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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

"Oliver Twist" de Charles Dickens

 

Acabei de ler um dos livros mais conhecidos do escritor inglês do século XIX Charles Dickens, o romance em parte autobiográfico "Oliver Twist". A narrativa corresponde à vida de um órfão nascido numa estrutura de acolhimento de crianças abandonadas e onde a mãe, uma desconhecida a aparentar fugir de uma família para salvar a honra desta, morreu ao dar à luz o bebé e batizado por Oliver Twist.

No início, os responsáveis pelos órfãos sem amor deixam-nos passar fome e frio para economizar verbas e daí tirar dividendos da poupança excessiva e o protagonista, humilde e de bom trato, é uma das maiores vítimas. Ao chegar à idade em que é possível explorá-lo como mão-de-obra infantil entra outra série de sofrimentos e perseguições a que foge e cai nas mão de ladrões que exploram adolescentes nos seus roubo. Na ingenuidade num treino de assalto é preso mas acolhido por alguém bom que vê nele os traços de uma conhecida, só que a tentativa de os bandidos o recuperarem leva-o ao que parece ser o seu destino até que num assalto mal sucedido a situação levará a um confronto entre a tentativa da sua retoma pelos bandidos, a identificação das suas origem e alguém que o odeia e deseja a sua perdição.

Esta obra, como muitas outras de Dickens, é uma denúncia da injustiça social, a defesa da reabilitação das vítimas pela vitória do bem. Oliver Twist cumpre esta estrutura na íntegra, tendo também memórias da sua infância e mostra do submundo da pobreza e crime na Londres de então. Muito bem escrita, embora com a leveza típica de obra publicada por fascículos em jornais da época, e é muito fácil de ler. Também, como habitualmente em Dickens, a maioria das personagens são estilizadas de forma aos maus não terem virtudes e inspirarem ódio, enquanto os bons são quase perfeitos e vítimas dos primeiros e ansiamos a sua salvação, tudo isto sob uma luz de conceitos religiosos sobre a luta entre  bem e o mal com uma lição de moral, o que dá uma encenação algo forçada, mas é género fácil de agradar a qualquer leitor.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

"O rapaz que seguiu Ripley" de Patricia Highsmith

 

Acabei de ler o quarto livro dos romances da americana Patricia Highsmith com a personagem Tom Ripley, um criminoso amoral, simpático e amante de uma vida elegante com luxo e bom gosto artístico: "O rapaz que seguiu Ripley".

O protagonista americano continua a viver numa vivenda nos arredores de Paris com a sua esposa, filha de gente rica, que é tolerante com a suspeita dos seus atos ilegais. Um dia-a-dia de bem-estar na prática musical, a acompanhar os seus investimentos nas galerias e escola de pintura de que é sócio onde se introduziram quadros falsos de um pintor antes assassinado e a apreciar boa comida e convívio social. Nisto cruza-se com um adolescente que ele descobre ser alguém fugido de uma família milionária nos EUA após a morte do pai, rapaz que se sente atraído por Ripley dado o seu passado de suspeito criminoso. Desenvolve-se então uma amizade entre os dois apesar do risco do jovem vir a ser reconhecido das notícias sociais e ser alvo de rapto para resgate, mas Tom descobre-lhe um ato criminoso no adolescente. Na tentativa de o levar até à sua família e distraí-lo, enquanto um detetive o busca eles viajam por Berlim, Hamburgo e serão ainda vítimas de bandidos que obrigam o protagonista aos seus habituais atos geniais de disfarce e crime de modo a salvar o rapaz.

Apesar deste livro ter momentos de tensão, assassinatos e viagens a submundos, neste caso a noite gay de Berlim Ocidental dentro do muro, e a frieza de Ripley, é um romance suave, terno atravessado pela veia protetora do criminoso amoral que chega a ser paternal para com o rapaz. Uma obra de entretenimento mais suave que as anteriores e de menor suspense nas dificuldades que o protagonista atravessa, um carácter que mesmo sendo mau é capaz de gerar simpatias noutros personagens dos seus livros e no leitor. Gostei, manteve-me interessado mas sem a tensão tão elevada como os anteriores, sempre bem escrito e entretém.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

"Khadji-Murat" de Lev Tolstoi

 

Acabei de ler a última das obras de ficção do russo Lev Tolstoi, uma novela que só foi publicada postumamente: "Khadji-Murat"
A trama passa-se no Cáucaso e dá-nos uma imagem da guerra de ocupação russa da Chechénia e da resistência do seu povo. Khadji-Murat é um chefe guerrilheiro checheno, convertido profundamente ao islamismo, que mesmo sem confiar no líder do seu povo, que o conduz numa "guerra-santa" contra o invasor cristão russo, lutou intensamente ao seu lado com importantes vitórias. Todavia, a desconfiança e o mal que reconhece em Chamil, leva-o a optar por pessoalmente se entregar ao czar através de militares ocupantes que lhe despertam confiança. Decorre então um período de desconfiança dos russos que o mantém cativo experimentalmente, entretanto Khadji-Murat é alvo de chantagem do seu imã que tem como refém a família do protagonista. Neste período vamos descobrir um homem íntegro que se vê entre o mau e ambicioso líder checheno e uma sociedade de militares e nobreza sem valores morais, viciada e interesseira, uma tensão entre dois mundos perversos em confronto que conduzirá ao choque final.
Uma obra curta, sem o vigor dos seus maiores romances, mas onde a filosofia que marcou Tolstoi está presente: a integridade do homem bom no seio do mal, as divisões culturais entre a Rússia e a Europa ocidental, o conflito do império com os vizinhos do sul, os valores das religiões e o desprezo por quem as usa como estandarte para conquistar ou manter o poder. 
Tolstoi, apesar de assumidamente cristão e russo, neste livro deixa claro os podres que gangrenam o seu povo e os crentes, sendo a integridade humana uma raridade que dificilmente resiste estas ameaças.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

"Baía dos Tigres" de Pedro Rosa Mendes

 

Excerto

"Capitalismo é exploração. Comunismo não traz progresso. Mas este país é miséria. Só há uma lei: manda quem pode e obedece quem tem juízo."

Acabei de ler o livro "Baía dos Tigres", prémio PEN clube de 1999, do jornalista, escritor e repórter de guerra português Pedro Rosa Mendes. Apesar da obra estar qualificada como romance, de facto é uma reportagem, provavelmente com personagens e passagens ficcionadas, mas radicadas em factos e pessoas que foram narrados ao autor ou este se cruzou.

Pedro Rosa Mendes em 1997, período de interregno na guerra civil angolana na sequência do acordo de Lusaka, implementou uma travessia de Angola a Moçambique que, em simultâneo, recordava várias viagens de séculos anteriores que foram então feitas na tentativa de unir estas colónias portuguesas e para o controlo luso desta faixa africana.  O livro é composto de pequenos textos com impressões da sua viagem que aqui são reunidos sob a forma de crónica, conto, ensaio ou reportagem, os quais fazem um retrato, sobretudo, do sul de Angola, um pouco de Moçambique e até da Zâmbia. Não sei se poderia chamar literatura de viagem, mas sem dúvida que é uma mistura de ficção e reportagem.

Mesmo escrito por um jornalista, todos os textos são trabalhados literariamente de um forma bastante rica e diversificada, nele estão incorporados figuras de estilo literário clássicas e formas tipicamente africanas: vocabulário, modo de pensar, falar e estar. Existem momentos a descrever o terror com humor, até hilariantes e de grande beleza imagética. Há outras passagens que são, sobretudo, narrativas descritivas e memórias ricamente trabalhadas de forma estética, que vão do alegre ao terror da guerra e passam pela amargura de um povo que não pode ter perspetivas à sua frente e onde os mais velhos têm memórias de outros tempos e os mais novos nem passado nem futuro, apenas a sobrevivência do presente. Há ainda poesia a pontuar a obra, poemas de guerra, poemas cheio de alma e tradições do sul de Angola. Há denúncias de situações, há relatos de horror e da sua destruição louca, mas nunca a escrita perde a forma de ser grande literatura, como qualificou a obra José Eduardo Agualusa.

No conjunto, o livro está cheio de vozes como as que compõe as obras da laureada com o Nobel da literatura Svetlana Alexijevich e não menor riqueza literária. No livro há sobretudo vítimas, percebe-se quem foram os senhores da guerra, percebe-se que há culpados e há oportunistas ainda piores que os maus e nem o poder oficial ou oposição são isentados nesta obra, mas o que Pedro Rosa Mendes faz é um retrato da situação no terreno naquele momento de interregno da guerra e por isso o tom alegre inicial vai-se tornando mais triste. Gostaria que houvesse uma obra equivalente atual para saber como está a situação no terreno hoje.

Uma obra que apesar de dura, a ternura e a beleza de escrita a tornam fácil de ler e gostei muito.