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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

"Piada Infinita" de David Foster Wallace


Penso que este livro "Piada Infinita", no Brasil "Graça Infinita", do americano David Foster Wallace, foi o  desafio mais difícil de leitura de um romance que enfrentei até hoje e, apesar de tanta dificuldade, gostei de o ler.
Não é tarefa fácil descrever este calhamaço de estilo pós-moderno tendo em conta a complexidade do seu conteúdo, numerosos personagens e quantidade de situações, com a inclusão de informações técnico-científicas enciclopédicas misturadas com paródia, narrativas deprimentes, violentas, sarcásticas e irónicas com uma subtil crítica política e social subjacente, tudo isto narrado num futuro próximo, mas em parte em continuidade com o presente e ainda com uma escrita complexa, por vezes com fluxo de consciência em parágrafos que se arrastam por várias folhas sem ponto final, expostos numa letra miudinha com centenas de notas do autor no final do livro em letra ainda menor e ainda com sub-notas às mesmas num cartapácio com cerca de 1200 páginas. Uuf!!
Contudo, vou tentar resumir este montão de texto.
Num futuro próximo e por questões de interesse estratégico dos Estados Unidos da América (EUA), este forma uma confederação com o Canadá e o México a ONAM (Organization of North America Nations); problemas ambientais graves obrigam ao despovoamento de grande parte do nordeste dos EUA e do sul do Quebec tornando-se esta região num local de depósito de lixos perigosos de grande parte do continente e onde a poluição cria mutações genéticas nos animais geradoras de mitos de monstros. Os quebequenes criam um grupo terrorista separatista da ONAM com heróis que passaram num teste de resistência num jogo de saltar diante de trens em andamento, onde muitos dos sobreviventes ficam mutilados e por isso estão numa Associação de Cadeiras de Rodas (AFR); enquanto isto, os norte-americanos se deixam levar por uma vida de entretenimento e prazer como supremo desejo e ideal, isto é divulgado e promovido pelas novas redes de computadores e de suporte digital e a força do capitalismo cria um calendário oficial baseado num vencedor anual de subsidio à ONAM.
Nesta realidade estranha, um cidadão com um passado complicado funda uma escola de ténis de elite em Boston, de onde os seus estudantes originam muitas personagens tal como a família fundadora de origem mista quebequense e americana. Junto à escola situa-se um centro de reabilitação de toxicodependentes e alcoólicos que constitui outro grupo de personagens e entre ambos circulam estupefacientes em abundância na busca de prazer, enquanto o fundador da escola se tornou num realizador de filmes de culto e criou a obra perfeita para  o prazer "Piada Infinita" que quem vê fica de tal forma extasiado que se torna inválido para outra tarefa humana e para sempre dependente do seu visionamento, enquanto o autor se suicida com uma técnica rebuscada. Entretanto esta fita parece passar a ser distribuída pelos separatistas da AFR como forma de derrotar os EUA e a sua agência de inteligência, com agentes que são uma caricatura hollywoodesca, passam a procurar o filme entre terroristas, toxicodependentes, agentes duplos, triplos, travestis, líderes mafiosos, estudantes, gente de dupla nacionalidade, estropiados por razões várias, etc. Entretanto, há esta amálgama, que mostra uma grande diversidade dos excluídos nos EUA, no mundo da escola disserta-se sobre o ténis e os adolescentes desenvolvem jogos de guerra com recurso às novas tecnologias como estratégia de amadurecer a veia desportista, enquanto ao lado, os alcoólicos anónimos falam sobre reabilitação com memórias e descrições das alucinações efeitos de drogas e do seu submundo, técnicas do seu manuseio e sua produção farmacêutica, tecendo-se uma teia difícil de desatar que cruza, em parte, os dois mundos e uma estória policial louca.
A escrita é tão diversificada quanto as personagens. Há diálogos alucinados com influência do inglês e francês canadiano parodiado, tal como abuso dos estereótipos dos dois povos aqui vivendo no seio da região universitária do MIT, mas onde se concentram os emigrantes portugueses e brasileiros na área de Boston, que também não são poupados. Num repente passa-se a dissertações técnicas sobre drogas e suas sensações e parágrafos densos e extensos com mudanças bruscas no seu interior de momento, lugar e situações. Surgem erros ortográficos, neologismos e pormenores intrincados de ciência com cultura enciclopédica que geram uma paródia que, por vezes, é deprimente, noutras com gírias das classes excluídas da sociedade e descrições deste submundo e com recurso ao calão, descrições fisiológicas degradantes, sarcasmo e ironia que até pode ser ofensivo e aterrorizante.
Foi uma luta para não me perder nesta loucura onde os devaneios dos alucinogénios convivem com a erudição e as culturas dos excluídos, por vezes de modo repetitivo e extenso, pelo que me admira concluir com o seguinte: o livro cativou-me durante um mês e gostei, pois diverti-me imenso.
Apesar de cativado, só o recomendo a quem estiver disposto a um desafio forte e capaz de aceitar que a arte brinque com a crueza de alguns aspetos degradantes da vida e seja capaz de pensar na crítica indireta sobre o caminho que uma sociedade sem valores nos pode levar e não se escandalize com pormenores que satirizam o catolicismo como forma de atingir as religiões, mas que também tem exemplos que uma ternura profunda, capazes de comover os corações empedernidos.

7 comentários:

Pedrita disse...

fiquei curiosa, mas realmente preciso pensar se é tão complexo. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

E sim um obra complexa e com uma estrutura narrativa diversificada que nos pode deixar perdidos e levar a desistir e o tamanho também assusta.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Olá Carlos,

Então esse é o tal livro que você comentou, interessante... Ouvi dizer que esse autor cometeu suicídio, sendo reconhecido na literatura somente após esse trágico episodio.

Achei cômico o título em Portugal "Piada Infinita.

Abs
CAFÉ E BONS LIVROS

Carlos Faria disse...

Kelly
Sim, este era o tal monstrinho que estava a ler, um livro pós-moderno.
É verdade, Wallace suicidou-se em busca de Deus, primeiro procurou-o no catolicismo, Boston e o Estado ele vivia são as regiões mais católicas dos EUA, parece que não o encontrou aí, depois mudou-se para outra protestante onde falhou o encontro e, deprimido, suicidou-se.
Não sei se ele se tornou famoso só depois do suicídio, penso que não, sei que as suas obras são referência no estilo pós-moderno como Pynchon, que também é muito difícil de ler para alguns e outros são fãs absolutos dele.
Piada, neste caso, é sinónimo de dar prazer, tal como graça deverá ser lido no mesmo sentido. Numa sociedade hedonista que vive para o prazer a Piada/Graça infinita torna os seus espectadores viciados como qualquer toxicodependente que se tornam inválidos para qualquer outra tarefa. Podemos ver os tenistas viciados em desporto e o centro de reabilitação aqueles que buscam a mudança e por isso no livro são estes que estão mais próximo de uma religião e muitos vivem como crentes e agradecidos a Deus.
O livro, por vezes mesmo chocante, está cheio de alegorias que só no fim se vai percebendo. Mas reconheço, para se o ler tem de se reconhecer que ou se entra no estilo e ver mais longe ou tem de se desistir pela falta de lógica que parece ter.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Obrigada pela resposta Carlos, essa parte da busca por Deus eu não sabia...

Blog Livre Lendo disse...

Oiê!
Quero muito ler esse livro, mas sei que será uma leitura longa, árdua e bem recompensadora. =)
Adorei ler suas impressões a respeito! Animou-me ainda mais a realizar essa leitura!

Carlos Faria disse...

Conheço gente que gosta de livros difíceis e desistiu. É daquelas obras ou se tem a sorte de entrar no espírito da obra e ver as suas técnicas, mensagens embrulhados na trama ou então isso não acontece e não se consegue prosseguir, eu fui sortudo.