflete sobre a vida real, o papel de deus e a infelicidade das limitações da humanidade e até do demónio.

Tordo tem uma escrita magnífica, poética, cheia de metáforas inovadoras e intercala a narrativa com reflexões sobre a vida contemporânea, os anseios e os receios da humanidade. Nesta obra, além de uma permanente sombra sobre tudo o que move as pessoas e as limitações do homem, tecem-se, pontualmente, considerações sobre as angústias das personagens que vão desfilando no romance, que talvez seja extensiva ao demónio representado pelas figuras de Doré, ou até a deus ou aos deuses, que estão limitados pela incapacidade de se libertarem pela morte.

Gostei muito de voltar a João Tordo e se no anterior livro iniciei com perspetivas muito elevadas não superadas, neste foram as minhas perspetivas ultrapassadas, em comum há uma certa angústia existencialista, mas considero "Ensina-me a voar sobre os telhados" um excelente romance que nos faz pensar sem impor nenhuma resposta. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

"Arsène Lupin - A Agulha Oca" de Maurice Leblanc

 

Acabei de ler o romance policial, escrito no início do século XX, "Arsène Lupen - A Agulha Oca" do francês Maurice Leblanc.

Um assalto ao Castelo de Ambrumésy e intercetado pelos seus moradores, onde tudo aponta que tenham morto um dos assaltantes sem hipótese de fuga, só não conseguem encontrar o corpo, também à partida levaram várias peças volumosas, só não dão pela falta de nada, entretanto foi perdida uma mensagem encriptada e deixada uma ameaça. Isidore Beautrelet, um jovem estudante de mente brilhante, penetra na equipa de investigação e deduz que pelas características inverosímeis da situação que se está perante uma operação do grande ladrão e cavalheiro Arsène Lupin, um mestre em disfarce e especialista em contaminar a investigação com delicadeza e simpatia ao participar no desenrolar do processo. Esta é uma personagem de vários livros do género que deram origem a séries de televisão e a filmes. Neste, a inteligência do jovem, ao ser a aproveitada pelas autoridades, é um desafio maior para Arsène Lupin que ora o atrai ora lhe prega armadilhas. O jovem apercebe-se que a genialidade do roubo está integrada num esquema  mais vasto que envolve segredos e tesouros nacionais históricos que vão desde imperadores romanos até aos grandes reis absolutistas de França descoberto pelo ladrão, o que lhe dá um grande poder, entrando-se numa investigação surpreendente onde Isidore e Arsène ora cooperam ora organizam embustes de modo a se descobrir uma realidade surpreendente.

Uma curiosidade das obras do escritor prende-se deste gostar de confrontar o seu personagem gaulês com o inglês Sherlock Holmes, este entra nos seus livros com o anagrama Herlock Sholmès a tentar vencer a inteligência superior de Arsène Lupin.

Um livro de suspense e lazer cheio de momentos emocionantes ao estilo das grandes obras populares do género aventuras, com surpresas, tensões e pistas que cativam até um final grandioso e também inesperado.

Uma obra muito fácil de ler, bem escrita, mas sem preocupação de arte literária, feito para entretenimento, entusiasmar o leitor e desafiá-lo com as pistas lançadas na narrativa. Muito bom neste género.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

"O Guarani" de José de Alencar

Citações

"Não se pode viver somente de ódio e desprezo"

"De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso da nossa alma?"

Acabei de ler um dos livros clássicos da literatura brasileira: "O Guarani" de José de Alencar, um romance histórico, escrito em meados do século XIX, cuja a trama se passa no início do século XVII quando Portugal perdera a independência e ficou sob a soberania espanhola, um período em que a fidalguia no Brasil oscilava entre a fidelidade ao antigo reino lusitano ou ao domínio filipino.

António de Mariz, insatisfeito com o domínio filipino, decide isolar-se para o interior da floresta da Serra dos Órgãos com a família e um conjunto de serviçais que defendem e se envolvem na gestão da sua fazenda. Esta situa-se numa zona selvagem com indígenas não convertidos, mas é o seu domínio fiel a Portugal. Num incidente, o índio Peri salva a sua filha Cecília e o fazendeiro agradecido acolhe-o, depois o salvador, por paixão, dedica-se de todo à moça para descontentamento da mãe desta e de sua meia-irmã. Paralelamente, noutro acidente, o ilho Diogo mata uma índia, o que leva a uma ação de ataque revanchista da sua tribo, enquanto um dos guardas de Mariz, ex-monge renegado por ambição de riqueza, também se apaixona por Cecília e decide criar uma revolta para raptar a donzela e levá-la para uma mina de prata que só ele sabe o segredo da localização. No nestes perigos e paixões é Peri, o herói gentio, quem, com o conhecimento de sobrevivência na floresta e dedicação total à jovem, tentará, in-extremis, salvar a família e a jovem lutando o preconceito de uns e o ódio de outros em momentos de grande suspense e surpresa.

Trata-se de uma narrativa tipicamente do século XIX com cariz nacionalista, mas que prenuncia a literatura romântica. As personagens tendem a ser boas de todo ou completamente más, podendo evoluir de um campo ao outro. José de Alencar descreve com grande pormenor, abuso de figuras de estilo e em tom poético a floresta atlântica, os costumes indígenas, a subserviência religiosa e os preconceitos da época e da evangelização. A obra, que li em e-book, tem um conjunto de notas que explicam numerosos aspetos históricos, florísticos, faunísticos e dos costumes dos povos descritos na trama, o que enriquece em muito o conteúdo do texto sem o tornar fastidioso.

A história dá para compreender o contexto de comportamentos, hoje tido por errados, dos colonos de então, vivendo numa sociedade dominada por uma religiosidade exacerbada a enfrentar culturas animistas e representantes de um reino à conquista e em missão de evangelização destes povos pagãos que viviam livres nos seus domínios há séculos, um choque cultural semeado de preconceitos que José de Alencar procura subtilmente denunciar enquanto eleva a dignidade do índio. Todavia o romance também é escrito numa época em que não a de hoje, a sociedade não era ainda tão laica, nem liberta de muitos desses preconceitos, além de regida por uma castidade aguerrida e dominada pelo masculino, sendo evidente o esforço de equilibrar e justificar a crítica perante a moral e ética aceite no século XIX, daí a riqueza cultural desta obra que a transforma num clássico e permite a reflexão sobre o passado. Fácil de ler, gostei e por isso a recomendo a qualquer leitor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"A Informação" de Martin Amis

 

Sabia que o estilo de narrativa de Martin Amis me criava dificuldade de concentração na leitura do texto, este é o terceiro romance do escritor que lia, contudo ando numa fase pessoalmente difícil e onde esforço não é compatível com lazer e prazer e por isso não concluí a leitura da obra, apesar de tudo confesso que nos meus bons momentos teria me divertido com as agruras desta vida contemporânea.

A informação trabalha o ódio entre um escritor que fez 40 anos de idade, que se considera de qualidade, mas que escreve livros que não têm saída devido à dificuldade leitura dos mesmos, e outro amigo pessoal de igual idade que com uma escrita e assuntos banais é um sucesso editorial. Assim o primeiro decide-se vingar sobre o invejado medíocre escritor.

Houve momentos em que me diverti na crítica sarcástica e mordaz da vida urbana dos tempos modernos e frustrações da meia-idade e outros onde não me consegui concentrar para os pormenores. Talvez volte um dia à obra. Por agora uma pausa, mas ainda li até à página 203, um sinal promissor que valeria a pena ler em bons momentos, mas a cultura não precisa de me gerar sofrimento e ansiedade sem a devida compensação de tal também me dar um prazer maior, o que com este livro não estava a conseguir neste momento.

sábado, 22 de outubro de 2022

"As duas Águas do Mar" de Francisco José Viegas

Acabei de ler "As duas Águas do Mar" um romance do escritor português Francisco José Viegas, que há mais de três décadas dá vida aos seus investigadores melancólicos da judiciária: Jaime Ramos, a trabalhar no Porto, e o seu colega e amigo Filipe Castanheira, a exercer as suas funções em Ponta Delgada, o que tem permitido uma descrição única das paisagens, vivências e especificidades  da cidade nortenha e das ilhas dos Açores.
Num local ermo na ilha de São Miguel surge o corpo de uma mulher, chamado ao local, Filipe Castanheira vem a saber depois que a autópsia nada prova de violência ou assassinato, apesar do lugar distante para um turista ir mergulhar no mar sozinho. No mesmo dia, em Finisterra na Galiza, Espanha, um homem é assassinado a tiro na praia e Jaime Ramos é convidado a investigar, apesar de ser alguém cujos serviços de informação assumiram o caso e não se tratar de um assunto da judiciária. Todavia os dois colegas amigos em pouco descobrem que Rita e Rui Pedro eram namorados, será coincidência as duas mortes em simultâneo tão separadas no espaço e unidas pelo mar?
Os romances de Francisco José Viegas são classificados como policiais, na realidade, estes narram vivências melancólicas nos Açores e no Porto dos investigadores por criados pelo escritor, conhecemos as respetivas paixões íntimas, a solidão de cada um e o amor de ambos pela gastronomia e confeção de grandes pratos e são estas as vertentes mais intensas dos seus livros. Pelo meio vão-se desenrolando as investigações dos casos policiais que têm entre mãos ou que lhe levantam dúvidas de se serem de facto crimes camuflados de acidentes.
As duas águas do mar é precisamente este género de obra, com descrições das ilhas de São Miguel, Faial e da Galiza cheias de componentes meteorológicas, confeções de pratos cheios de sabores e odores as que se juntam as mágoas interiores dos protagonistas que temperam a obra, até se descobrir que os seus mortos também foram vítimas de criminosos, gente sofrida de amores, solidão e nostalgia, os mesmos sentimentos norteiam a vida de Jaime Ramos e Castanheira.
Gosto muito destes romances cheios de sentimento e descrições únicas das paisagens e vida dos locais por onde a narrativa vai passando. Fácil de ler e recomendo pela sua originalidade e melancolia.

domingo, 9 de outubro de 2022

"Amanhã na batalha pensa em mim" de Javier Marías

 

Excertos

"ninguém faz nada convencido que é mal feito, acontece apenas que em muitos momentos não podemos ter os outros em conta, ficaríamos paralisados, às vezes não podemos pensar senão em nós mesmos e no instante presente, não no que vem a seguir."

"Há coisas que devemos saber de imediato para não andarmos pelo mundo um único minuto com uma convicção de tal forma errada que o mundo é outro para nós."

Seis meses após a descoberta de Javier Marías, que então era ainda um autor vivo e para mim desconhecido, voltei àquele que considero o maior escritor que se me revelou nos últimos tempos e, entretanto, já falecido. Se tanto me impressionou então o romance em três volumes "O teu rosto amanhã", a minha admiração por este romancista espanhol não diminuiu nada com "Amanhã na batalha pensa em mim", mesmo sendo uma obra de menor envergadura em extensão.

Quando Víctor Francés vai para a cama de Marta, uma recém-conhecida e casada e em casa de quem  fora convidado a jantar, deparou-se com um mal-estar desta que acaba inesperadamente por lhe morrer nos braços. À surpresa inicial, seguem-se as indecisões perante a necessidade de deixar o filho dela em segurança e a conveniência de comunicar o facto ao marido ausente no estrangeiro, a que se junta as comunicações comprometedoras no gravador de mensagem entretanto recebidas. Então o protagonista opta por uma solução de ficar incógnito e se sair silenciosamente, mas as questões pendentes levam-no a aproximar-se da família de Marta e do seu marido, bem como a refletir na sua anterior relação com a ex-mulher e no fim a conhecer consequências imprevistas da sua opção.

Tão importante como os acontecimentos que vão sendo narrados e que fazem fluir a narrativa gota a gota, é a pormenorização dos momentos que se desenrolam no romance, a dissecação  das personagens envolvidas e as reflexões que se vão tecendo e entrelaçando em torno de tudo o que se passa no livro. 

A narrativa de Javier Marías não é para se ler em ritmo acelerado, é para se ir degustando calmamente cada frase, cada pensamento, cada aparte, cada reminiscência da própria obra (não é frequente um autor citar-se a si mesmo e menos ainda fazendo-o com frases e ideias expressas na mesma obra, Javier fê-lo e soube-o fazer no que queria realçar). Por vezes há que reler a densa teia de ideias lançadas ao longo do parágrafo. Não há perigo porque não é uma repetição, há sempre um pormenor e uma perspetiva que brota a cada nova leitura de uma parte do texto.

Tal como em Proust e Faulkner, mas sem qualquer imitação destes, a narrativa de Javier Marías é um fluxo contínuo de ideias, de pormenores dos acontecimentos narrados, de reflexões do momento vivido, de pensamentos dos respetivos efeitos e de justificações de comportamentos reativos do ser humano, expondo as situações e as personagens sobre múltiplos ângulos de visão e de abordagem em que o passado e a memória fundamentam parte do presente e este é condicionado pelas várias possibilidade do futuro por se concretizar. Temas como a vida e morte, presença e ausência, memórias e desejos a concretizar vão montando quadros psicológicos com mais pontos de que muita pintura impressionista.

Nem sempre concordo com todas as deduções e afirmações que vão sendo libertadas ao longo do fluxo narrativo, mas estou certo que nem Javier Marías, ou não haveria lugar a algumas possíveis contradições lançadas à reflexão na obra, mas sublinhar a riqueza de pensamentos colocados nos diferentes parágrafos dos livros deste escritor que já li levava quase a um sublinhado contínuo de todo o texto.

Para mim, há escritores que são reconhecidos devido à atribuição de um prémio Nobel da literatura, há outros que enobreceram o prémio por estarem na lista dos laureados por ele e há aqueles que teriam enobrecido se tivessem recebido este galardão literário no período da vigência deste, neste grupo coloco Tolstoi, Proust e agora, estou convicto também Javier Marías. Este romance foi premiado com outros galardões como Fastenrath, Internacional Rómulo Gallegos e Fémina Étranger.

Gostei mesmo muitíssimo do romance, mas, tal como já antes alertara na outra obra, não é um livro de leitura fluída rápida e fácil devido à densidade e riqueza de conteúdo narrativo, neste caso menos lexical, e, como tal, recomendo-o a leitores maduros na apreciação da beleza da escrita e da riqueza literária e pensamentos do um texto.

sábado, 24 de setembro de 2022

"A dança dos Ossos - Antologia do conto gótico luso-brasileiro" Vários Autores

 

Uma coletânea de 27 contos de teor gótico, 13 de autores lusos e 14 de escritores brasileiros, selecionada por Ricardo Lourenço, que cobrem este género literário desde meados do século XIX até às duas primeiras décadas do XX.

No conjunto existe escritores de grande renome literário como Eça de Queiroz e Machado de Assis, outros conhecidos e alguns de quem nunca ouvira falar, a heterogeneidade de autores também se reflete na diversidade dos contos, alguns quase da dimensão de novela, outros curtos e muitos entre uma a duas dezenas de páginas.

Desde lendas medievais, passando por pseudociências mais atuais, bruxas, espiritismo, até narrativas onde o sobrenatural é apenas fruto da sensação extremada que conduz ao terror ou à suspeita deste, alguns com lições de moral, outros inócuos, a coletânea vale sobretudo pela informação biográfica dos seus autores, do seu papel na história da literatura, da cultura ou da política do seu país e ainda pela amostra do género pouco divulgado em Portugal.

Confesso que alguns contos gostei mesmo muito, outros divertiram-me, nenhum me tirou o sono e também houve alguns (poucos) que nada me disseram, mas valeu a leitura do conjunto "A dança dos ossos" e recomendo a quem se interessa por este tipo de literatura mais negra, que explora medos das pessoas, fenómenos menos claros para a ciência e as crenças e superstições existentes nestas duas sociedades de língua portuguesa. 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

"Homens Bons" de Arturo Pérez-Reverte

 

Citação

"Uma biblioteca não é algo para ler, mas sim uma companhia - disse ele, ... Um remédio e um consolo."

Em pouco tempo regressei a este escritor espanhol: Arturo Pérez-Reverte, agora com uma obra que quando foi traduzida logo quis ler: "Homens Bons", por ser um romance que fala da importância dos livros e de pessoas que lutam pela sobrevivência e propagação de livros. Neste caso, a aquisição, no século XVIII, pela Real Academia Espanhola, da primeira edição da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert, uma coletânea de saberes que é um marco da época das luzes e considerada subversiva pela Inquisição ao dar prioridade à verdade científica e à razão nos seus artigos em detrimento da Bíblia e diretrizes religiosas como era regra até então.

Dois membros da Real Academia Espanhola são nomeados para irem de Madrid a Paris comprar a primeira edição de Enciclopédia Francesa, então o expoente máximo da época das luzes, mas ignoram que outros dois membros, em segredo, um jornalista por conservadorismo doentio e outro filósofo medíocre por inveja do reconhecimento do saber de outros, conspiram para que a viagem não concretize este objetivo. Pedro Zárate e Hermógenes Molina, duas pessoas muito diferentes mas amantes do saber, no meio de dificuldades arrancam na sua atribulada deslocação sem perceberem que alguém os segue e conspira. Na cidade das luzes os protagonistas descobrem um mundo diferente, grandes nomes das ciências e cultura, como o próprio Diderot, além de outros sábios e amigos de Voltaire e Rousseau, bem como um abade revoltado contra a ignorância que a igreja impõe e o despotismo da elite absolutista que escraviza a população, encontramos também uma dama que domina a vida social da cidade, o que permite pôr a nu uma capital de contrastes, vícios e onde nem tudo é razão e luz.

Pérez-Reverte vai romanceando esta viagem histórica verídica, intercalando textos de como investigou e encenou os principais episódios do livro e narrando as entrevistas que realizou, referenciando os livros que leu. Monta assim uma série de textos que ora são o desenrolar do romance, ora são o trabalho do escritor, mas, à semelhança de Proust na sua obra-prima, aqui o autor também não é exatamente o escritor, uma série de pormenores, como a referência aos seus livros torna evidente que também este autor é uma personagem ficcionada, um alter-ego que não é exatamente Pérez-Reverte.

O conjunto do romance permite fazer um retrato da época, mostrar a realidade que então se vivia numa Espanha conservadora, dominada pela Inquisição e com um rei que queria mudar o estado das coisas sem conseguir sempre sobrepor-se aos poderes instalados. Assistimos ao ambiente explosivo que se vivia então em Paris, cheia de contradições em choque que prenunciavam não só a revolução francesa, mas também a chacina a ela associada  cujas ideias que marcam as luzes e a razão não previram.

Um romance que não só ensina como foi aquela época tão marcante no século XVIII, como cultiva o amor pelos livros, o saber e apela ao fim da ignorância baseada no misticismo sempre em luta com a verdade resultante da ciência.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

"Maigret e os crimes de Montmartre" de Georges Simenon

 

Tenho na memória da minha adolescência os episódios televisivos do inspetor Maigret, passados em Paris, quase sempre associados a meteorologias desagradáveis e sei que li diversos casos por ele resolvidos nessa época inicial das minhas leituras de adulto, eis a razão porque quis reencontrar-me com o escritor belga Georges Simenon e ao deparar-me com este "Maigret e os crimes de Montmartre" na biblioteca pública da Horta.
Uma bailarina de striptease após o fecho do seu bar noturno dirige-se alcoolizada à esquadra de Montmartre para avisar de um crime de uma condessa cuja preparação ouvira durante o trabalho. A polícia faz o relatório e no dia seguinte a mesma tenta desvalorizar o seu depoimento, nesse mesmo dia é assassinada em casa e mais tarde no bairro é encontrada morta uma mulher com tal título nobiliário. Maigret entra em ação não só explorando a vida no bar, descobre que um dos guardas estava apaixonado pela artista e pesquisa as relações desta com os patrões e colegas, envolvem-se outros guardas que descobrem que um médico, um homossexual e a segunda vítima estão unidos pela droga e há um elo comum a todos vindo de um passado distante que vive no bairro, mas ninguém fala, embora muitos pareçam saber algo mais até ao desenlace final.
A um ritmo paciente debaixo de um tempo frio e chuvoso a investigação prossegue, é um policial típico liderada por um comissário público e sem grandes temas em discussão para além do caso, por isso surge-nos uma história cinematográfica, pouco extensa, mas bem escrita e articulada, onde os pensamentos e sentimentos de Maigret são o principal tempero humano com poucas personagens. Gostei, fácil de se ler e adequa-se a um episódio policial calmo e bem redigido.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Vercoquin e Plâncton de Boris Vian

 

Acabo de ler o primeiro romance do escritor francês Boris Vian, escrito no final da primeira metade do século XX e sua obra de estreia neste género literário: "Vercoquin e Plâncton".

O livro pode ser dividido apenas em 3 partes, apesar de o estar em 4. Na primeira, Major organiza uma festa surpresa em sua casa e jardins onde conhece Zizanie e se apaixona. Ficamos a conhecer numa linguagem mordaz e surrealista o ambiente  eufórico e libertino destas festas com muito álcool e liberdade sexual a romper com todos os costumes e restrições ocorridas durante a guerra em Paris. Na segunda parte, o Major através do seu "Mordomo" tenta pedir a mão de Zizanie ao seu tutor que trabalha numa empresa de criação de burocracia e ficamos a conhecer as peripécias absurdas para o alcançar o noivado, bem como o efeito bola-de-neve e voraz da burocracia e dos funcionários que tentam fugir às suas obrigações. Na última entramos novamente numa festa para o noivado do Major e onde se vão cruzar todas as loucuras e surrealismo de uma forma avassaladora .

Estamos perante uma paródia surrealista e cómica sobre a loucura, os excessos de diversão e os liberalismos dos costumes em que entrou a juventude que se seguiram aos tempos de contenção da segunda grande guerra, terminada poucos anos antes deste romance ser publicado, bem como, uma crítica sarcástica dos exageros e inutilidade de muitos serviços e procedimentos burocráticos impostos pelos sistemas administrativos e a forma como os funcionários e dirigentes contornam os controlos laborais.

Um escritor que se tornou de culto em meados do século XX pela sua originalidade, com diálogos estranhos e situações que retratam a sociedade de uma forma única.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

"Para onde vão os guarda-chuvas" de Afonso Cruz

 

Excerto

"Andamos todos em órbita a nós mesmos à procura de uma porta que nos leve para dentro da nossa alma. Procuramos entrar dentro de nós, mas é um mundo que nos está vedado."

Acabei de ler o romance "Para onde vão os guarda-chuvas" do português contemporâneo Afonso Cruz. No início sabemos que o Sr. Elahi, empresário muçulmano num país do oriente, adotou uma criança cristã e tenta convencer a sua irmã a casar-se com um hindu, no que esta grita: vergonha!, por todos estes desvios à tradição secular da família. Então percebemos que a situação resultou de graves problemas trágicos do passado que afetaram a vida do fabricante de tapetes. Assim, através de episódios, curtos, que cobrem a infância dos atuais membros da família, vamos conhecer todas as desventuras e fenómenos fantásticos por que passaram, vivências a coberto das crenças e dos mitos religiosos que condicionam as suas vidas que se cruzam com saberes do islamismo, hinduísmo e cristianismo radicado na filosofia mítica oriental. Afinal, tal como as pessoas que perdemos, os guarda-chuvas perdidos nunca mais aparecem, logicamente devem ter um destino semelhante...

Afonso Cruz tem uma narrativa muito própria e cheia de metáforas que mistura a sabedoria mítica e transcendente oriental com a racionalidade fria e laica do ocidente contemporâneo, uma teia de conceitos que nos surpreende e ao juntar a perspetivas infantil com a contemplativa dos crentes e maldosa dos oportunistas, numa delícia de situações e deduções que vão do fantástico ao racional, uma crítica de comportamentos sociais transversais a todos os povos e personalidades sem agressão dos alvos preconceituosos, nem glorificação das vítimas inocentes e ingénuas movidas pelos seus sonhos de serem felizes.

Cheio de citações de sabedoria (não sei se inventadas de facto pelo autor ou baseadas em textos orientais, mas esta mistura dúbia entre o real e o ficcionado é uma característica comum de Afonso Cruz, um dos escritores mais originais da literatura portuguesa atual de que já li várias obras). Gostei e recomendo.