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quarta-feira, 30 de março de 2022

"O teu rosto amanhã" Vol. I - Febre e Lança - de Javier Marías

 

Excertos

"tudo tem o seu tempo para ser acreditado, até o mais inverosímil e o mais anódino, o mais incrível e o mais ignorante."

"Há uma obsessão por compreender o odioso, no fundo há uma malsã  fascinação por isso, e com isto faz-se um imenso favor aos odiosos. Eu não compartilho essa curiosidade infinita do nosso tempo..."

Há muito que ouvia falar do espanhol Javier Marías como um dos escritores mais originais da atualidade, mas só agora me decidi a descobrir e logo através da sua obra mais extensa: o romance de três volumes "O teu rosto amanhã". No primeiro tomo duas partes do romance: "Febre" e "Lança".

Jacques Deza, começa a obra a explicar a importância de estar calado, de nunca se contar nada, ele, um madrileno recém-separado regressou à Inglaterra para fazer um programa de cultura espanhola na BBC, doutorado na Universidade de Oxford, frequenta a casa de um professor amigo naquela academia, lá é convidado a integrar um grupo secreto. Este procura interpretar o comportamento de pessoas seguidas pelo serviços de informação britânicos e ver-se-á num mundo onde responder, contar e dizer são armas bumerangue que atacam quem fala. Seguem-se reflexões sobre os indivíduos, a importância da comunicação, a pressão social, questões da atualidade, efeitos psicológicos da guerra civil de Espanha e da II Grande Guerra, disserta ainda sobre a sua vida individual, familiar e com quem convive e vai contando, contando, contando memórias ao contrário do que avisara.

A escrita, com um vocabulário rico e culto, cheia de referências linguísticas, é de uma fertilidade de adjetivos e pormenores, sinonímias lexicais que se estendem por longos parágrafos que vão desenvolvendo uma musicalidade em ritmos lentos que é única nos autores atuais que conheço. A densidade dos pensamentos, dos conteúdos desenvolvidos e das referências históricas e culturais tornam o texto como uma versão contemporânea de Proust, Musil temperado com o género de literatura de ficção académica anglo-saxónico típico de Robertson Davies e David Lodge, mas  mais rebuscado que estes.

A narrativa não tem pressa em concluir as ideias e os temas que vai lançando... vai divagando sem se perder no ponto inicial, embora o leitor por vezes se desencontre, mas após uma caminhada mais ou menos longa retoma com um remate final e completa o assunto começado muitas linhas ou páginas antes.

Não será um texto fácil para leitores apressados ou que não apreciem deixar-se passear na beleza do texto saboreando-o para depois chegar à conclusão, é um romance que avança a velocidade lenta, quase de caracol, mas para quem sabe apreciar é delicioso e compreendo porque se diz ser mais um candidato a Nobel, não sei, para mim já atingiu tal nível que não necessita de tal prémio para eu reconhecer a sua grande qualidade... não consigo parar e já adquiri e iniciei o segundo volume.

3 comentários:

Pedrita disse...

fiquei curiosa. parece muito interessante. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Mais do que interessante, é um grande exercício literário e uma obra com uma escrita culta magnífica

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Gosto da ideia dos autores atuais desafiarem essa tendência do tudo rápido e superficial. Como leitora, não é a todo momento que estou preparada para uma leitura mais densa e lenta, mas por vezes são elas que nos ajudam desacelerar.