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sábado, 23 de abril de 2016

Dia Mundial do Livro - As leituras preferidas do último ano

Ao longo dos últimos anos este blog tem comemorado o Dia Mundial do Livro com a apresentação de uma seleção das obras que mais me marcaram desde a anterior celebração deste dia comemorativo, considerando várias categorias classificativas, nem sempre precisamente iguais. Estes últimos 12 meses foram férteis no número de obras lidas: 53, só no domínio da ficção que são as abordadas em Geocrusoé, pois outras temáticas são tratadas noutros espaços.
A escolha não foi fácil, até porque nalgumas categorias apetecia-me colocar duas obras ex-aequo, mas no fim resisti e optei sempre por uma e aí vão e sem dúvida que alguns frequentadores de Geocrusoé poderão ser de facto surpreendidos.

Romance Nacional
"A Ilustre Casa de Ramires" de Eça de Queirós


Gostei de vários livros de ficção portuguesa, mas, em termos de envergadura de conteúdo e qualidade literária, para mim dois livros se destacaram, "A alma dos ricos" e "A ilustre casa de Ramires" de Eça de Queirós, como no ano passado já destacara um obra densa de Agustina Bessa-Luís, a escolha recaiu desta vez no outro autor de renome internacional de Portugal.


Romance original em língua estrangeira
"Sombras Queimadas" de Kamile Shamsie


Não foi fácil a escolha, mas por fim recaiu sobre "Sombras Queimadas", uma excelente obra, escrita por uma paquistanesa, um romance que se inicia em Nagasaki no dia da bomba nuclear e estende-se até o pós 11 de setembro de 2001, passando por vários países asiáticos e chega aos EUA, tornando-se num magnífico relato do que foram os maiores conflitos mundiais das últimas décadas e mostra de forma neutral o desentendimento entre o ocidente e o mundo islâmico. Tudo isto narrado de uma forma cheia de ternura e paz, falar pacificamente de guerra penso que só seria mesmo possível com uma protagonista japonesa e foi o que Kamila Shamsie fez. A melhor surpresa da literatura contemporânea deste 12 meses.

Clássicos da literatura ocidental
"Anna Karénina" de Lev Tolstoi



Aqui também houve algumas dúvidas, apesar de Dostoiévski me ter marcado fortemente com duas obras, nos clássicos aquela que considero mais completa, rica de conteúdo dramático, mensagem e qualidade literária foi mesmo "Ana Karénina" de Lev Tolstoi e já é a segunda vez, não consecutiva, que atribuo este lugar a este escritor russo, país com o qual nutro uma grande empatia literária ao nível de obras literárias do século XIX.

Literatura lusófona
"O Tempo e o Vento" de Érico Veríssimo (10/10) -


Confesso que hesitei muito com outra grande obra, mas "O tempo e o Vento" foi selecionado pela sua maior facilidade de leitura cheia de qualidade literária, a sua informação histórica sobre o Rio Grande do Sul e a divulgação da influência dos Açorianos no povoamento e cultura deste Estado do Brasil numa magnífica saga familiar. Sem dúvida que a alternativa em termos de riqueza literária é um monumento ímpar: "Grande Sertão Veredas", de Guimarães Rosa, mas parte do seu valor resulta da transposição do sertanejo para e literatura e esta traz dificuldades de leitura e em termos de divulgação este blogue teve em conta o leitor menos habituado a vencer um leitura difícil pela escrita, mas pela sua importância não podia deixar de o citar nesta alternativa.

Literatura Canadiana
"Murther & Walkings Spirits" de Robertson Davies



Robertson Davies é um dos escritores do Canadá mais importantes do século XX e do qual gostei  de tudo o que li, "Murther & Walking Spirits" talvez não seja a minha obra predileta dele, mas mesmo assim gostei e aprendi algo sobre a história da América do Norte e mostra as raízes imigratórias dos Canada, como foi a única que li nestes meses da ficção canadiana e é interessante foi por isso listada.


sexta-feira, 22 de abril de 2016

"Cadernos do Subterrâneo" de Fiódor Dostoiévski


"Cadernos do Subterrâneo" de Fiódor Dostoiévski é uma ficção e reflexão que antecede imediatamente a fase criativa dos principais romances deste genial escritor russo e onde se apresentam várias das suas ideias de fundo tratadas nas obras seguintes: a liberdade de escolha ou livre arbítrio, a degradação humana e a complexidade das relações sociais.
"Cadernos do Subterrâneo" divide-se em duas partes: a primeira é praticamente uma confidência e reflexão filosófica do protagonista que se apresenta como uma pessoa vítima da sua inteligência, onde esta leva-o a isolar-se no seu "subterrâneo", a analisar as suas reações, impedindo-o de ações intempestivas irrefletidas e a justificar as suas opções, mesmo que lhe sejam prejudiciais e alvo de crítica, para assim garantir a sua liberdade de escolha em detrimento do bom-senso que prevalece nas relações sociais do cidadão mediano, inclusive, concluir do próprio prazer que pode tirar da sua situação dolorosa.
Na segunda parte, o mesmo protagonista relata dois acontecimentos exemplos da sua vida, onde o seu modo de agir o levou à humilhação, à degradação e ao isolamento da sociedade em que se encontra há décadas e a encerrar-se no seu "subterrâneo" cheio de ódio e amargura, mas vingado pela sua liberdade.
Toda a obra é densa, abre pistas para personagens que depois surgem noutros romances maiores de Dostoiévski e explica situações extremas narradas nestas, todavia a humilhação do protagonista confere a este grande conto ou pequeno romance uma dureza enorme, cujos limites roçam a loucura. Convém referir que foi escrito num momento em que a sua primeira mulher se sucumbia progressivamente a uma doença que a levou à morte ainda antes da conclusão destes "cadernos", o que, sem dúvida, também serviu de exorcismo da sua dor pessoal. Um livro que gostei, mas só recomendo a quem este ensaio filosófico existencialista na literatura seja assunto de interesse.

sábado, 16 de abril de 2016

"Vieram como andorinhas" de William Maxwell


"Vieram como andorinhas" do escritor norteamericano William Maxwell narra a vida de uma família da classe média alta após o fim da I Grande Guerra Mundial durante a duração da epidemia da gripe espanhola numa pequena localidade do Illinois.
Um pequeno romance ou uma novela dividida em três capítulos, sendo que no primeiro vemos o mundo e as relações familiares pelos olhos de uma criança de oito anos, altamente ligada à mãe, para no segundo se assistir ao evoluir da situação com a entrada da epidemia em casa mas agora pelos olhos de primogénito com 11 anos e novamente com uma relação muito forte com a mãe e uma das tias maternas e uma relacionamento difícil com outros parentes num período de internamento dos pais. No terceiro dá-se o climax com uma mudança brusca dentro do agregado, sobretudo centrada na perspetiva do pai altamente dependente da esposa.
O livro apesar de atravessar um período difícil da humanidade, recordemos que esta epidemia provavelmente matou mais gente que a própria grande guerra que a antecedeu e atacou em todas as frentes, está cheio de ternura, confesso que por vezes recuei à infância tal a verosimilhança com que o escritor descreve o mundo visto pelos olhos dos filhos. No fim fica um elogio à força da mulher como mãe e esposa feito com grande amor. Gostei e recomendo a qualquer leitor.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

"Nove Histórias" de J. D. Salinger




"Nove Histórias" do escritor norte americano J. D. Salinger, autor do famoso romance aqui apresentado: "A espera no centeio".
"Nove Histórias" é uma coletânea de nove contos que mostram cenas de vida e memórias de pessoas comuns, geniais ou com problemas psicossociais e apesar de escrito há mais de 50 anos, com personagens em cenários desses tempos, tem uma linguagem que se entranha de tal modo no leitor que parece ter sido escrito hoje mesmo, tal a modernidade e contemporaneidade da escrita, esta última talvez por se usar a linguagem banal dos diálogos no texto, mas sem se perder a qualidade intrínseca do aspeto literário. Aliás, é a qualidade de narração o mais surpreendente em histórias e situações igualmente surpreendentes, só isso justifica como certas conversas que parecem ocas nos prendem e despertam motivação de continuar.
Cada história fornece um prazer de leitura servido com conta, peso e ritmo certos para se tornar perfeito.Não sendo um livro que transporta uma mensagem de conteúdo concreta, embora desperte reflexões sobre a vida, cada história leva-nos a olhar cenas de vida e a descobrir os sentimentos das personagens e os seus problemas de uma forma natural, mesmo perante pessoas por vezes bem diferentes do normal. Traumas pessoais, relações familiares difíceis, crianças precoces sobredotadas, carência de relações humanas, hipocrisia ou engano, tudo se mistura nestes contos em doses certas para compor um livro como obra de arte literária.
Algumas personagens curiosamente repetem-se em contos e novelas de outros livros do autor, pelo que o conhecimento mais profundo destas figuras apenas pode ser alcançado com outras leituras, mesmo assim cada história por si está completa, um sinal da mestria deste escritor no domínio do conto
Gostei muito do livro pelo prazer que dá apreciar uma obra assim, tal como dá prazer ver retratos que não são nada mais do isso apenas intrinsecamente muito bem feitos.

sábado, 9 de abril de 2016

"O Sol dos Mortos" de Ivan Chmeliov


"O sol dos mortos" do escritor russo refugiado em França na sequência da revolução soviética Ivan Chmeliov, possui uma forma artisticamente trabalhada e bela de retratar a fealdade da fome após a tomada da Crimeia pelos bolcheviques em virtude de se terem retirado a todos os bens, com destaque os alimentares, inclusive as sementes e os animais, que serviam à manutenção da agricultura no meio rural desta península que penetra no Mar Negro.
Inicia-se no verão, onde os primeiros sinais da seca começam a impedir a alimentação dos animais domésticos e prossegue para o outono e inverno, onde tudo se vai degradando, inclusive os valores morais e as relações sociais de muitos com o crescer da fome, em resultado do facto de apenas aos quase adolescentes do exército vermelho estar assegurado o essencial com todos os seus abusos típicos de uma revolução, enquanto para a população definha pois tudo era classificado por excedente não partilhado e tomado pelos pretensos revolucionários.
Pela fome se pode dominar qualquer povo, como é referido no livro, mas será ainda possível acreditar num Deus e numa ressurreição perante tal deserto de valores? Dostoiévski é lembrado aqui através da dedução do seu romance "Demónios" onde se alerta que sem Deus tudo se torna permitido.
O quadro "Guernica" de Picasso retrata artisticamente pela pintura uma catástrofe desumana. Esta obra "O Sol dos mortos" faz o mesmo pela escrita para outra tragédia. O primeiro mostra uma situação momentânea, este uma calamidade que se anuncia, se instala e afeta culpados, inocentes, adultos e crianças, seres humanos e animais e estes últimos são sem dúvida genialmente utilizados para mostrar o horror que foi aquele período sem descrever diretamente muito do que foi passado pelas pessoas, uma forma de humanizar a descrição do horror.
Uma obra-prima, que sem ser um simples romance de ficção, descreve romanceadamente um acontecimento duríssimo e trágico e as obras de arte não têm de ser suaves para serem belas. Guernica foi por isso aqui colocada como contraponto de um exemplo do género sob outra forma de expressão artística, onde o horror se transformou em arte. Uma obra que deve ser lida não por passatempo, mas como um testemunho histórico de um acontecimento que ensombrou a humanidade.

sábado, 2 de abril de 2016

"O Deus das Pequenas Coisas" Arundhati Roy



O romance "O deus das pequenas coisas" é o único livro de ficção da escritora indiana Arundhati Roy, com uma vasta obra ambientalista, e ganhou logo o Booker Prize de 1997 e foi um grande sucesso editorial ao nível planetário.
A história que envolve o declínio em três gerações de uma família indiana de nível socioeconómico e cultural acima da média, com intervenção científica e industrial, de religião cristã síria e anglófila, no sudeste da Índia, que se vê enredada na sua teia de vícios individuais misturados com preconceitos locais e a tradição de castas, que assim se autodestrói por invejas, paixões, ódios entre si agravada por fatalidades acidentais enquanto procura assimilar a cultura inglesa como forma da identidade e de afirmação numa época de aceso confronto ideológico da guerra fria.
É uma obra intercultural, onde as influências inglesas e indianas se misturam constantemente na história num período de instabilidade no país devido ao confronto ideológico que marca a guerra fria. Na escrita a autora efetua ainda uma integração na linguagem do misticismo hindu, com o racionalismo ocidental, a força do ambiente meteorológico e da biodiversidade do sudoeste da Índia, sobretudo vistos e interpretados pelos olhos de duas crianças gémeas filhas desta aculturação num período onde uma paixão contra as regras estabelecidas faz soltar todos os demónios que estavam atados nesta teia complexa de encontro de civilizações, credos, mentalidades numa Índia pós independência e politicamente a balançar entre uma democracia de mercado livre e a perspetiva marxista. Todos estes mundos e interesses conflituam nesta obra ferindo e destruindo pessoas de uma forma dura, capazes de não perdoar um amor e aproveitar-se de um acidente perante os olhos de duas crianças gémeas alvo de todas estas tensões.
Por ser uma obra que integra várias culturas inclusive no estilo do texto, nomeadamente a indiana bem distante da europeia, no princípio pode-se estranhar, mas depois de se compreender a forma cheia de metáforas e simbolismos, torna-se num belíssimo romance multicultural e cheio de referências à ecologia da Índia que justifica o sucesso do livro.