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domingo, 28 de janeiro de 2018

"O Relatório de Brodeck" de Phillippe Claudel


Citações do livro
"A imbecilidade é uma doença que casa bem com o medo."
"Bastam a raiva e o ódio para desarranjar os cérebros. São aguardentes mais violentas."

Em "O relatório de Brodeck", do francês Philippe Claudel, o protagonista, é encarregado pelo Presidente do lugar a escrever um relatório em nome da população que justifique o assassinato coletivo, perpetrado pelos adultos da aldeia, de um visitante que ali se estabelecera há uns meses numa pousada e agitara as consciências pelo seu exotismo e simpatia, só que Brodeck não assistiu ao crime e logo na primeira frase do romance assume "não tive culpa de nada.".
A obra decorre no pós-guerra entre o dia em que o narrador interrompeu a sessão do crime da aldeia até à entrega do relatório que teve de escrever. Entretanto, Brodeck vai-nos narrando a sua via de órfão não natural da aldeia, o acolhimento por uma mulher e os acontecimentos mais importantes da aldeia fechada ao exterior, desconfiada por instinto de sobrevivência e onde todos são culpados de algo, inclusive contra o autor, denunciado na guerra como estrangeiro para um campo de concentração que o ensombra. Paralelamente, vamos descobrindo a chegada do assassinado, nunca disse o nome e ficou conhecido por "De Anderer" (o outro), mas que com o seu sorriso desconcertante e desenhos espelhava o mal que pesava na consciência local e desejavam esquecer.
Talvez por o escritor também  ser argumentista, a obra evolui de forma cinematográfica, enquanto o texto, cheio de metáforas, tem um encadeado de alegorias cujos acontecimentos fazem-nos refletir sobre ideias subjacentes. Nunca é dito qual é a guerra, subentende-se a II Grande Guerra. Nunca é dito o local, deduz-se ser um território fronteiriço da França com a Alemanha (Claudel é natural dessa faixa), daí a desconfiança para com os de fora. Não sabemos a raça de Brodeck, apenas é diferente. O povo tem um dialeto próprio germânico, tal como a Lorena do escritor, com imensas frases no livro sempre traduzidas, incluindo os equívocos malévolos que escondem.
O romance torna-se incómodo pelas perguntas que levanta, pela evidenciação do mal que somos capazes de fazer, nos momentos extremos ou fáceis, a opressão que tal provoca na consciência individual e coletiva e a reação contra quem de alguma forma nos faz lembrar aquilo que nos pesa.
O livro é muito fácil de ler, apesar de se subentender sombras a pesar quase todas as passagens, pouco extensos e marcante. Gostei muito.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

"A Resistência" de Julián Fuks


O pequeno romance "A Resistência" do escritor Brasileiro Julián Fuks, filho de refugiados políticos Argentinos, o mais recente vencedor do prémio literário José Saramago, é uma obra em estilo de coletânea de curtas memórias do narrador sobre a sua relação com o irmão mais velho, adotado quando recém-nascido pelos pais, e a gestão das questões em torno da integração do mesmo no agregado de acolhimento. Esta situação permite em simultâneo narrar a história de toda a família que, por coincidência, tem grande similitude com a do próprio escritor: também são pais refugiados da Argentina em São Paulo, servindo esta técnica para denunciar alguns dos horrores da ditadura de onde saíam e a curiosidade de se fixarem num país, ainda não democrático, mas onde a simpatia Brasileira permitiu adotarem a nova terra como sua.
A escrita toma a forma de uma sucessão de crónicas brilhantemente escritas, com ternura, elegância e poesia onde o narrador as inicia servindo-se de uma frase ou palavra como mote para reflexões em questões psicológicas, de consciência, de perseguição política, de nostalgia do refugiado e da integração num meio diferente, criando uma espiral de pensamentos e frases fortes que montam um rendilhado em torno da ideia central dessa memória, enquanto o conjunto dos textos forma um caleidoscópio que cria uma visão multicolorida de grande sensibilidade estética dos vários problemas expostos no romance.
Um pequeno livro onde Julian lapida a língua portuguesa e demonstra como ela pode brilhar tanto quanto um diamante e soar com a sonoridade de uma sonata maravilhosa. Uma narrativa temperada pelo amor humano que mostra como a ternura também pode ser uma ferramenta de denúncia das dificuldades da vida e da injustiça política. Gostei muito desta pérola literária e recomendo a sua leitura.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

"Piada Infinita" de David Foster Wallace


Penso que este livro "Piada Infinita", no Brasil "Graça Infinita", do americano David Foster Wallace, foi o  desafio mais difícil de leitura de um romance que enfrentei até hoje e, apesar de tanta dificuldade, gostei de o ler.
Não é tarefa fácil descrever este calhamaço de estilo pós-moderno tendo em conta a complexidade do seu conteúdo, numerosos personagens e quantidade de situações, com a inclusão de informações técnico-científicas enciclopédicas misturadas com paródia, narrativas deprimentes, violentas, sarcásticas e irónicas com uma subtil crítica política e social subjacente, tudo isto narrado num futuro próximo, mas em parte em continuidade com o presente e ainda com uma escrita complexa, por vezes com fluxo de consciência em parágrafos que se arrastam por várias folhas sem ponto final, expostos numa letra miudinha com centenas de notas do autor no final do livro em letra ainda menor e ainda com sub-notas às mesmas num cartapácio com cerca de 1200 páginas. Uuf!!
Contudo, vou tentar resumir este montão de texto.
Num futuro próximo e por questões de interesse estratégico dos Estados Unidos da América (EUA), este forma uma confederação com o Canadá e o México a ONAM (Organization of North America Nations); problemas ambientais graves obrigam ao despovoamento de grande parte do nordeste dos EUA e do sul do Quebec tornando-se esta região num local de depósito de lixos perigosos de grande parte do continente e onde a poluição cria mutações genéticas nos animais geradoras de mitos de monstros. Os quebequenes criam um grupo terrorista separatista da ONAM com heróis que passaram num teste de resistência num jogo de saltar diante de trens em andamento, onde muitos dos sobreviventes ficam mutilados e por isso estão numa Associação de Cadeiras de Rodas (AFR); enquanto isto, os norte-americanos se deixam levar por uma vida de entretenimento e prazer como supremo desejo e ideal, isto é divulgado e promovido pelas novas redes de computadores e de suporte digital e a força do capitalismo cria um calendário oficial baseado num vencedor anual de subsidio à ONAM.
Nesta realidade estranha, um cidadão com um passado complicado funda uma escola de ténis de elite em Boston, de onde os seus estudantes originam muitas personagens tal como a família fundadora de origem mista quebequense e americana. Junto à escola situa-se um centro de reabilitação de toxicodependentes e alcoólicos que constitui outro grupo de personagens e entre ambos circulam estupefacientes em abundância na busca de prazer, enquanto o fundador da escola se tornou num realizador de filmes de culto e criou a obra perfeita para  o prazer "Piada Infinita" que quem vê fica de tal forma extasiado que se torna inválido para outra tarefa humana e para sempre dependente do seu visionamento, enquanto o autor se suicida com uma técnica rebuscada. Entretanto esta fita parece passar a ser distribuída pelos separatistas da AFR como forma de derrotar os EUA e a sua agência de inteligência, com agentes que são uma caricatura hollywoodesca, passam a procurar o filme entre terroristas, toxicodependentes, agentes duplos, triplos, travestis, líderes mafiosos, estudantes, gente de dupla nacionalidade, estropiados por razões várias, etc. Entretanto, há esta amálgama, que mostra uma grande diversidade dos excluídos nos EUA, no mundo da escola disserta-se sobre o ténis e os adolescentes desenvolvem jogos de guerra com recurso às novas tecnologias como estratégia de amadurecer a veia desportista, enquanto ao lado, os alcoólicos anónimos falam sobre reabilitação com memórias e descrições das alucinações efeitos de drogas e do seu submundo, técnicas do seu manuseio e sua produção farmacêutica, tecendo-se uma teia difícil de desatar que cruza, em parte, os dois mundos e uma estória policial louca.
A escrita é tão diversificada quanto as personagens. Há diálogos alucinados com influência do inglês e francês canadiano parodiado, tal como abuso dos estereótipos dos dois povos aqui vivendo no seio da região universitária do MIT, mas onde se concentram os emigrantes portugueses e brasileiros na área de Boston, que também não são poupados. Num repente passa-se a dissertações técnicas sobre drogas e suas sensações e parágrafos densos e extensos com mudanças bruscas no seu interior de momento, lugar e situações. Surgem erros ortográficos, neologismos e pormenores intrincados de ciência com cultura enciclopédica que geram uma paródia que, por vezes, é deprimente, noutras com gírias das classes excluídas da sociedade e descrições deste submundo e com recurso ao calão, descrições fisiológicas degradantes, sarcasmo e ironia que até pode ser ofensivo e aterrorizante.
Foi uma luta para não me perder nesta loucura onde os devaneios dos alucinogénios convivem com a erudição e as culturas dos excluídos, por vezes de modo repetitivo e extenso, pelo que me admira concluir com o seguinte: o livro cativou-me durante um mês e gostei, pois diverti-me imenso.
Apesar de cativado, só o recomendo a quem estiver disposto a um desafio forte e capaz de aceitar que a arte brinque com a crueza de alguns aspetos degradantes da vida e seja capaz de pensar na crítica indireta sobre o caminho que uma sociedade sem valores nos pode levar e não se escandalize com pormenores que satirizam o catolicismo como forma de atingir as religiões, mas que também tem exemplos que uma ternura profunda, capazes de comover os corações empedernidos.