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terça-feira, 25 de abril de 2017

"ALÉM" de J. K. Huysmans


Quando me interessei em descobrir o francês J. K. Huysmans, na sequência da leitura recente de "Submissão" de Houellebecq, verifiquei que aquele, além de ser um escritor com poucos romances traduzidos disponíveis em Portugal, também era um autor cuja vida e obra foi marginalizada por certas elites culturais e sociais desde o final do século XIX. Tal aconteceu não só por ele ter iniciado a sua carreira como um brilhante discípulo literário de Zola, no estilo "naturalista" e se ter mudado para o "decadente" que era rival do primeiro grupo de escritores, tendo sido nesta corrente um dos expoentes máximos na ficção, mas também, pela sua mudança individual de pessoa descrente, laica e ainda mergulhado no ocultismo, para um católico convicto, transpondo paras as suas obras literárias este percurso com a criação de uma personagem seu alter-ego, Durtal, onde em várias obras relata a vida que considerou degradante (decadente) e a mudança para uma fé profunda, praticante e escrupulosa, sendo então rejeitado na sociedade intelectual materialista que predomina na cultura ocidental.
O romance "Além" de Huysmans é o segundo romance do período decadente, onde Durtal é um escritor em ascensão e está a escrever a biografia de Gilles de Rais (personagem real, que após ter sido colega de armas de Joana D'Arc, se tornou na figura mais sombria da história de França desde a idade média, pelas suas atrocidades do seu culto satânico com atos sádicos, assassinos e pedofilia), Nesta busca o protagonista entra em contacto com contemporâneos e descobre que os ritos e práticas diabólicas persistem ainda no final do século XIX, com os adoradores do mal e práticas hediondas num conflito permanente que envolve cidadãos comuns, crentes, cultos, investigadores, cientistas e hierarquia da igreja e configura uma permanente luta entre o mal para dominar e o bem para resistir e permanecer fiel ao ideal Cristão.
Huysmans é portador de uma escrita escorreita, vocabulário extenso, por vezes recorre a palavras menos usuais, a que junta uma prosa de grande elegância típica de um escritor de excelência e com a clareza típica do estilo da época. Tal não invalida que algumas páginas de "Além" não deixem de ser muito perturbadoras nas descrições dos rituais satânicos e escatológicos, com divulgação de crenças obscuras, práticas degradantes e mesmo horripilantes. Desengane-se quem pensa encontrar o terror popular de espíritos de outros mundos, erotismo barato ou pormenores pornográficos: Não! Apesar de tudo o que se subentende dos relatos e de alguma ousadias, Huysmans não cai na literatura de cordel do horror, não romantiza paixões com espíritos, nem retrata bacanais. É uma obra tem negritude nalgumas passagens, mas também está cheia de momentos de boa disposição, reflexões sociais sobre a época, críticas à arquitetura de uma monumento de Paris, saborosas apreciações gastronómicas de repastos de amigos, discussões sobre mitos medievais enriquecidas por citações de obras de referência que, à semelhança de Umberto Eco ou de Jorge Luís Borges, não importa se existem ou fazem parte do mundo mágico criado pelo escritor para suportar a trama.
Gostei do livro, mas alerto que se trata de uma obra com uso do macabro e com situações de grande degradação humana que não são recomendáveis a leitores suscetíveis de se impressionar e romanceia o início da conversão religiosa de Huysmans.

domingo, 23 de abril de 2017

Dia Mundial do Livro - Os meus preferidos de um ano de leituras

23 de abril comemora-se em Portugal o Dia Mundial do Livro, em Geocrusoe não costumo fazer a apreciação das minhas leituras anuais no dia de ano novo, mas sim nesta data e como sempre a escolha não é fácil e é função das marcas que as obras deixaram em mim, bem como as categorias são função do tipo de livros que li.


Mais Apreciada Leitura de obra Portuguesa


Não foi fácil a escolha entre este magnífico texto literário "Húmus", de Raul Brandão, e a pérola estilística de "O que diz Molero", de mais fácil leitura e igualmente original. Todavia, apesar de Húmus não ser de fácil, antes pelo contrário, é de uma perfeição de escrita e com profundidade de reflexão e abordagem filosófica que não poderia deixar a obra para trás em nome de uma facilitismo comercial que doentiamente me parece estar a degradar hoje em dia a literatura nacional. Um pequeno volume, mas um enorme livro.


Mais Apreciada Leitura de obra Lusófona

"A república dos sonhos", de Nélida Piñon, corresponde a uma saga familiar bem escrita que atravessa quatro gerações de uma família, das quais três na condição de imigrantes galegos que servem para contar não só os sonhos de quem escolheu o Brasil como sua pátria, lutou por ser alguém aos olhos dos outros ou na sua forma de ser e se confrontou com os obstáculos da integração mas também para analisar mais de meio século de história do país de acolhimento com todos os seus defeitos e virtudes e crises políticas, regimes democráticos e ditatoriais. Extenso, mas sem dúvida um bom livro.

Mais Apreciada Leitura de obra Original em língua estrangeira

Foi sem dúvida a escolha mais difícil, havia vários romances possíveis, alguns de laureados com o Nobel, mas a riqueza de informação neste livro sobre a vida da população urbana nigeriana, a caracterização da integração da emigração atual africana nos Estados Unidos e Reino Unido, além do facto de ser uma obra que mostra que na atualidade ainda se escrevem grandes e bons livros, pelo que ainda há esperança na continuação da literatura, incluindo a partir de países de grande dificuldade social e pouco admirados no ocidente, levaram-me a selecionar "Americanah" de Chimamand Ngozi Adichie.

Mais Apreciada Leitura de obra Canadiana


Apenas li três obras canadianas, "The origin of species", de Nino Ricci, foi lida na língua original  e ganhou GG prize do Canada em 2008. É sem dúvida um excelente romance que mostra muito do que é a vida multicultural do meu país natal, onde também ocorrem desencontros pelas diferenças, buscas de identidade e do significado da vida nesta biodiversidade de povos que segue muito das mesmas regras materializada na teoria da evolução de Darwin. Uma obra que me despertou interesse em ler outros título do autor e por isto eleita nesta categoria.

sábado, 22 de abril de 2017

22 de abril - Dia Mundial da Terra

Vulcão do Pico visto da Ribeirinha, Faial

Porque a Terra é a nossa casa comum, este Planeta é único e este Astro é lindo, temos de o preservar para que a sua diversidade biológica e geológica persistam em equilíbrio entre o seu sistema ambiental e o Homem.
O blogue Geocrusoe, como tem sido tradição, comemora o Dia Mundial da Terra e, como Geólogo, desejo a todos um dia feliz e responsável para com o nosso Planeta.

terça-feira, 18 de abril de 2017

"A um deus desconhecido" de John Steinbeck



"A um Deus desconhecido", do norteamericano laureado com o Nobel John Steinbeck, é um romance onde, além da ligação do agricultor à terra e das suas dificuldades de sobrevivência face à insegurança dos seus rendimentos e à dependência dos caprichos meteorológicos que habitualmente é abordado em muitas obras deste escritor, mergulha também nas raízes religiosas do homem colocando em confronto visão vertical do cristianismo com a os antecedentes animistas que explicam o equilíbrio da produção agrícola com uma perspetiva horizontal do espírito que atravessa todas as coisas da natureza.
Joseph Wayne de uma quinta do leste dos Estados Unidos sonha com uma nova herdade na Califórnia cuja terra está aberta à ocupação de novos exploradores, pede a benção ao pai para cumprir este objetivo que no ocaso da vida lha concede e promete estar sempre a acompanhá-lo de cima depois da vida o deixar. O protagonista parte para o oeste, adquire um prometedor campo, tem conhecimento de histórias de secas passadas, encontra indícios de cultos índios à fertilidade da terra e encanta-se com uma árvore na qual sente expressar-se toda força da vida do vale. A morte do pai leva os irmãos a se juntarem à exploração marcada pelo sucesso.
A visão de fanatismo religioso de um dos irmãos e as preocupações de um padre face os sinais animistas levam a que a sua árvore seja abatida e desde de então tudo declina: a seca, a fome a miséria, a migração, mas Joseph resiste no terreno que assumiu proteger, nem que para isso tenha de se tornar no sacerdote capaz de oferecer o supremo sacrifício a esse deus que dá a vida à terra.
Steinbeck para mim é o escritor que melhor mostra o modo como o agricultor vê o campo, a paisagem e interpreta o sinais meteorológicos e descreve a atividade da agricultura tradicional e a vida rural na primeira metade do século XX, fazendo tudo isto com uma escrita perfeita, plena de beleza e de metáfora originais e este romance cria imagens que são quadros perfeitos neste domínio. A temática saudosista de uma crença abandonada mas em pleno equilíbrio com a natureza em choque com uma fé contemporânea desenraizada da terra na alma de um agricultor leva a uma história onde o misticismo e as dúvidas sobre o espírito que controla o mundo atravessam toda a obra como uma luta entre o racionalismo, a religião, a ternura pelo que nos rodeia e o amor sob a a dureza da vida rural. Um pequeno romance que é uma pérola literária.

sábado, 15 de abril de 2017

"Bíblia" Na nova tradução de Frederico Lourenço - Cristo Ressuscitou!


Não importa se a tradução é do grego, canónica ou não, em todas elas, incluindo nesta tradução dos Quatro Evangelhos de Frederico Lourenço, prémio Pessoa 2016, o texto continua claro a comunicar: Cristo Ressuscitou - Feliz Páscoa a todos

terça-feira, 11 de abril de 2017

"RESSURREIÇÃO" de Lev Tolstói


Acabei de ler "Ressurreição" do grande escritor russo Lev Tolstói, um romance onde o autor expõe a sua filosofia de vida, a sua moral e fé de forma clara, com um apelo de conversão ao bem e tendo como referência a denúncia da injustiça que domina a sociedade que cria vítimas permanentes, não reabilita, nem resgata as pessoas do mal, proclamando uma visão do cristianismo muito própria e livre das interpretações oficiais das religiões cristãs tradicionais.
Nekhliúdov é um príncipe e com um bom coração amolecido pelo bem-estar da sua classe e luta permanente entre o ideal que busca e os hábitos e vícios a que se afeiçoou que o seu estrato social apoia e tem como a norma. No seio disto apaixona-se e abusa de uma doméstica órfã que engravida, é ostracizada e levada para a prostituição, vendo-se anos mais tarde envolvida num crime e sujeita a um tribunal de júri onde, por coincidência, ele se senta como jurado.
O príncipe, acobardado entre a vergonha e o dever, além dos interesses pessoais das personagens judiciais, assiste à condenação da inocente ao desterro e trabalhos forçados. Começa então a luta do herói para resgatar e reabilitar a mulher de que se sente culpado da sua situação, enquanto abdica das suas terras por ideais de justiça e se dedica completamente à condenada, inclusive oferece-se em casamento. Todavia a burocracia judicial, os seus intervenientes e os preconceitos dificultam a reparação dos próprios erros da justiça, o que o leva a acompanhar a sua vítima para a Sibéria e a conhecer os horrores do sistema prisional e a quantidade de inocentes que a sociedade condena e se desfaz e não salva.
Tolstói faz uma crítica forte do sistema económico e social da Rússia de então, expõe com crueza o sofrimento intolerável do regime judicial e, à semelhança de Victor Hugo, denuncia a aplicação cega da Lei contra as pessoas que mantém o sistema. Propõe o modelo económico de Henry George, que tem uma perspetiva mais rural do que o proposto por Marx para o seu proletariado urbano, a que associa a necessidade de uma prática do Evangelho livre da estrutura eclesial, mas ligada a Cristo.
Ao contrário de "Guerra e Paz" e "Anna Karénina", aqui Tolstói tem uma única linha narrativa, não havendo histórias paralelas a atravessar toda obra e servem de comparação a opções de vida alternativas. Todavia Nekhliúdov conhece muitas prisioneiros, de crimes a razões políticas, cujas vidas são comunicadas para destacar os defeitos do sistema vigente. Sem dúvida um grande romance, menos consensual que os outros citados, pois em Ressurreição as ideias do escritor são ditas diretamente sem preocupação de ferir ou divergir do leitor. Tolstói quer mesmo agitar a consciência de quem lê e tirar os acomodados da sua situação de conforto. Gostei e recomendo.