"... estamos todos ligados uns aos outros pelas amarras indissolúveis do sangue heróico, pelas intrigas dos nossos deuses ciumentos..."
Estreei-me num dos mais originais escritores atuais de França: Mathias Énard, com uma das suas obras mais singulares e premiadas, "Zona".´
Francis quer deixar o seu passado e com uma identidade falsa está na estação de comboios de Milão numa ligação para Roma onde é abordado por um louco que lhe fala do fim do mundo. Este incidente irá levá-lo no resto da sua viagem a refletir sobre o que foi a sua vida, as suas relações amorosas e as repetições dos atos de violência por muitas outras vidas que também amaram e construíram a história da Europa. Numa sucessão de pensamentos, descobrimos o que ele foi depois de ter sido voluntário no exército croata na guerra civil dos Balcãs do final do século XX, nesta matou, foi violento, viu as atrocidades da guerra e perdeu amigos de luta. Na sua nova função circulou por toda a bacia do Mediterrâneo e recolheu dados de numerosos casos de comportamentos atrozes no passado do Continente, incluindo de seus antepassados, envolvendo homens de cultura como escritores, fotógrafos, filósofos, bem como espiões, militares e executivos políticos que foram gente degenerada e autores de tantos horrores.
Aos poucos vamos conhecer intervenientes e comportamentos medonhos na guerra civil de Espanha, no genocídio nazi, na Itália fascista, na luta da independência e ditadura da Grécia, na guerra de Israel com os seus vizinhos Palestinianos, passamos pelo Líbano, a Síria, a Argélia, Marrocos e Egito, recuamos aos homicídios da primeira grande guerra do século XX, ao genocídio Arménio e vamos até o tempo da batalha de Lepanto, a queda de Constantinopla sempre à sombra das vontades dos deuses gregos ávidos de sangue nomeadamente na batalha de Troia e sua redescoberta.
A narrativa é constituída por XXIV capítulos mas apenas um único parágrafo de mais de 400 páginas, sem pontos finais, com menos vírgulas face ao normal e sinais de interrogação limitados ao mínimo, quando geraria dúvidas não estarem lá. Nas deambulações de Francis muda-se de lugar, de tempo e de sujeito em cadeia. Este extenso parágrafo é intercalado por dois capítulos não sucessivos, onde é exposto um conto da guerrilheira Intissar da OLP em Beirute, este com pontuação regular e integrado num livro que Francis leva, lê e interrompe os seus pensamentos.
Apesar de várias personagens em torno de Francis serem ficcionais, há numerosos e extensos relatos em torno de pessoas históricas e ocorrências conhecidas com nomes no campo da cultura, da guerra e da política que vão desde Espanha ao Médio Oriente, ao genocídio dos judeus e dos arménios, do império Austro-húngaro que envolvem Cervantes, Caravaggio, Céline, Ezra Pound, Wlliam Burroughs, Malcom Lowry, Millan Astray, Rudolf Hess, Brasillach, Globocnik e muitos outros associados aos locais por onde a narrativa passa, com relatos de situações negras da vida pessoal deles, referências a livros, quadros e descrição de atrocidades públicas cometidas na bacia do Mediterrâneo, isto de modo a montar uma edifício gigante de horrores, derramamento de sangue e de loucuras que pesa na história de toda esta bacia, berço da civilização ocidental, onde tudo está ligado num campo de batalha sob os desígnios dos deuses gregos, cuja memória e culpa Francis de que se quer libertar.
Nem uma única vez Portugal é mencionado, fascismo, nazismo, sionismo, colonialismo e outros ismos terríficos ocorridos em espaços que não bordejem este mar não são desenvolvidos na obra, daí o Estalinismo e afins de esquerda passarem praticamente incólumes.
Descrições sublimes de algumas cidades como Salónica, Alexandria, Tanger, Beirute, Istambul, Veneza, Trieste, Barcelona e algumas ilhas Gregas e referências a obra de arte como canções, com destaque para Lili Marleen, livros históricos, de poesia e grandes romances, fotos, pinturas e acontecimentos históricos, que já fizeram notícias dos jornais do meu tempo como a guerra dos Balcãs e do Médio Oriente, entram cheios de vida neste parágrafo.
Uma técnica nova de escrita obriga o leitor a encontrar o seu modo de leitura, o que para começar não é fácil, aceitei as memórias narradas como uma sucessão de pequenas ondas que se vão espraiando na praia enquanto eu as olho meio mergulhado e me deixo banhar sem me preocupar com a anterior ou a seguinte, depois tudo flui e se vai encaixando no seu lugar, o tempo, o lugar e os autores e a partir daí é degustar esta ondulação que nos vai banhando até à última página. Gostei muito, apesar de não ser uma obra fácil, cheia de informações históricas e culturais, um texto que não deixa de desafiar um amante de literatura.
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