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sábado, 24 de abril de 2021

"Os Memoráveis" de Lídia Jorge

 

Citação

"Toda a revolução é uma grande alegria que anuncia uma grande tristeza"

Escolhi ler a obra "Os Memoráveis" da escritora portuguesa Lídia Jorge para este mês por saber que a mesma esboçava fazer um retrato metafórico dos ideais dos heróis da Revolução do 25 de Abril em Portugal e uma reflexão do que desta resultou décadas depois e foi esta a minha opção de comemorar Abril este ano, através de um livro sobre o tema.

Ana Maria Machado, repórter de guerra está em 2004 em casa de um embaixador em Washington que acompanhou a Revolução dos Cravos, este tem uma admiração pela originalidade desta e tenta convencer junto com o seu afilhado, que tem uma relação próxima com ela, para vir a Portugal fazer uma reportagem sobre o 25 de Abril que ele considera uma Fábula. Seduzida por notas disponibilizadas pelo diplomata Ana volta a casa do pai, um jornalista próximo dos heróis, mas com quem teve uma desavença. A partir de uma fotografia de grupo destes Memoráveis contrata dois colegas para entrevistar as personagens fotografadas e é a segunda parte a Viagem ao coração da Fábula. Vemos então momentos marcantes do que foi aquele dia para vários dos memoráveis e o que é a realidade deles e de Portugal 30 anos depois, ideais que se partiram, reconhecimentos que se perderam, retaliações que sofreram. Na terceira parte é apresentado o Argumento para Robert Peterson onde se vê o projeto retratado pela arte e visão de Ana do que foi a Revolução dos Cravos.

Magnificamente escrito, num tom nostálgico entre a memória e os problemas do presente (2004), o teor das entrevistas aos Memoráveis da Revolução em torno de uma fotografia de um jantar que marcou as diferenças entre os envolvidos, todos designados por uma alcunha mas onde se consegue perceber o herói original, apesar dos retoques da ficção e dos desvios à realidade pertinente à ficção, é sem dúvida o melhor romance que li sobre Abril. Uma homenagem aos seus Memoráveis e uma reflexão sobre o que foi a dádiva da Revolução, mas também uma reflexão sobre o uso e o aproveitamento da liberdade nas décadas seguintes por quem desde então teve acesso ao poder para moldar Portugal.

Excelente livro e recomendo a quem gosta de perceber o que foi Abril e os dilemas que se colocaram entre os seus protagonistas e algumas "evoluções" que Portugal teve desde Aquele Dia da conquista da Liberdade.

Esta mensagem é também a minha homenagem deste ano ao 25 de Abril de 1974.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

23 de Abril - Dia Mundial do Livro - Os escolhidos de um ano de leitura

Todos aos anos escolho esta data para expor aqueles que foram os meus livros predilectos desde o anterior Dia Mundial do Livro. Nos últimos 12 meses li obras excelentes e a escolha não foi fácil nas várias categorias habituais. Como sempre a seleção final teve peso o momento da escolha, talvez pudesse haver uma ou outra substituição, mas ficou assim:

Melhor Livro de Ficção em Língua Original Portuguesa

Penso que é a primeira vez que não consigo optar, por isso vão duas obras bem diferentes, sendo que a segunda coloca a escritora dois anos consecutivos nesta lista e categoria


A Casa Grande de Romarigães - Aquilino Ribeiro
 
Mais informações neste blogue sobre esta grande saga de vários séculos da história de Portugal aqui.

Fanny Owen - Agustina Bessa-Luís

Pouco extenso e por isso esta talvez seja uma das obras mais fáceis para entrar nesta escritora que aqui não tem complexo de expor o lado pouco simpático de um dos maiores escritores da literatura portuguesa: Camilo Castelo-Branco. Mais pormenores sobre este livro neste testo de Geocrusoe.

Melhor Romance Histórico

Os sete pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence

Um misto de memórias e romance histórico narrado pelo próprio autor e ele mesmo como protagonista da narrativa, mas não é uma livro de ficção, embora seja romanceado, a obra que deu origem ao filme Lawrence das Arábias. A informação e o estilo de narrativa são constroem uma obra única de excecional interesse, informação histórica e prazer de leitura. Mais impressões em Geocrusoe aqui.

Melhor livro de memórias


O Mundo de Ontem de Stefan Zweig

Neste caso foi lido em formato ebook, mas o retrato da Europa desde o final do século XIX até à II Grande Guerra Mundial feito por Stefan Zweig, quer pelo conteúdo, quer pela qualidade da escrita e ainda pelos pensamentos e reflexões do autor e de grandes homens comm quem se cruzou, torna-o numa obra magnífica que merece uma leitura para quem gosta de história e boa escrita. A análise desta obra no blogue pode ser lida aqui

Melhor Obra de Ficção Canadiana

MaddAddam - Margaret Atwood

Não foi difícil a escolha, pois foi o único livro do meu país natal que li ao longo deste, penso que ainda não está traduzido em Portugal, tem a importância de fechar uma trilogia e de ser um especulação futurista do presente, onde o homem pode ser o gerador da sua própria destruição, neste caso, por uma pandemia intencional o que o torna muito pertinente nestes tempos. Mais dados aqui.

sábado, 10 de abril de 2021

"Ripley debaixo de Água" de Patricia Highsmith

 

Acabei de ler o quinto e último livro do conjunto dos cinco romances da escritora norteamericana Patricia Highsmith protagonizados pela personagem Tom Ripley: um assassino americano, estabelecido em França numa vida de luxo após herdar a fortuna da sua primeira vítima e perito em escapar à justiça dos seus atos criminosos. Alguém totalmente amoral, inteligente, calmo, bem parecido, apreciador do bom-gosto em matéria de música erudita, livros, gastronomia, vinho, vestuário, viagens, pintura e jardinagem.
Neste romance, "Ripley debaixo de Água", o nosso protagonista vê-se seguido de perto por um americano que se estabelece nas vizinhanças, sabe demasiado sobre o seu passado e está disposto a descobrir o corpo de um milionário assassinado há anos e atirado à água num dos canais que bordejam Paris, tarefa que depois descobrimos fazê-la em articulação com familiares de vítimas dos anteriores romances. Em paralelo, este intruso força uma amizade assumidamente sarcástica com Tom pelo prazer de o aterrorizar e manifestar a sua intenção de o denunciar, este, entretanto, procura manter a sua vida luxuosa, calma, enquanto viaja por Marrocos e Londres, sem perder oportunidade de acompanhar à sua maneira a ameaça que se lhe depara, até o corpo ser de facto pescado e tudo ir desencadear um final novamente original.

Numa escrita sempre elegante, fácil e cheia de pormenores diários, já característica de anteriores volumes, a obra mostra a calma com que se desenrola vida social e de luxo de Tom, desde a sua relação madura e descomprometidas com a esposa, as descrições de hábitos quotidianos numa aldeia periférica de Paris com os pormenores gastronómicos fornecidos pela sua empregada, os cuidados do cultivo das várias espécies de flores do jardim, até pormenores das aulas de cravo e das viagens internacionais que se intercalam com os períodos de tensão fria e calculista perante as ameaças, onde é mantido sempre a compostura do nosso vilão.

A escritora tem a arte de nos colocar suspensos e interessados em que o nosso protagonista amoral escape às malhas dos seus perseguidores, uns em nome da justiça oficial, outros vindos de gangues ou amantes do castigo popular que lhe vão tecendo armadilhas a que ele com os seus ardis ele habitualmente sobrevive ileso.

Apesar do suspense, não é um romance em ritmo acelerado, neste não ocorrem cenas violentas como nalguns dos anteriores, mas mantém o interesse e, apesar de ser uma história independente do passado, possui numerosas referências às aventuras criminosas anteriores de Tom Ripley que o tornam mais interessante se forem já do conhecimento do leitor. Uma obra  de lazer que dá prazer ler e gostei.

Para consultar sobre anteriores volumes desta coleção postados neste blogue clique aqui. O Talentoso Mr. Ripley li anteriormente ao Geocrusoe ter mensagens dedicadas a livros e talvez o mais elaborado deste conjunto.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

"O caso do Camarada Tulaev" de Victor Serge

 
Citações
"Heróis de ontem, o lixo de hoje, é a dialética da História..."

"Encontramo-nos cobertos de crimes, todavia temos razão perante o Universo..."

"Talvez seja muito bom, isto de não podermos dominar por completo o nosso cérebro, e que ele nos imponha imagens e ideias que preferíamos rejeitar cobardemente: é assim que a verdade faz o seu trajeto..."

Acabei de ler o romance do russo-belga Victor Serge "O Caso do camarada Tulaev" uma obra de ficção que procura retratar o período de perseguição estalinista.
Kostia vive amargurado com as injustiças e infelicidade que vê num regime que procura libertar o Homem e numa conversa com o vizinho do quarto ao lado este empresta-lhe uma arma que acabara de adquirir. Depois, ao passear na noite moscovita, cruza-se casualmente com Tulaev, um dos maiores do regime, e num impulso faz justiça dispara e consegue fugir. Começa então a perseguição aos homens fortes do aparelho que poderiam estar interessados neste crime, teremos então uma série de interrogatórios a quem pode ter ambições e fazer sombra aos sonhos de outros ou à revolução, une-os o facto de estarem todos inocentes neste caso mas um perigo no sistema.
Ao longo dos vários capítulos vamos percebendo de forma crua o que foi a fidelidade de cada um dos suspeitos à revolução em curso, o respetivo modo de ascensão no aparelho, a exigência de obediência cega imposta pelo partido e como se criou uma justiça destruidora dos seus heróis em nome dessa revolução que eles próprios fizeram de tal modo que praticamente todos estão à espera de serem condenados nesta teia que teceram que já os levou à derrota na guerra civil espanhola.
A escrita é de grande qualidade estética, bela e cheia de reflexões, o que torna esta obra não só uma denúncia política do autor (um anarquista, comunista e trostkista filho de russos mas nascido na Bélgica) um texto literariamente rico, profundo e originalidade na trama, com um humor subtil com ironia e sarcasmo que se subentende a partir dos pensamentos e frases dos personagens que vão desfilando e, entre eles, o que nunca é identificado pelo nome: Estaline.
Apesar do ambiente tenso é uma obra fácil de ler, a riqueza de pensamentos torna-o apto a muitos sublinhados e fonte de citações, o que justifica ter sido considerado uma obra-prima da literatura de exílio de meados do século XX. Muito bom... excelente!