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segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

"Numa casca de noz" de Ian McEwan - Bom Ano de 2019 com boas Leituras


Excertos
"O pessimismo é demasiado fácil, mesmo delicioso, é a insígnia e o penacho dos intelectuais de toda a parte. Dispensa as classes pensantes de encontrarem soluções."

"Pais e filhos. Ouvi isso uma vez, e não me vou esquecer. O que os une na natureza? Um instante de cio cego."

Outra obra pouco extensa, como é frequente nos romances do inglês Ian McEwan, "Numa casca de noz" é a narrativa feita pelo feto a partir do ventre materno da escuta do plano de sua mãe com o seu tio e amante para envenenarem o seu pai, da descrição da cena do ato criminoso, dos pormenores seguintes para fugirem à justiça e ainda intercalado com reflexões dos desejos futuros e da imaginação do mundo exterior feitas pelo nascituro dentro daquela casca de noz apertada, onde, apesar de tudo, mantém constante o seu amor filial.
A originalidade de dar voz a alguém antes de nascer sobre o que se passa no mundo exterior, onde ele já tem contacto com as injustiças sociais através do que ouve pelo corpo da mãe e a perceção dos problemas globais da atualidade dada as audições maternas, imaginando as características do mundo que desconhece e enquanto assiste impossibilitado à estratégia de se pôr termo à vida de um dos seus progenitores, tornam o trama já de si interessante, a que se associa uma escrita elegante e bem trabalhada, a que se junta uma crítica mordaz à sociedade e aos que estão mais próximos com um respeito contemplativo pelos pais e sem nunca desaparecer o humor na forma, o que torna o texto uma delícia. Gostei muito e recomendo.
Este terá sido o último livro concluído em 2018, pelo que aqui também vão os meus votos a todos os leitores de um feliz e próspero ano de 2019 e a recomendação de que cultivem o gosto pela leitura que permite sempre abrir mais horizontes de observação para o Mundo e a Humanidade.

sábado, 29 de dezembro de 2018

"Um copo de cólera" de Raduan Nassar

Excerto
entenda, pilantra, toda 'ordem' privilegia» «entenda, seu delinquente que a desordem também privilegia, a começar pela força bruta»"

Li, apenas num único dia, a novela "Um copo de cólera" do escritor brasileiro Raduan Nassar, vencedor do prémio literário Camões de 2016. O objetivo foi mesmo descobrir o autor que me era desconhecido, há décadas que não publicava e mesmo assim recebeu um dos galardões mais importantes da escrita em língua Portuguesa.
A novela, com pouco mais de 100 páginas, conta o período de vida do protagonista ao longo de uma noite e um dia na sua residência. Este chega a casa ao anoitecer e encontra a sua amante, uma jornalista, que já ali o espera... após uma noite de paixão e sono, acorda de manhã, inicia a sua rotina matinal, toma o pequeno almoço numa calma de pessoa satisfeita pelos seus prazeres e então descobre que a sua sebe sofreu um ataque de formigas que o enraivece: a sua cólera vira-se primeiro contra os insectos, depois para os empregados e por fim a sua companheira que o irrita intencionalmente, então desenvolve-se um diálogo cada vez mais irado que culmina numa relação de luxúria animalesca que termina em agressão verbal e física extrema que os separa, até que após êxtase e a saída para o trabalho no regresso nova noite começa...
A estória mais não é que um relato de luxúria e fúria, a obra vale sobretudo pela escrita. Cada parágrafo tem a extensão do capítulo em que se insere, sendo que o maior é mais de metade da novela num texto continuado sem interrupções que envolve descrições, sentimentos e diálogos numa grande criatividade de formas no uso da língua Portuguesa e foi efetivamente esta arte de tratar as frases que gostei e deve justificar o prémio décadas depois do abandono da carreira literária.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

House of Cards de Michael Dobbs


Excertos
"Quando as árvores são todas derrubadas, até um arbusto parece grande"
"É próprio da ambição exigir algumas baixas entre as tropas."
"Aqueles que desejam trepar ao cimo das árvores mais altas têm de aceitar as consequências que é verem expostas as suas partes mais vulneráveis."

Não vejo séries de televisão há vários anos, mas ouvi falar que House of Cards como uma forma de expor os bastidores negros da política, pelo que ao me cruzar com o livro que lhe serviu de base, ao descobrir que o seu autor era ele mesmo um político de carreira, vivendo precisamente na sombra  do poder, além de que o romance era do género de suspense político e estava em promoção, comprei de imediato este "House of Cards" do inglês e lord Michael Dobbs.
Ao contrário da série de TV, o livro original decorre em Londres e pouco tempo após Margaret Tatcher. Numas eleições o Primeiro-ministro (criado pelo autor) vence com uma maioria escassa e não segue o conselho de renovação do homem forte dos bastidores do seu partido: Francis Urquhart. Começa então um conjunto de fugas de informações que debilitam o executivo, há escândalos que envolvem a família do líder do governo, os mídia fazem o cerco manipulados por vários interesses. O leitor conhece os passos do autor das maldades e uma jornalista procura compreender o que se está a passar, no clímax da tensão surge demissão do Primeiro-ministro e a convocação de eleições internas, mas as chantagens e pressões levam a demissões dos candidatos e o o caminho vai-se abrindo a Francis, que tudo manipula sem escrúpulos.
Os estilo de escrita, embora não seja inovador, é bem trabalhado, cuidado, elegante e adequa-se ao género de suspense, tem a particularidade de quase todos os capítulos terem uma frase ou uma citação que torna concisa as manobras nele feitas a sangue-frio e alertas para os riscos que estão associados à carreira política, respetiva ambição e exposição pública. (os excertos são na maioria desses introitos)
Gostei do livro e da estória, que chama a atenção para o mundo escondido da política e mostra que numa época ainda sem as redes sociais da internet, hoje acusadas de fake-news criadas deliberadamente segundo interesses já era uma técnica praticada a coberto da eventual independência e ética dos meios de comunicação social levada a cabo pelos grupos editoriais das TV e jornais.
Um livro lúdico, sem pretensiosismos que se desenrola a um ritmo alucinante e mantém o leitor agarrado à estória, bem feito e com conhecimento de causa.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Feliz Natal a todos

Feliz celebração do Nascimento do Menino Jesus para todos os habituais visitantes deste blogue e suas Famílias que este período seja cheio de Amizade e do Amor que formam o coração do Natal.


Natal com livros é tão bom... só recebi 15 nestes dias.... ;-)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

"Babbitt" de Sinclair Lewis

Excertos
"A extraordinária, crescente e salutar estandardização das lojas, escritórios, ruas, hotéis, roupas e jornais através de todos os Estados Unidos mostra como o nosso modelo  de vida é forte e duradoiro."

"O cerne da sua religião era que era respeitável e benéfico para os negócios ser visto a frequentar a igreja; que a igreja impedia os elementos maus de se tornarem ainda piores..."

Terminei a leitura de "Babbitt" do norteamericano Sinclair Lewis, o primeiro escritor deste país a receber o prémio Nobel da literatura. Tanto a capa da imagem como a tradução não correspondem à da edição que li, pois o livro que comprei obtive-o num daqueles vendedores de obras usadas comuns em estações de transportes públicos em Lisboa e deduzo que o exemplar deve ter acompanhado uma coleção associada a um jornal ou revista com autorização da já extinta Difel.
Babbit é um agente imobiliário de sucesso, vive bem e acomodado à filosofia conservadora da ideologia capitalista dos EUA numa cidade imaginária (Zenith) de média dimensão, mas com problemas de choque de gerações em família devido a filhos mais progressistas e a uma mulher tradicional.
Babbit tem amigos e é membro das associações próximas do poder e neste meio envolve-se nos esquemas para os elementos pertencentes à classe dominante tirarem proveito das políticas públicas e opções estratégicas de gestão de Zenith. O seu grupo enfrenta a luta para erradicar a propagação de ideias mais igualitárias, reivindicações sindicais e teologias que defendam os mais fracos, ou seja, os considerados derrotados da sociedade por culpa prória, mas cujos sacrifícios e dificuldades servem de suporte aos senhores e seu bem-estar. Só que Babbit no seu coração tem ideais de justiça, simpatias por questões sociais e anseia por alguns prazeres, tentações que a seguir a sua vontade poderá ter de pagar muito caro face à pressão do meio que o cerca.
O romance tem uma evolução quase linear do dia a dia de Babbit e com isso faz um retrato, com um humor sarcástico e frio, do egoísmo e oportunismo da classe capitalista e dos empresários em ascensão na década de 1920 durante a lei seca. Insinua as estratégias dos dominadores para preservarem o seu comodismo, enriquecerem e esmagarem os argumentos de esquerda. Não se esquece de criticar as numerosas religiões criadas à medida dos interesses de grupo que proliferam no País e ainda é mordaz com as preocupações da moral puritana de então. É uma obra marcadamente de esquerda e agnóstica, embora estes dois mundos sejam denunciados pela hipocrisia dos ricos bem comportados, oportunamente "crentes" e de direita.
A escrita sem grandes artifícios de embelezamento é realista e ombreia com o tom de crítica irónica da sociedade que o autor quis retratar através dos ziguezagues, anseios e receios de Babbit e o romance vale sobretudo por essa caracterização e mordacidade das desumanidades do regime típico dos EUA. Um romance de fácil leitura que surpreende até à última página.

domingo, 9 de dezembro de 2018

"O Fio da Navalha" de Somerset Maugham


Excertos
"Eu não estava preparado para acreditar num Deus da sabedoria sem um pingo de bom senso."

"Quando um homem se torna puro e perfeito, a influência do seu caráter espalha-se para que aqueles que buscam a verdade sejam naturalmente atraídos para ele."

Terminei a leitura de "O fio da navalha" do inglês Somerset Maugham, uma história de contrastes de de opções de vida dos seus vários personagens que assim pelas diferenças de estilo levam o leitor a pensar sobre como a sociedade valoriza o fútil, que muitas vezes leva ao desespero, e despreza quem segue ideais mais elevados, como o sentido da vida e a busca de Deus numa vida sem as amarras ao dinheiro e fora das convenções do que é o sucesso social, mesmo que tal leve à paz de espírito e à felicidade.
O escritor narra como um seu amigo americano, Elliot, - que vai sendo dado a conhecer na obra, residente em Paris e cujo sonho é a integração na alta-aristocracia em plena belle époque que comercializa obras de arte com os seus conterrâneos tirando dai grandes lucros - lhe apresentou Larry: um ex-aviador do Ilinois que após a 1.ª grande guerra entrou na busca do sentido da vida e da essência de Deus na sequência de ter visto a morte de um amigo que ele lhe salvou a vida em combate.
Maugham, que é também uma personagem neste romance, apresenta-nos o círculo próximo de Elliot, que inclui a sua sobrinha noiva do ex-piloto e demasiado apaixonada por ele, cujos ideais de vida são a riqueza e o brilho social americano, e também gente cuja meta é igual ao dela. Só que na trama ainda há artistas, prostitutas, desesperados com os azares da vida, personalidades da igreja e outros ligados à sabedoria e religiões orientais, numa panóplia que se cruza sob o manto de paixões, ambições e futilidades em contraste com a busca da perfeição e desprendimento de Larry pelas convenções tradicionais para o sucesso da vida. Tais contrastes ditarão desencontros, desilusões e outras situações extremas até ao fim da obra.
Maugham serve-se destes diferenças para fazer um romance que se passa em vários locais do mundo entre as duas grande guerras, onde não só conta uma história de amor e ciúme, como a intercala com questões filosóficas que abordam crenças do cristianismo e denúncias da incoerência prática cristã, sobretudo nos católicos, o que pode chocar os convencionais não abertos à dúvida e à crítica insidiosa, enquanto apresentam alternativas de conceitos religiosos orientais. A obra põe a nu a futilidade no sucesso social de uns perante os azares de outros e plena realização pessoal e encontro com a felicidade de outros que parecem derrotados pelas convenções da nossa civilização.
O romance que pode parecer complexo, é de facto de fácil leitura, pois nenhuma personagem é despida de aspetos humanos o que permite dar uma unidade à narrativa mesmo quando se abordam temas mais profundos, construindo uma excelente estória temperada com reflexões e questões sobre a humanidade, a filosofia e teologia sem cansar. Gostei muito e recomendo.