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domingo, 9 de outubro de 2022

"Amanhã na batalha pensa em mim" de Javier Marías

 

Excertos

"ninguém faz nada convencido que é mal feito, acontece apenas que em muitos momentos não podemos ter os outros em conta, ficaríamos paralisados, às vezes não podemos pensar senão em nós mesmos e no instante presente, não no que vem a seguir."

"Há coisas que devemos saber de imediato para não andarmos pelo mundo um único minuto com uma convicção de tal forma errada que o mundo é outro para nós."

Seis meses após a descoberta de Javier Marías, que então era ainda um autor vivo e para mim desconhecido, voltei àquele que considero o maior escritor que se me revelou nos últimos tempos e, entretanto, já falecido. Se tanto me impressionou então o romance em três volumes "O teu rosto amanhã", a minha admiração por este romancista espanhol não diminuiu nada com "Amanhã na batalha pensa em mim", mesmo sendo uma obra de menor envergadura em extensão.

Quando Víctor Francés vai para a cama de Marta, uma recém-conhecida e casada e em casa de quem  fora convidado a jantar, deparou-se com um mal-estar desta que acaba inesperadamente por lhe morrer nos braços. À surpresa inicial, seguem-se as indecisões perante a necessidade de deixar o filho dela em segurança e a conveniência de comunicar o facto ao marido ausente no estrangeiro, a que se junta as comunicações comprometedoras no gravador de mensagem entretanto recebidas. Então o protagonista opta por uma solução de ficar incógnito e se sair silenciosamente, mas as questões pendentes levam-no a aproximar-se da família de Marta e do seu marido, bem como a refletir na sua anterior relação com a ex-mulher e no fim a conhecer consequências imprevistas da sua opção.

Tão importante como os acontecimentos que vão sendo narrados e que fazem fluir a narrativa gota a gota, é a pormenorização dos momentos que se desenrolam no romance, a dissecação  das personagens envolvidas e as reflexões que se vão tecendo e entrelaçando em torno de tudo o que se passa no livro. 

A narrativa de Javier Marías não é para se ler em ritmo acelerado, é para se ir degustando calmamente cada frase, cada pensamento, cada aparte, cada reminiscência da própria obra (não é frequente um autor citar-se a si mesmo e menos ainda fazendo-o com frases e ideias expressas na mesma obra, Javier fê-lo e soube-o fazer no que queria realçar). Por vezes há que reler a densa teia de ideias lançadas ao longo do parágrafo. Não há perigo porque não é uma repetição, há sempre um pormenor e uma perspetiva que brota a cada nova leitura de uma parte do texto.

Tal como em Proust e Faulkner, mas sem qualquer imitação destes, a narrativa de Javier Marías é um fluxo contínuo de ideias, de pormenores dos acontecimentos narrados, de reflexões do momento vivido, de pensamentos dos respetivos efeitos e de justificações de comportamentos reativos do ser humano, expondo as situações e as personagens sobre múltiplos ângulos de visão e de abordagem em que o passado e a memória fundamentam parte do presente e este é condicionado pelas várias possibilidade do futuro por se concretizar. Temas como a vida e morte, presença e ausência, memórias e desejos a concretizar vão montando quadros psicológicos com mais pontos de que muita pintura impressionista.

Nem sempre concordo com todas as deduções e afirmações que vão sendo libertadas ao longo do fluxo narrativo, mas estou certo que nem Javier Marías, ou não haveria lugar a algumas possíveis contradições lançadas à reflexão na obra, mas sublinhar a riqueza de pensamentos colocados nos diferentes parágrafos dos livros deste escritor que já li levava quase a um sublinhado contínuo de todo o texto.

Para mim, há escritores que são reconhecidos devido à atribuição de um prémio Nobel da literatura, há outros que enobreceram o prémio por estarem na lista dos laureados por ele e há aqueles que teriam enobrecido se tivessem recebido este galardão literário no período da vigência deste, neste grupo coloco Tolstoi, Proust e agora, estou convicto também Javier Marías. Este romance foi premiado com outros galardões como Fastenrath, Internacional Rómulo Gallegos e Fémina Étranger.

Gostei mesmo muitíssimo do romance, mas, tal como já antes alertara na outra obra, não é um livro de leitura fluída rápida e fácil devido à densidade e riqueza de conteúdo narrativo, neste caso menos lexical, e, como tal, recomendo-o a leitores maduros na apreciação da beleza da escrita e da riqueza literária e pensamentos do um texto.

6 comentários:

Pedrita disse...

eu até fui ver se já tinha lido esse autor, mas era outro javier. linda a capa do livro. os trechos que selecionou são incríveis. quero conhecê-lo. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Para mim um Proust dos tempos atuais

Joaquim Ramos disse...

Dos poucos livros que li de Javier Marias, este foi o melhor e a grande distância. O primeiro capítulo passado na casa e cama da recém conhecida até parece o início de um filme "à la thriller". Muito bom.
Mas depois o que se segue, talvez a culpa, talvez a interrogação, são ainda melhores.

De momento estou a ler um livro aconselhado por si. A lebre de olhos de âmbar. Estou a adorar (e eu que pouco ligava à arte!!!).

Carlos Faria disse...

Pois gostei também muito dessa resenha histórica de como as peças chegaram às mãos do autor.
Ainda só li 2 Marías, mas adorei ambos.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Olá Carlos. Gostei muita dessa resenha, bem escrita. Não conhecia o autor.

Carlos Faria disse...

Pode ser um escritor que se ama ou que se odeie, pois é muito original e lento na sua narrativa e tem temas obsessivos sobre a intimidade humana, eu adoro.