Páginas

sábado, 31 de março de 2018

FELIZ PÁSCOA

Festejando com fé ou por tradição a todos desejo um excelente período Pascal

FELIZ PÁSCOA

A celebração da passagem dos judeus pelo Mar Vermelho 
na evolução da
celebração da passagem de Cristo morto à VIDA


Ressurreição de Cristo por António Leitão
(1575/80 - Vila Nova de Foz Coa)

sábado, 24 de março de 2018

"Os despojos do dia" de Kazuo Ishiguro


Excerto
"Certamente só pode ser um «grande» mordomo aquele que está em condições de apontar para os seus anos de serviço e dizer que empregou os seus talentos a servir um grande cavalheiro - e, através dele, a servir a humanidade."

Há vários anos recomendaram-me "Os despojos do Dia" como uma prova da excelências da literatura japonesa. Anotei, o tempo passou e não comprei, até que o último Nobel atribuído a Kazuo Ishiguro me levou à compra e então deparei-me com um livro sobre a sociedade conservadora inglesa, narrado pela personagem mais obsessivamente britânica que li até hoje e numa escrita magnífica, sem artificialismos estilísticos, mas de uma beleza pura que confere um equilíbrio difícil de encontrar num texto das memórias e ideias preconcebidas de um mordomo sobre a sua profissão.
Stevens sente que está a cometer pequenos erros profissionais desde a mudança para o seu atual patrão, um norteamericano que comprou a residência de lord Darlington, a quem ele sempre servira como mordomo até à morte daquele. Ao aperceber-se da tensão, o novo proprietário que pretende ir por uns dias aos Estados Unidos recomenda-lhe uma viagem para espairecer e conhecer a Inglaterra. Setvens que tem em mente aventurar-se a contratar uma ex-governanta que lhe escreveu, aceita a recomendação e faz uma viagem de uma semana até à cidade da antiga colega, ao longo desta reflete sobre o que são os deveres profissionais de um grande mordomo, como foi a sua vida ao entregar-se ao distinto lord, recorda outros que optaram por aproveitar a sua vida, enquanto ele cumpria servir alguém em quem pôs todas as suas esperanças para através dele estar ao serviço do mundo, só que que ao logo da deslocação vai-se apercebendo de falhas neste processo, vai encontrando gente que lhe desperta para outras realidades e descobre a beleza do mundo que o rodeava e desconhecia. Um verdadeiro exame curricular sobre a validade da sua vida e da sua forma de pensar.
A partir desta história fica claro que Ishiguro, filho de japoneses, nascido no Japão e imigrante na Inglaterra desde os 5 anos, é um escritor inglês, talvez o único aspeto nipónico neste livro é descobrir que a cultura conservadora inglesa e japonesa compartilham a sobriedade no mostrar os sentimentos, no falar e no agir em sociedade e ambos têm a obsessão dos rituais de pormenores no mais diversos atos comuns do dia a dia e nisto este livro é também uma mostra genial do que é ser"british".
Uma reflexão psicológica sobre o sentido da vida, mas relatada de uma das formas mais belas que li em literatura, com momentos onde o choque de sentimentos com o dever desrespeita a humanidade que há em cada um em nome de uma pretensa perfeição de saber estar em sociedade. Um livro de uma grande beleza e subtileza. 

domingo, 18 de março de 2018

"Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina" de Mário de Carvalho

Excertos

"E a simpleza repugna aos portugueses. Deixar alguém na despreocupação? A fruir dos seus direitos? Isso é antilusitano."

«Ora aí está, aquela minha ideia do geólogo é que era. Isto não há nada como as ciências exactas,»

"Lá em baixo, na paisagem, incrustada na duríssima permanência das coisas, onde só mandam castelos, menires, cromeleques, destoa, azulínea, e sobressalta, com transparência, a piscina modernaça e tratada a poder de fluidos caros e especiosos."

O título do livro "Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina", prémio PEN clube de 2003, do escritor português, várias vezes premiado, Mário de Carvalho, já de si indicia que não se está perante uma obra de estilo tradicional, de facto, o autor classificou-a não de romance ou novela, mas de um cronovelema e, segundo ele, o termo é algo que "não rejeita nada e não se sujeita a imposições".
O texto é mesmo uma narrativa que flui naturalmente como um rio de humor agridoce que se encadeia na mudança de narrador, de tempo e de espaço, corre na terceira pessoa ou na primeira, por vezes é meramente descritivo, noutras são diálogos e onde a língua Portuguesa é explorada com uma riqueza vocabular enorme, ora num estrutura gramatical de excelência, mas vai da erudição ao calão, outras desce ao linguajar popular e no desrespeito pelas regras, a roçar o realismo mágico, e lá se vai construindo uma estória que mostra um Portugal sem disfarçar os seus defeitos e vícios comuns.
A trama do livro, numa paródia intercalada de reflexões críticas a Portugal e suas gentes, consiste na existência de dois coronéis reformados que recuperaram casas de campo no Alentejo, um decide ter uma piscina em torno do qual se reúnem e falam das aventuras dos seus tempos de guerra, para obtenção de água contratam um jovem vedor, mestre de xadrez, que nestas funções deambula pelo sul do País onde se depara com vários tipos de aventuras e peripécias no seu carro que chega a ser anfíbio, enquanto o seu tio lhe dá conselhos de macho apesar das suas relações complicadas com mulheres. Por sua vez, as esposas dos militares encontram-se ávidas de aventuras, uma invejando a outra nas suas conquistas, enquanto um filho leva uma vida a fazer graffiti numa caravana, sem dinheiro e no desprezo aos rigores castrenses, tudo isto vai-se cruzando e sendo observado por um mocho e um melro que a tudo assistem e comentam de uma oliveira e acrescentam ou cortam o seu ponto.
Como todas as paródias, o humor atravessa o texto, mas a sátira mordaz aos aspetos da vida do País deixa um sabor agridoce, que o fantástico, que por vezes entra, não apaga. Gostei, este cronovelema, num estilo tão distinto deste romance, mostra bem a versatilidade de Mário de Carvalho, um mestre genial da escrita e da língua Portuguesa e esta capacidade tornam este livro numa obra de arte e um desfile de possibilidades de explorar e tratar o idioma lusitano.

quinta-feira, 15 de março de 2018

"O Jogo do Mundo" (Rayuela) de Julio Cortázar


Citações
"Para que é que serve um escritor senão para destruir a literatura?"
":o juízo que o Rei pronuncia não é o seu, mas o teu. Julgas-te a ti mesmo sem o saberes."

Eu sabia que "O jogo do mundo" do argentino Julio Cortázar, à semelhança do desenho do jogo desafiante mostrado na capa do livro que nos punha a saltar de "casa" em "casa" e surge na estória, era um romance que recomendava saltar entre capítulos, isto numa sequência de leitura diferente das narrativas habituais noutra obras, só que este livro é bem mais complexo do que os meros saltinhos do jogo da macaca (rayuela em castelhano da Argentina ou amarelinha no Brasil).
A trama está relacionada com um grupo de artistas e pensadores estrangeiros "refugiado" em Paris do final dos anos 1950, quando esta cidade ainda era considerada o centro do pensamento e das artes mundiais. Neste grupo, o intelectual Horácio Oliveira, argentino, desenvolve uma paixão por Maga, uma uruguaia de pouca culta cuja ignorância desperta reações várias no grupo que se reúne numa tertúlia de reflexão "Clube da Serpente", que discute pintura, filosofia ocidental existencialista e tibetana, jazz e, claro, literatura. Uma ocorrência grave levará não só à fuga de Maga, como à exclusão de Horácio e ao seu desnorte em busca dela, o que o leva de regresso à Argentina para junto de gente de um circo ao lado de um manicómio, aí a mulher do seu melhor amigo torna-se obsessivamente numa réplica de Maga com toda a tensão psicológica deste jogo.
Cortázar escreve não só o romance, que ocupa quase os dois primeiros terços do livro (cerca de 400 páginas), por vezes divertido, mas também tenso, como também expõe em mais do terço final uma reflexão sobre a literatura, a arte e o existencialismo, tanto através de discussões das personagens da própria trama, como também com recursos a pequenos textos de um escritor, Morelli que se cruza com os da primeira parte e cujo seu espólio é acedido por eles.
Cortázar leva-nos através de uma tabela guia, associada aos capítulos, a saltitar da narrativa romanesca para outros da última parte, isto numa sequência que parece ilógica, mas que está profundamente estruturada e onde se descobrem os escritos de Morelli que fala da desconstrução da literatura, da necessidade de o leitor não ser um mero elemento passivo da obra, bem como, se acede a pretensos excertos de outros textos de origem diversa a que se adiciona ainda reuniões do clube da serpente a refletir sobre tudo e mais alguma coisa dispensáveis à trama.
Cortázar não deixa de ensaiar escritas criativas, com estilos variados em função dos diferentes autores dos capítulos por onde se saltita e no fim fecha-se o ciclo de um romance muito mais vasto que uma simples estória.
Gostei muito, custou-me a ambientar inicialmente no que parecia caótico, mas depois vibrei e tornou-se numa experiência inesquecível, recomendo apenas a leitores não passivos que gostam de ser desafiados pelo escritor... mas dá para ler sem o saltitar no que será uma experiência muito menos intensa deste livro.

quinta-feira, 1 de março de 2018

"O Banqueiro Anarquista" de Fernando Pessoa


Citações
"Ora o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente"

"Quem tem só esta vida, quem não crê na vida eterna, que não admite lei senão a Natureza,... ...por que carga de água é que defende o altruísmo e o sacrifício pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais?"

"O Banqueiro Anarquista" é um dos textos famosos de Fernando, aliás penso que tudo dele é famoso e bom. Assim, após me cruzar com uma divulgação deste texto num blogue, que sigo recentemente, lembrei-me que o folheara poucos dias atrás e decidi conhecer o meu poeta de eleição como contista.
Num jantar de dois amigos, o narrador decide questionar o banqueiro rico sobre dizerem que ele fora anarquista, ao contrário do que a sua profissão e estatuto indicaria. O banqueiro não só confirma o passado, como confessa ainda o ser e de levar esse espírito à prática mais do que os defensores típicos da causa. A partir daqui, o banqueiro irá fundamentar as suas razões, a coerência da sua situação e todo o historial que o levou ao seu sucessos no respeito da ideia que defende.
Fernando Pessoa desenvolve assim, ao longo de várias dezenas de páginas, um conto com uma evolução dialética de forma socrática liderada pelo banqueiro, mas onde ele próprio aponta o que parece incoerente, em seguida refuta e evidencia a lógica do seu raciocínio, que depois o amigo narra.
Um texto filosófico, inteligente que se torna divertido com as ironias e críticas subliminares aos defeitos e vícios da sociedade que então se confrontava entre a mentalidade burguesa, o marxismo e a terceira via do anarquismo.
Bem escrito, argumentado e uma pérola que recomendo a todos os leitores que gostem de debates inteligentes e de bom humor. Adorei.