Páginas

domingo, 18 de junho de 2023

"Estorvo" de Chico Buarque

 

Li o romance de estreia "Estorvo" do cantor e escritor brasileiro Chico Buarque e galarduado com o prémio Camões. Tinha esta obra integrada numa coleção que comprei e associada a uma assinatura de um jornal.

Na transição entre o sonho e a realidade de um acordar com o toque da campainha, o protagonista vigia quem pretende ir ao seu apartamento, num vislumbre reconhece mas não lhe abre a porta. Regressa então à cama e entramos numa espécie de delírio entre memórias e uma peregrinação de uns dias onde todos os momentos narrados sucessivos corresponde a uma mistura da realidade presente e recordações de factos, desde ao visita à ex-mulher, ao roubo da irmã numa casa de sonho, passando por mala de estupefacientes e visitas a uma casa de infância ocupada por gente muito estranha.

Num texto poético que parece um delírio, é de facto uma obra estranha, mas que depois de começar a ler, li compulsivamente embora mais me parecer o evoluir de um sonho cheio de factos do que uma narrativa linear. Gostei embora por vezes me sentisse perdido num surrealismo cujo o texto me deu prazer de ler.

sábado, 10 de junho de 2023

"Entre dois Palácios" de Naguib Mahfouz

 

Citação
"É impossível escapar a uma desesperança insondável"
" A fé é mais forte que a morte e a morte é mais nobre do que a humilhação."

Neste momento estou numa fase de forte redução do tempo disponibilizado à leitura, pelo que, levei dois meses e meio a ler as 609 páginas do romance "Entre os Dois Palácios", o primeiro da denominada "Trilogia do Cairo", escrito pelo autor egípcio, laureado com o Nobel da literatura, Naguib Mahfouz.

Este romance conta a vida dos membros da família Ahmad Abdel Gawwad, composta pela subserviente segunda mulher e os cinco filhos dele durante o período da I Grande Guerra Mundial  e vai até à revolução de reivindicação da independência do Egito. Um período de transição em que o país está ocupado pelo ingleses e os Turcos do império Otomano já deixaram o território e a nação muçulmana anseia por se libertar da tutela estrangeira cristã.

O líder da família é um importante comerciante influente e respeitado no seu bairro, mas tem duas personalidades: a primeira gere a família com um feroz conservadorismo e obediência à fé muçulmana, retém em casa a mulher e filhas sem qualquer contacto social e impõe aos filhos uma obediência cega às suas diretrizes e apesar de dois deles serem maiores tal não impede o uso da violência física e psicológica. A segunda personalidade é a de um dissoluto com mulheres, apaixonado pela música e poesia e viciado em álcool.

Apesar do terror imposto por sayyed Gawwad, os elementos da família tendem a desobediências e a esconder esses factos, desde o primogénito filho de um primeiro casamento que segue as pisadas do pai na sua vida fora de casa, a uma filha demasiado agressiva na linguagem e a outra de excecional beleza que se quer mostrar, passando pelo idealista Fahmi com ideais políticos de participação na revolução e ainda criança a Kamal que inocentemente desrespeita as regras e se torna mascote de ingleses que ocupam a rua. Exceção para a subserviente mulher, que apenas por um deslize aliciado pela família será alvo de um castigo desproporcionado.

O romance, ao retratar a intimidade desta família, inclusive o pensamento das suas personagens, mostra a cultura egípcia, a mentalidade tradicional das suas gentes, o peso da religião islâmica nas relações humanas e na formação da personalidade. Não faz julgamentos sobre o certo ou o errado de forma evidente, mas ao salientar a hipocrisia, põe a nu uma sociedade patriarcal onde a mulher não é livre, nem tem voz, mas também onde esta inclusive não só aceita essa secundarização, como até se choca com outras que têm maiores liberdades.

A situação também está evidente na tradição dos casamentos negociados pelos mais velhos e não por escolha pessoal dos envolvidos, da imposição do patriarca aos filhos, além das formas como certos personagens contornam a imposição religiosa e moral mantendo as aparências social, sem omitir a exposição do caminhada para a independência deste povo dominado por estrangeiros. O romance mais do que denunciar, serve para reflexão do leitor e compreensão das diferenças culturais entre ocidente e o médio oriente islâmico.

Com numerosas referência ao Corão está-se perante uma narrativa que junta uma trama e informação histórica, com textos, por vezes, com parágrafo muito extensos intercalados com diálogos, onde há um uso de metáforas bem distintas das que podem brotar na cultura ocidental. Um excelente romance que desperta interesse para a continuidade da leitura dos volumes seguintes para completar a saga familiar e compreender a história do Egito na primeira metade do século XX.