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sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

"NEXT" de Michael Crichton

 

Resenha da capa frontal do livro

"Bem-vindo ao mundo da genética.

Acelerado, furioso, sem lei."

Em pouco tempo voltei ao escritor norte-americano criador do género literário denominado de "thriller tecnológico": Michael Crichton, agora com "Next". A trama cruza várias aventuras envolvendo investigadores genéticos concorrentes entre si, todos com ações no limite ou a ultrapassar a legalidade, nomeadamente: experiências genéticas com pessoas com consequências imprevisíveis; criadores de híbridos de genes humanos com animais; lutas por patentes de genes humanos com potencialidades de cura ou causadores de doenças; a utilização abusiva de pessoas como mercadoria sua, desrespeitando os direitos destas e batalhas destas perante a justiça num quadro legislativo cheio de imperfeições e de ética duvidosa.

Assim, a histórias conduzem a situações extremas de suspense de batalhas legais, animais semi-humanos interventivos, raptos de pessoas cujo corpo possui genes patenteados, envelhecimentos precoces imprevistos, animais que são filhos de gente e tornam-se personagens humanas, tudo isto num caos que é mais uma alerta para os riscos da investigação genética sem regras legais claras, sem bom senso, cientistas sem ética na sua investigação e busca de financiamentos numa sociedade onde a comunicação social especulativa agrava ainda mais as situações.

Numa espécie de posfácio, Crichton fala dos principais aspetos a corrigir na legislação americana, justificando várias leis pouco éticas, nomeadamente o de alguém ou uma instituição poderem ser donos de genes naturais sem os terem criado, mas sim a natureza. Importa ter em atenção que a obra foi escrita no início do século XXI e não sei se a legislação foi melhorada, sei que na população muitos temores subsistem em torno da engenharia genética, clonagem e outras tecnologias em torno deste campo de investigação.

O desenrolar do romance intercala capítulos curtos com situações envolvendo as personagens e suas criações com pretensos artigos nos mídia que falam dos mesmos temas que se passam na narrativa, dando assim um cariz de maior abrangência dos casos e o efeito amplificador da comunicação social para o caos. No seu conjunto, o desenrolar das histórias torna-se algo caótico, mas segura o suspense quando passa de situações distintas. A obra vale mais como um alerta para a necessidade de ética e regulação neste domínio científico do que por uma narrativa bem estruturada.


sábado, 18 de janeiro de 2025

"Nexus - História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial" de Yuval Noah Harari

 

Citações

"A ascensão de máquinas inteligentes capazes de tomar decisões e criar ideias significa que, pela primeira vez na História, o poder se está a transferir dos humanos para outro agente."

"Eis o traço distintivo da Inteligência Artificial: a máquina aprende, depois age de moto próprio."

Pela terceira vez li um ensaio em ebook de Yuval Noah Harari - um historiador israelita, formado em história militar e considerado um dos filósofos internacionalmente mais influentes da atualidade - "Nexus - Uma História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial".

Em Nexus, o autor começa por definir o que é informação, o seu papel em unir as pessoas, mas destrói a ingenuidade de quem acredita que quanto mais informação mais se está perto da verdade e de se tomar as decisões certas.

O livro prossegue com uma exposição histórica de como a informação aproveitou a utilização de novas técnicas para se desenvolver e expandir-se e assim foi moldando o evoluir da humanidade, evidencia o seu papel agregador e também o seu uso para controlar a sociedade e, com exemplos minuciosamente explicados, como esta suportou perseguições desumanas e catastróficas desde a antiguidade até ao século XXI, tal como permitiu salvar pessoas, pois não só serviu transmitir conhecimento científico e foi meio para fortalecer democracias que não sobreviveriam sem uma boa rede de comunicação, como também foi usada para alimentar preconceitos e para intensificar ditaduras que a usou para subjugar a população. Paralelamente, demonstra como a Inteligência Artificial (IA) é algo completamente diferente de todas as anterior tecnologias de suporte da informação, pela primeira vez esta pode ser controlada por não humanos e age sem a consciência e os sentimentos dos seres vivos, sendo ainda capaz de aprender, replicar-se e decidir por si só e com um elevado risco de fugir ao controlo da humanidade e da compreensão desta, algo capaz de nos manipular ou mesmo nos destruir.

Como habitualmente é referido nos livros de Harari, o futuro não é determinista, existem possibilidades várias de perspetivar o futuro de como irá a IA modelar a civilização global. Neste momento considera o autor que ainda pode estar na mão dos humanos evitar uma futura escravidão da humanidade a uma entidade não biológica e conseguir-se um equilíbrio que permita a IA ser útil e ficar ao serviço do Homo sapiens. Potencialidades são muitas, mas os riscos não são menos, conforme o ensaio explica muito bem. Uma obra que é um alerta para se evitar o domínio do algoritmo inteligente sobre a vida inteligente.

Sim, gostei muito do livro, mas como já conheço bem o autor - um filósofo ateu que acredita que a capacidade dos humanos se organizarem e comunicarem entre si foi a fonte do seu sucesso-, esta obra já não me surpreendeu tanto como em Homo Deus, mas como em todos os seus livros, este mostra que a humanidade volta a ter nas suas mãos um novo meio para se autodestruir e erradicar o sucesso da espécie e agora até para se escravizar pela primeira vez a uma entidade não orgânica. 

Pessoalmente, vendo o comportamento atual de alguns proprietários de grandes empresas mundiais de novas tecnologias, eu não ando numa fase otimista.... mas recomendo a leitura e depois reflita sobre as possibilidades e riscos que nos traz a IA.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

"Maus hábitos" de Alana S. Portero

Citações

"O medo que se passa no armário fabrica monstros a partir de sombras chinesas."
"Antes de conseguirmos definir-nos, os outros desenham os nossos contornos com os seus preconceitos e as suas violências."


Acabei de ler o romance estreia da escritora espanhola Alana S. Portero: "Maus hábitos", vencedor de vários prémios literários e um sucesso editorial naquele país.
O romance conta a vida de Alex pelos seus olhos desde criança, quando toma consciência que se sente mulher. Assim, fala do bairro pobre de Madrid onde vive, descreve uma juventude envenenada pela heroína, a vida de operários e domésticas com salários de miséria, famílias com violência doméstica tolerada pelas autoridades, prostitutas e travestis alvo de preconceitos e a sua tomada de consciência de que é diferente e precisa de tomar atitudes que a protejam da discriminação. Na adolescência, enquanto vai estudando, procura longe do bairro gente para relações, conhece o seu primeiro amor decepado pela intolerância, contacta com mulheres trans que a protegem até ser vítima de uma violência homofóbica. Fechada no armário, licencia-se, arranja emprego, mas vai necessitar do apoio da família e assim volta à origem até assumir a sua condição de transgénero já em pleno século XXI.
Apercebemo-nos por pormenores que Alex será o alter-ego da escritora e portanto a obra é quase uma biografia romanceada da sua sobrevivência numa Madrid desde os primeiros anos de democracia e liberdade, mas ainda dominada pela imposição dos costumes da ditadura.
O texto, cheio de metáforas e de imagens pouco comuns por mostrar uma perspectiva diferente da generalidade das personagens habituais na literatura, possui uma escrita sensível e terna, nunca erótica, mas há ações de violência física e psicológica sobre Alex, e muitas referências a artistas da década de 1980, menções de canções e filmes que moldaram a cultura daquela década e ligações as personagens da cultura clássica e da religiosidade popular. Saliento a ternura entre os membros da sua família, num permanente equilíbrio precário entre a incompreensão e a aceitação temperada pelo amor.
Literariamente é um livro bom, fácil de ler, sentimental e acessível a qualquer leitor livre de preconceitos ou para o ajudar a se libertar destes.

sábado, 4 de janeiro de 2025

"Um animal Selvagem" de Joël Dicker

 

Regressei ao escritor suíço Joël Dicker - grande génio atual em obras de suspense de puro entretimento pela sua originalidade no modo de contar a história - com "Um animal selvagem" que comprova o estilo que descrevi.

O romance começa logo por apresentar o início de um assalto a uma joalharia em Genebra e de imediato apercebemo-nos da perfeição do planeamento do ato, só que, de de súbito, o autor faz-nos recuar 20 dias para nos apresentar as personagens que estarão envolvidas na trama: duas famílias, uma endinheirada e com vida de luxo que se amam que inclui um dos assaltantes; e outra de um polícia de intervenção que virá a descobrir o plano e deve ter a função de evitar o roubo, mas que vive num bairro humilde e onde a mulher aspira ao estilo da outra, os dois casais conhecem-se e tornam-se grandes amigos entre si nos dias que antecedem ao furto.

Depois, numa sucessão de pequenos episódios diários, vamo-nos apercebendo da vida familiar e do plano a ser montando por uns, alternando com curtíssimas cenas do desenrolar do assalto, intercalados com relatos de segredos do passado, alguns com mais de 15 anos, que levaram às personagens a alcançarem o sucesso. Entretanto, nos dias de preparação, as paixões, os ciúmes e as invejas vão minando a relação entre os vigiados, desejados e invejados e os vigilantes e assim vão-se montando armadilhas uns aos outros, além de outras personagens que interferem nesta teia, até conhecermos completamente como decorreu o roubo, o passado dos ladrões e as consequências de todas ciladas perpetradas entre os envolvidos nesta história.

Joël Dicker é um mestre em levar o leitor a deduções erradas e em criar, sequencialmente, as mais espetaculares reviravoltas no desenrolar dos acontecimentos e nas reinterpretações das pistas lançadas. Assim, o escritor nunca deixa de nos surpreender até à última página, quando se fica rendido pelas voltas que aconteceram ao longo da narrativa sem esta nunca perder a consistência. Um deleite de entretimento e suspense ao longo de um texto fácil, escorreito, sem grande virtuosismo literário, mas que é difícil parar de ler pelo entusiasmo que desperta.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

"Canção do Profeta" de Paul Lynch

 

Excerto
"o profeta canta não sobre o fim do mundo mas sobre o que foi feito e o que será feito a uns mas não a outros, que o mundo está constantemente a acabar num sítio mas não noutro e que o fim do mundo é sempre um acontecimento local, chega ao nosso país e visita a nossa cidade e bate à porta de nossa casa..."

Acabo de ler "Canção do Profeta" do irlandês Paul Lynch, o romance vencedor do Booker Prize de 2023. Na trama, o partido nacionalista chegou ao poder na Irlanda, pouco depois, dois agentes batem à porta de Eilish a perguntar pelo marido, um dirigente do sindicato dos professores, então o medo entra em casa, ela tem de o proteger, bem como aos seus quatro filhos, que vão desde um jovem ainda menor até um bebé e, ainda, ao seu pai idoso e com sinais de senilidade mental a viver sozinho, mas a situação só piora: o sindicalista é levado pouco mais tarde, depois, querem recrutar-lhe o filho mais velho para o exército, o pai dela não percebe o que se passa no mundo e toma ações arriscadas, o país entra em guerra civil e todos os direitos humanos são pisados. Eis uma epopeia de luta desta mãe coragem que de derrota em derrota não desiste até fim do livro.
O texto é sempre descrito pelos olhos e pensamento de Eilish: as suas memórias dos tempos de normalidade, os seus medos do presente, os acontecimento aterradores que acontecem, a necessidade de proteger cada um dos seus familiares, a constatação que o poder nada respeita e a violência psíquica e física que evolui desde a retaliação política até ao aproveitamento do ser humano sobre o outro fragilizado.
Numa escrita muito própria e intimista, existem momentos onde se deduz atos de violência e tortura extrema e, sobretudo, chocante ou revoltante, eis um alerta sobre os riscos que o mundo democrático atual está a correr com os extremismos em crescimento no seu seio... até ao dia em que a canção do profeta nos bata à porta.
Gostei do romance, tem uma grande qualidade de escrita, mas confesso que sofri ao ler, doeu, mais ainda olhando para o desenrolar dos acontecimentos em curso no mundo democrático atual e perceber o que nos pode acontecer. Muito bom.

sábado, 14 de dezembro de 2024

"Desfile" de Rachel Cusk

 

"Desfile" foi a minha estreia na escritora Canadiana Rachel Cusk, autora que me despertou curiosidade por indicação de um amigo das lides literárias.

Este é um romance cuja narrativa não é uma história linear, mas antes uma passarela por onde desfilam várias personagens, que se identificam como G e são artistas: pintores, escultores, realizadores de cinema ou escritores; falam de si na terceira pessoa, tecem reflexões sobre a sua obra, a busca da verdade através da representação da sua arte, tentam mostrar ou esconder a sua identidade nas suas produções e mostram a evolução destas num esforço de exporem a realidade ou a verdade, um narrador ou mais que falam desses mesmos artistas e ainda várias outras personagens que expõem a sua reflexões sobre a arte, a identidade, as suas relações com os que lhe são próximos, filhos, pais ou companheiros e artistas e alguns G.

Assim, temos G visto pelos olhos da mulher, mais admirado pela crítica do que por ela, que, num momento, passa a pintar quadros de pernas para o ar e onde ela entra na pintura; temos a escultora de malha G, onde numa exposição póstuma da sua obra se dá um suicídio, o que leva a curadora e um círculo de convidados para falar no evento a se encontrarem e a conversarem de arte e da sua vida numa mesa de restaurante; temos a pintora G que pinta com base em fotografia e em tensão permanente com os pais, o marido e filha; temos um escritor que passa a realizador que quer esconder a sua identidade e mostrá-la atrás do seu pseudónimo G para não perturbar os pais ao contrário do seu irmão, responsabilizado pela doença da mãe; temos ainda um casal que passa férias numa ilha e reflete sobre a vida, além de outros Gês e personagens.

No fim está tecida a teia de reflexões, ora em tom ficcional, ora ensaístico, que levanta questões desde o reconhecimento da mulher como artista, o papel do corpo na arte ou na representação, a identidade escondida ou exposta, a busca da verdade na arte e, inclusive, da possibilidade de não ser considerada útil apesar do trabalho que deu a produzir e tudo o que está subjacente a ela ou de ser importante e ainda pensamentos das relações humanas, a vida e a morte.

Numa série de pequenos episódios com uma escrita única a teia fica montada numa obra de arte muito sui generis.

domingo, 8 de dezembro de 2024

"O Protocolo Caos" de José Rodrigues dos Santos

Citações

"Se muita gente disser ao mesmo tempo o inaceitável, o inaceitável tornar-se-á aceitável."

"As redes sociais apelam à raiva, à indignação, à fúria justiceira."... "Os algoritmos não estão preocupados com a verdade nem sequer sabem o que é isso. São amorais."... "todo o sistema está montado para privilegiar a emoção e a falsidade."

Apesar dos romances do jornalista José Rodrigues dos Santos tenderem a ser atualmente dos mais vendidos em Portugal, do seu sucesso internacional e de muitas vezes ele ser designado como o "Dan Brown português", apenas dele li os dois volumes da biografia romanceada de Calouste Gulbenkian, e mesmo tendo em conta a pressão negativa contra ele de certa franja política, logo que em pré-lançamento percebi o tema que ia ser focado nesta ficção de espionagem e suspense: o modo como Putin está a implementar a sua estratégia de destruir o ocidente democrático e de dominar a Europa, baseado em factos verdadeiros, quis ler "O Protocolo CAOS".

A obra possui três histórias diferentes que se alternam ao longo do livro: 1. os acontecimentos que levaram ao recrutamento do tenente Chernyshev para os serviços secretos russos (FSB), a sua aprendizagem para interferir no Brexit, na eleição de Trump e na recusa da sua derrota; 2. a situação angustiosa da vida de Roderick na Louisiana, a opressão imposta pela cultura woke, a sua apresentação às redes sociais e o modo como é por estas manipulado pelo FSB para se tornar num incondicional apoiante de Trump; e 3. como o "detetive" Tomás Noronha se torna alvo de chantagem russa e tem de trabalhar para o FSB, enquanto tenta reconciliar-se com a esposa ao colaborar com a Amnistia Internacional em casos desastrosos gerados pelas redes sociais: a propagação do vírus Zika no Brasil e a perseguição da etnia Roinga no Myanmar. No fim, as três narrativas unem-se e evidenciam como a humanidade está a ser afetada pelas redes sociais e como estas estão a ser usadas pelo regime russo para dominar o mundo democrático.

O texto da narrativa é escorreito, mas literariamente pobre, sem grande recursos estilísticos e os que usa são banais. Cada capítulo termina deixando o leitor surpreendido e em suspense, uma técnica que o prende, mas a obra vale sobretudo pela denúncia clara da manipulação personalizada das pessoas que usam as redes sociais e mostrar como Putin interferiu no Brexit e fez ascender Trump ou por responsabilizar redes sociais do genocídio dos roíngas e na campanha anti vacinas no Brasil. Várias personagens do romance são marionetas manipuladas, executantes acríticas de uma estratégia de que são alheias ou vítimas inocentes.

Perto do final do romance, este torna-se quase uma exposição jornalística de vários aspetos preocupantes em torno de Trump a que se segue uma Nota Final explicativa dos factos reais que suportam as histórias e da forma como é construída a narrativa de Putin e a sua estratégia de destruir a Europa e fazer colapsar os Estados Unidos com os valores do ocidente: a democracia, a liberdade e com a ferramenta das redes sociais.

Em determinados momentos sente-se a influência de Timothy Snyder, que é citado na bibliografia final, e para quem leu este livro, percebe como esta obra vai no mesmo sentido. Todavia, Rodrigues dos Santos, talvez por ser ideologicamente liberal, e ao contrário da caricatura à cultura woke, para a ascensão de Trump e vitória do Brexit nunca culpa a ganância sem amarras dos mais ricos no capitalismo, nem os efeitos da deslocalização de unidades fabris pela globalização que gerou estagnação e pobreza da classe média das zonas industriais do século XX nos países economicamente desenvolvidos. 

Em resumo: apesar de não considerar que se esteja perante uma obra de ficção com grande qualidade literária e de não cobrir todos os aspetos que estão a instabilizar o ocidente, vale a pena ler este romance pelo aspetos que denuncia, isto enquanto ainda é possível viver em democracia e liberdade no ocidente.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

"Os Enamoramentos" de Javier Marías

 

Regressei ao meu escritor fetiche dos últimos dois anos, o espanhol Javier Marías, com o romance "Os Enamoramentos".

Maria Doltz habituou-se a observar a felicidade de um casal durante o pequeno-almoço que assiduamente comia no mesmo café em que ela passava antes de se dirigir ao seu emprego, algo que fazia parte da sua rotina e motivador para melhor enfrentar o trabalho, só que o casal deixou de aparecer e pouco depois descobre o assassinato do marido. No reaparecimento posterior da esposa no café, ela entabula uma conversa de condolências, o que lhe vai levar a uma visita a esta, a compreender o luto da mulher e a conhecer o melhor amigo do esposo. Situação que lhe abre portas para a descoberta de um segredo horripilante sobre a morte dele, à reflexão sobre o esquecimento dos defuntos de cada um e à evolução dos enamoramentos que o tempo traz aos vivos.

Como habitual nos livros de Javier Marías, não há pressa no evoluir dos acontecimentos, antes o texto deambula por reflexões em todos os momentos da narrativa, uma sucessão de pensamentos e casos encadeados por uma série de pormenorizações, de adjetivos e de sinónimos que emolduraram cada ideia e constroem parágrafos muito extensos. Um caudal de conceitos e meditações que fluem de modo indolente até se completarem e, de repente, interrompidos por situações de surpresa e choque que mudam o rumo da história e retiram o leitor da anestesia e modorra em que caíra.

Não conheço nenhum escritor que consiga ir tão profundo na análises que leva a cabo em matéria de consciência, memória e do potencial do comportamento humano para concretizar atos extremos e em Os Enamoramentos Javier Marías volta a fazê-lo com a sua habitual genialidade e mestria. Literatura como obra de arte no seu mais alto grau. Acabo sempre por adorar os livros deste autor e este romance não foi exceção.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

"PRESAS" de Michael Crichton

 

"Vai haver um momento, algures no século vinte um, em que a nossa inquietação cheia de autoilusões vai colidir com o poder tecnológico em constante crescimento. Uma área em que isto vai acontecer é a zona de contacto entre a nanotecnologia, a biotecnologia e a tecnologia informática."

In Introdução de Michael Crichton ao romance "Presas"

Após quase 20 anos voltei ao norteamericano Michael Crichton, autor do famoso Parque Jurássico que deu origem a vários filmes. Enquadro o romance "Presas" no género de suspense e especulação dos ricos da evolução tecnológica e científica atual sobre a Humanidade por perda de controlo ou falta de ética do seu uso.

Jack Forman é um programador informático que perdeu o emprego devido a princípios éticos, passando a tomar conta dos seus 3 filhos em casa, enquanto a mulher, Júlia, está a desenvolver um projeto em nanotecnologia noutra empresa que pretende revolucionar a medicina com a introdução no sangue de câmaras de filmar inteligentes. Jack começa a desconfiar do comportamento da esposa, um dos seus filhos desenvolve uma doença estranha, Júlia sofre um acidente em circunstâncias dúbias e ele é contactado do ex-emprego para cooperar num programa informático que está a ter resultados indesejados. Ele descobre que é o mesmo associado ao projeto de nanotecnologia da mulher. Uma oportunidade para descobrir o que há de estranho com ela e o pedido de auxílio vindo de quem o despedira, pelo que aceita. Vai para o laboratório no deserto e percebe que a equipa perdeu o controlo daquilo que criara, a tecnologia ameaça o criador e a Humanidade.

O estilo narrativo é de um relatório quase horário de uma semana de acontecimentos, expostos de forma muito cinematográfica, sem grandes artifícios estilísticos que desviem a atenção, mas com diversos diálogos fáceis e informações acessíveis de conhecimentos científicos que mistura teorias reais com aspetos especulativos que apoiam a hipótese da trama, com uma sucessão de momentos inesperados que geram suspense em cadeia que prendem o leitor e o levam a suspeitar do perigo que espreita as personagens, a própria humanidade e a necessária luta entre os que permanecem livres e os reféns da criatura criada que evolui com a sua inteligência artificial (na obra distributiva).

Crichton nem sempre foi bem recebido pela cultura literária dominante e woke, chamou a atenção de determinados excessos para refrear excessos e talvez, nalguns casos, fosse mesmo negacionista. Contudo, sou um admirador da literatura que concilia a especulação científica em obras de suspense e terror e já há muito tempo que nenhum romance me prendia tanto à leitura como este.

Para quem viu ou leu Parque Jurássico e gostou, aqui está outra obra que agarra o leitor com a mesma fórmula e, apesar de ser ficção, leva-nos a pensar sobre as ameaças que a ciência pode trazer se não for eticamente controlada pelo investigador ou patrocinador. Tudo o que li deste autor neste domínio adorei. Presas não foi exceção.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

"ABISMO" de Yrsa Sigurdardóttir

 


Procurei na biblioteca um livro policial nórdico para que me despertasse emoções, suspense e fosse apenas uma leitura de lazer para descansar da realidade, fui à descoberta da islandesa Yrsa Sigurdardóttir com este "Abismo" e o objetivo de me cativar e de me interessar foi conseguido.

Uma escola desenvolveu a atividade de enterrar uma garrafa em 2006 com as perspetivas das crianças sobre como seria a vida em 2016. Fim do prazo, ao desenterrar-se a cápsula do tempo, o diretor da escola depara-se com uma carta anónima com referência a uma série de mortes identificadas por iniciais e a ocorrer naquele ano. Avisa a polícia e esta, no princípio, pensou tratar-se de um devaneio, mas em pouco depara-se com vários crimes de extrema violência e o aparecimento de partes de um corpo, as vítimas parecem ligados a um caso que envolve a família do aluno identificado como o autor, só que um apagão informático do processo judicial  torna tudo muito difícil e o polícia Huldar e a psicóloga Freyja de crianças vivem dias difíceis nas suas instituições que dificultam a investigação em torno de algo muito sombrio que une toda esta teia e pessoas do alto da justiça. 

Escrito numa linguagem escorreita e simples, utilizando a técnica de deixar o leitor suspenso em momentos de grande tensão, a obra segue o estilo nórdico, com situações criminosas de violência física extrema sem ser necessário a sua descrição para se as imaginar, intercaladas com momentos da vida pessoal das principais personagens e suas tensões sentimentais, enquanto se suspeita de acontecimentos perturbadores que terão passado várias crianças e seus pais emaranhados num sistema de justiça disfuncional, cujas consequência desembocam vertiginosamente numa série de desgraças em série de ódio justiceiro que não olhou a meios, nem à dor de novas vítimas inocentes até ser descoberto.

Gostei, uma obra detetivesca, cujo suspense vai aumentando e com crimes chocantes de arrepiar sem descrições desnecessárias, pois alimentar a imaginação basta com as pistas deixadas na narrativa. 

sábado, 26 de outubro de 2024

"Uma casa para Mr. Biwas" de V. S. Naipaul

 

Regressei pela segunda vez à leitura do laureado com o prémio Nobel da Literatura V. S. Naipaul, um escritor de origem indiana e natural de Trinidad e Tobago de expressão inglesa. O romance "Uma Casa para Mr. Biwas" relata a vida de Mohun Biwas desde o seu nascimento até à morte.

Mohun, nascido numa família miserável, com seis dedos, mas cedo perdeu o apêndice excedente, cujo arauto do pândita que o integrou na comunidade expressou que nunca deveria estar perto de água, pois por esta ele traria desgraças à família, cedo ficou órfão por transgressão à recomendação, o que levou à morte do pai. Acolhido depois por uma tia que o protege e após os primeiros trabalhos de infância descobre o seu dom para letras e escrita, nesta arte conhece a Shana do clã Tulsis com quem, inconscientemente, é levado a casar e a viver esmagado pela força da comunidade numerosa de dois irmãos e muitas irmãs da esposa, dos respetivos maridos e dos muitos sobrinhos, todos sob a alçada da matriarca e seu cunhado. Inconformado nesta opressão, retalia, protesta, incita à rebelião, sendo exilado para sucessivas propriedades do clã, onde presta trabalho quase escravo, enquanto Shana  se mantém subserviente à sua família e lhe vai dando filhos e ele como um longo acumular de desgraças e antipatias. Nesta senda, aspira à sua libertação através de conseguir uma casa livre dos Tulsis, até chegar à capital de Trinidad onde consegue um trabalho num jornal especulativo que o torna conhecido mas não liberto do clã e sempre com o sonho de conseguir a sua casa.

É sem dúvida um grande romance, contudo o peso do clã e a descrição crua das tradições da cultura hindu que ao longo de quase todo o livro esmagam Mr. Biwas (baseado no pai do escritor) criaram-me uma aversão à narrativa e um preconceito contra a comunidade indiana que tornaram esta leitura dolorosa. Uma quase versão do Job bíblico nos tempos da II Grande Guerra naquela ilha das Caraíbas.

Tenho de reconhecer que em termos de obra, esta, além de extensa, tem um grande valor literário e força, mas mesmo temperada com sarcasmo e ironia para suavizar o asco da caracterização do clã Tulsis (cujo autor parece se ter baseado também na sua própria família materna), foi difícil prosseguir a leitura e, ao contrário de A Curva do Rio que gostei muito, este bom romance deixou-me marcas amargas, mas valeu a pena ler.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

"A pele do Tambor" de Arturo Pérez-Reverte


Regressei ao escritor espanhol: Arturo Pérez-Reverte, um autor profícuo e diversificado de romances históricos, policiais ou ensaios e um bom analista da cultura hispânica. "A Pele do Tambor" enquadra-se no género ligeiro de investigação criminal e tem o tempero de mostrar o mundo menos exposto dos interesses terrenos da igreja e do Vaticano.
Numa sala de controlo da rede informática do Vaticano é detetado a entrada de um hacker que deixa uma mensagem ao Papa sobre uma igreja em Sevilha que mata para se defender, a situação abre uma investigação a partir do da secretaria de serviços estrangeiros e do departamento sucessor da Inquisição, sendo então encarregue do caso o padre Lorenzo Quart, que mais não é que um agente de espionagem da Santa Sé.
Em Sevilha Quart depara-se com um templo que um banco e a diocese estão interessados em demolir para investimento e especulação imobiliária, isto contra a vontade do pároco e de uma família nobre ligada àquela igreja, situação que parece já ter causado acidentes mortais dúbios e atritos familiares entre o gestor bancário e a sua mulher nobre, além de contratar alguns rufias para levar a cabo atos sujos de modo a conseguir os seus intentos. O padre vê-se numa situação de proteger os interesses do Vaticano sem se imiscuir nas guerrilhas locais, incluindo da diocese, enquanto também uma mulher jovem e atraente está no cerne do caso.
Costumo gostar das obras de Pérez-Reverte por ser um autor que junta boa escrita literária aos diferentes tipos de ficção que produz, pelo que é viável ler um policial sem sentirmos que estamos perante literatura de cordel de mero entretimento. A Pele do Tambor não é exceção, contudo, foi uma obra que embora me tenha entusiasmado nas primeiras páginas - quando o hacker quebra as seguranças do Vaticano e se sente em seguida o saudosismo dos senhores todo-poderosos da Santa Sé de agirem sobre o mundo na defesa dos seus interesses terrenos, cheios de grande frieza e pouco humanismo em nome de um deus que dizem ser amor - só que depois o interesse desvaneceu-se um pouco sem aquela ansiedade de uma obra de suspense. É um romance simpático, que mostra o grande encanto de Sevilha, que conheço, e tem um final surpreendente. Gostei mas não me deslumbrou. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

"A ilha dos Espíritos" de Camilla Läckberg

 


Neste período estival, onde tenho dado preferência a romances preferencialmente de entretimento, acabei de ler mais um romance policial da escritora sueca Camilla Läckberg: "A Ilha dos Espíritos", que onde continua a narrar casos que vão passando pelo casal da pequena cidade de Fjällbacka, constituído pela escritora de suspense Erika Falks e seu marido Patrik Hedström detetive na esquadra do Município Tanumshede.

Madeleine antiga colega de liceu de Erika refugia-se na pequenina ilha dos Espíritos com seu filho junto de Fjällbacka  depois de uma ocorrência que levou à morte do seu marido, em paralelo, o seu antigo namorado Mats e colega de turma mudou-se para Fjällbacka pouco após ter sido agredido em Gotemburgo tornando-se contabilista de um grande investimento na sua nova cidade, só que quando surgem dúvidas nas contas e se encontra com a sua antiga paixão aparece morto a tiro. Outra mulher refugia-se em Copenhaga devido a ser vítima de violência doméstica. Na esquadra a equipa heterogénea investiga a morte de Mats e não encontra pistas. A irmã de Erika recupera psicologicamente de um acidente com a morte do seu filho por nascer enquanto a outra trata dos seus recém-nascidos gémeos e investiga as lendas da ilha dos Espíritos que nunca abandonam a ilha e convivem com os seus visitantes, em conversa com o marido vai acompanhando o caso e visita antiga colega. Só que as coisas ficam complicadas e precipitam-se com com o surgir de casos de droga e mais mortes e precipitações de polícias imprudentes e a intuição de Erika. Em Gotemburgo e Estocolmo investigações de casos à partida independentes vêm mostrar-se que fazem parte todos do mesmo caso e a cooperação dá os seus frutos finais. 

A trama em cada romance desta escritora nunca é linear, vai-se montando um quebra-cabeças com episódios individuais associados a cada uma das personagens, ora de investigação, ora da vida familiar, ora do convívio social que no fim levam à descoberta dos crimes violentos e, frequentemente, uma segunda narrativa de memórias do passado vai sendo intercalada, uma repetição do passado com ecos no presente. Marido e esposa jogam no limite da cooperação entre o sigilo das vidas profissionais e a investigação conjunta e as tensões familiares e da esquadra. São romances policiais onde a vida familiar e a atividade detetivesca se desenvolvem em paralelo, se entrecruzam e têm pesos iguais no evoluir da narrativa, num tom marcadamente feminino que mais perto do final acelera.

Romances simpáticos, fáceis de ler que entretêm neste calor de verão e vão mantendo o interesse na leitura e no desenrolar investigação.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

"Operação Shylock" de Philip Roth

 

Citações

"Não, o carácter de um homem não é o seu destino; o destino de um homem é a partida que a vida prega ao seu carácter."

Acabei de ler "Operação Shylock" do escritor norteamericano Philip Roth, um romance onde o protagonista é o próprio Philip Roth, o qual em 1988, em recuperação de uma depressão gerada por um medicamento para a insónia, descobre que em Jerusalém está um sósia a usar o seu nome e fama para veicular a ideia de os judeus regressarem à Europa, de onde saíram após a queda de Hitler, para assim evitar um segundo holocausto devido a uma provável destruição de Israel, um sionismo invertido, a que chama diasporismo. Perante esta situação e contra vontade da mulher, utiliza a intenção de entrevistar um outro escritor e de ver um julgamento de um colaborador nazi denunciado, decide  ir a àquela cidade e tentar por cobro à situação e enfrentar o usurpador da sua personalidade, só que as peripécias que daí resultam são tantas que se transforma numa odisseia envolvendo judeus, palestinianos, espiões, militares, uma mulher deslumbrante, antigos colegas e amigos.

O romance é um autêntico desenrolar de virtuosismo e de imaginação de situações bizarras, ora absurdas, ora de descrições da realidade de vida no médio oriente, tudo sempre temperado por um humor sardónico e uma sensação de obsessões, o que permite, ao abrigo destes artifícios, denunciar a realidade histriónica que se vive em Israel e nos territórios ocupados, bem como escalpelizar a mentalidade judia dos sionistas regressados à Terra Prometida face aos restantes hebreus que vivem ambientando-se à vida na sociedade norteamericana e os traumas psicológicos que resultam nuns e noutros, bem como, nos antigos residentes da Palestina que se viram desposados das suas propriedade e alvo de permanente perseguições.

O absurdo e a sensação de confusão e obsessão, com o humor que trespassa a obra faz parecer uma obra hilariante, contudo, mostra a realidade complexa e histriónica que afeta os povos que ali coexistem, denunciando, por esta via, injustiças, comportamentos abusivos, vítimas e feridas que são atuais e extremadas com a guerra que está a assolar os palestinianos, permitindo compreender melhor a realidade do médio-oriente. Sem ser um manifesto político no verdadeiro sentido do termo, é sem dúvida um obra que utiliza a literatura ficcionada para mostrar ao mundo um problema real provocado pelo sionismo. Sem ter a crueza de um Guernica de Picasso, tem o mesmo efeito de denúncia da guerra que utiliza todos o meios para dominar o outro e onde os judeus não são inocentes. Um excelente livro que se mantém atual, escrito por um judeu que não se coíbe de dizer que o é, mas... nem todos são iguais.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

"O Álibi Perfeito" de Patricia Highsmith

 


Acabei de ler 5 contos deliciosos sobre crimes escritos pela norte-americana: Patricia Highsmith, dos quais, o primeiro: "O Álibi Perfeito", dá título o livro.

Frequentemente, nos romances policiais e contos desta autora, a narrativa é contada do lado dos criminosos e muitas vezes apresenta-nos as razões de queixa que estes têm das suas vítimas, gerando assim uma empatia para com os culpados. Nestes contos há diversidade, em quase todos o protagonista é o criminoso.

Em álibi perfeito, o crime é perpetrado logo no início, percebe-se que bem planeado para o autor conseguir libertar para si a mulher que ama, mas cativa do seu tutor, só que de um alibi e um comportamento não previsto tudo parece que vai acabar bem... até num pormenor ser tudo desfeito. Noutro crime planeado, é tudo bem programado, cronometrado, mas a dependência de terceiros inocentes mostrou que não se pode contar com ninguém quando tal é fundamental. Há ainda uma história onde os criminosos caem na sua armadilha e outra em que são vítimas de testemunhas que não contaram. Pelo meio há o conto onde se conseguiu o crime perfeito e os autores gozam a libertação de quem os oprimia.

Maldade humana e maquinações em contos curtos, mas deliciosos e bem escritos: uma mistura que faz deste pequeno livro uma pérola de entretenimento de literatura policial. Gostei muito.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

"O Imoralista" de André Gide


 Citação

"Desgostos, remorsos, arrependimentos são as alegrias de outrora, vistas de costas."

Acabei de ler "O Imoralista" do escritor francês, laureado com o prémio Nobel da literatura, André Gide, correspondendo à minha estreia neste autor.

Michel é um jovem órfão de mãe, respeitador das regras morais e um brilhante estudioso da história das civilizações clássicas da Europa, um tipo de investigação que segue as mesmas pisadas de seu pai, mas, perto da hora da morte deste, ele toma a opção de casar com uma conhecida de família para assim transparecer perante o progenitor o seu enquadramento num futuro tradicional estável. Apesar do luto, os noivos decidem ir para a Tunísia em viagem de núpcias e conhecer os restos arqueológicos do império romano e de Cartago, só que ele adoece gravemente e na cura reconhece que ressuscitou para a vida, mas já não é o mesmo. Agora quer viver a vida sem amarras e a moral mais não é que um constrangimento ao verdadeiro disfrutar da vida. Então fascina-o tudo o que sai fora das regras. Entretanto, no regresso à França, é a sua mulher que adoece. Michel então empreende uma viagem ao norte de África para a cura desta, mas nem ele é o mesmo, nem a evolução é igual ao pretendido.

Como seria de esperar de um Nobel, o texto está brilhantemente bem escrito, trespassa para o leitor o sentimentos de Michel, as sua confusão fruto da mudança e as descrições do norte de África e de Itália são como fotos impressionistas, onde a atmosfera dos lugares é mais forte que a geografia.

Logicamente o romance é polémico, a preocupação de Gide em questionar as amarras da moral que limita o usufruir da vida, sente-se. O encanto pelo belo rústico e físico nos homens e, sobretudo, efebos, quase não há personagens femininas além da esposa, pode incomodar homofóbicos. A ideia de que os bem-comportados e integrados na sociedade são hipócritas conscientes ou inconscientemente é chocante, mas como refletir sobre a vida sem questionar os costumes e a moral instalada e incomodar?

Gostei, mas não é uma obra compreensível para todos ao nível da filosofia subjacente e deste romance poder-se-iam tirar do texto dezenas de pensamentos para reflexão.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Contos de Tchékhov - Volume 4

 

Li o quarto volume da extensa coleção Contos de Tchékhov da Relógio d'Água, gosto muito deste contista russo e esporadicamente vou à biblioteca pública buscar um volume para assim ir lendo a coleção.

Este volume possui 14 contos, os dois últimos mais extensos, quase novelas com perto de 100 páginas, os anteriores, na sua maioria, na ordem de uma dezena de páginas. Temos ao longo das diferentes narrativas curtas protagonistas de várias classes e situações mais ou menos comuns, desde um guardador de um cadáver que o abandona por um serviço pago, à mulher que trai o marido com um jovem enquanto aquele trabalha, à jovem que se apaixona pelo talento de um pintor medíocre e outra por um estatístico, ao caso das memórias de uma paixão passada que abre uma exceção no presente até a um lobo que ataca um redil cujas culpas caem num humano, etc.

Já as narrativas mais longas tornaram-se me mais cansativas, para mim Tcheckhov é mesmo genial em histórias curtas, numa, um espião tem ocasião para se apaixonar e não para desenvolver o seu objetivo ao ver uma relação de uma amante apaixonada por um homem que não se quer incomodar com a esta e não tem coragem para o assumir. Na outra, assistimos ao regularizar das relações matrimoniais dentro de um casamento com um início incerto cujo comodismo se instala com o tempo.

Confesso que me delicia a escrita (ou tradução) de Tchekhov, e as histórias curtas, embora possam relatar situações tristes, banais e a vida de gente comum, de tão bem narradas que estão, dão sempre grande prazer de ler. Gostei muito