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terça-feira, 28 de abril de 2015

"A Peste" de Albert Camus


"A Peste" de Albert Camus, prémio Nobel de 1957, fica entre os livros mais marcantes que li. Não só por ser um magnífico romance ao abordar a questão do Homem em sociedade face a desafios extremos, estar muito bem escrito, mas também, por desenvolver um tema que me é caro: a catástrofe pública e o exílio duma comunidade; que me recordam a situação de ter sido sinistrado de um sismo, responsável e residente de campos de acolhimento de desalojados.
"A Peste" narra o viver da cidade, Orão, Argélia, até o aparecimento da epidemia infetocontagiosa, o longo período de quarentena da sua população e os comportamentos no desaparecimento da doença, vistos pelos olhos de um médico que lutou e enfrentou o problema, em combinação com as memórias das pessoas que com ele trabalharam na crise.
Desde o surgir da doença no livro que me vieram os paralelismos com "Ensaio sobre a cegueira" de Saramago, que li antes do sismo na minha comunidade. Neste predomina a ação entre quem ficou doente e segregado da sociedade. Camus destaca as relações humanas em quem procura proteger a comunidade da peste. Nos dois há um exílio do resto do mundo, só que agora é duplicado: da equipa face aos doentes e dos ainda saudáveis com o mundo exterior.
Interessante as mudanças de comportamentos em consequência da situação: o casal que vivia uma relação distante que separados pela quarentena preferem se juntar, o Padre que aproveita a doença para pregar o arrependimento mas cujo sofrimento maior de uma criança inocente altera a sua visão, o que tenta furar o cerco para ir ter com a sua paixão e se converte a dedicar ao combate, o que definha com a esperança do fim da luta à doença. A  moral, a ética e a crença são assim abordadas em moldes filosóficos não cansativos.
Ficou-me a certeza que, pela duração, uma epidemia, tal como uma longa guerra são bem mais desgastantes que uma catástrofe momentânea que passa, mas ambas deixam feridas e mudam a pessoa humana para sempre à custa da dor que deixam. Excelente romance.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Dia Mundial do Livro - As minhas escolhas das leituras de um ano

No Dia Mundial do Livro já é tradição eu expor uma seleção das obras que mais me marcaram ao longo dos últimos 12 meses. Este ano correspondeu à leitura de várias dezenas de obras, desde o romance, novela e conto, passando por obras contemporâneas a clássicos anteriores ao século XX, só para falar do tipo de literatura a que tenho dedicado este blogue, contudo não é uma escolha fácil e nem eu próprio estou seguro se noutro dia não escolheria livros diferentes, mas no balanço do momento, eis as opções que tive:

Romance nacional
"A Quinta essência" de Agustina Bessa-Luís.

Não é uma obra de leitura fácil, tal é a densidade de ideias e pormenores expostos neste "A quinta essência" e onde se mostra a importância e o choque do encontro de culturas entre Portugueses e Chineses ao longo dos últimos 500 anos e tendo como base Macau, aqui se vê que a pretensa superioridade do ocidente no final é bem mais fraca face à riqueza do conhecimento e tradição oriental. Um livro que nos ensina muito e inclusive existem mulheres orientais bem fortes ao contrário do que se pensa na Europa.

Novela/conto em expressão lusófona
"O Alienista" de Machado de Assis

A categoria de novela surge pelo facto de que a obra que mais me impressionou, entre todas de ficção escritas originalmente em Português, foi um conto/novela, uma história do tipo alegoria, cheia de crítica sociopolítica com mais de um século mas que se mantém plenamente atual. "O Alienista", a brincar, dá-nos uma grande lição para compreendermos a mentalidade lusófona, com todos os seus defeitos. Brilhante, de extrema facilidade de leitura e pequena dimensão, uma pérola literária.

Romance em língua original estrangeira
"Mataram a Cotovia" de Harper Lee

No campo de literatura lida e proveniente de vários países e línguas e escritas no século XX e XXI a escolha não foi fácil, hesitei entre este pequeno e magnífico romance, onde através dos olhos de uma criança vê a luta do pai pela justiça e os riscos que tal acarreta numa sociedade racista. "Mataram a Cotovia" pequeno romance é uma escolha pessoal hesitante pois tanto poderia ter recaído em "Tudo o que sobe deve convergir" (uma coletânea de contos), "A leste do Paraíso", "O deserto dos Tártaros", ou "O coração das Trevas", mas esta seleção é de uma e não mais obras, fica por isso aqui a menção das que coloquei a igual nível.

Clássicos da literatura ocidental
"A educação sentimental" de Gustave Flaubert

Muitos leitores limitam-se a ler obras mais recentes e perdem a memória de obras escritas noutras épocas que moldaram as mentalidades contemporâneas e influenciaram grandes escritores posteriores, para que não se perca a oportunidade de conhecer os marcos da história da literatura, tento conhecer obras de séculos passados que se tornaram clássicos pela sua qualidade e referência cultural. Foram várias as obras que me marcaram do século XIX, mas pela informação histórica, pela estilo moderno da escrita e análise social que ainda se mantém atual "A educação sentimental" foi a escolhida.

Este ano estranhamente não li nenhuma obra de literatura Canadiana e como tal este tópico fica vazio, não por falta de qualidade, apenas ausência de leituras neste capítulo, mas assumo que é o Canadá tem uma riqueza literária que merecia ser melhor conhecida.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"A cor do hibisco" de Chimamanda Ngozi Adichie

Esta foi a minha primeira entrada num mundo de produção literária africana subsaariana não lusófona e confesso que fiquei agradavelmente surpreendido.
"A cor do hibisco" de Chimamanda Ngozi Adichie é o relato da experiência da protagonista da passagem de adolescente à juventude/vida adulta, cujo pai, industrial e rico, é fanaticamente católico, numa comunidade nigeriana em colapso económico, político e social, onde coexiste a pobreza extrema, o racionamento de bens e ainda nas famílias alargadas persistem pessoas de religiões tradicionais e outras que equilibram as visões cristãs com as tradições pagãs que aparam os choques destes encontros com um humanismo que o extremismo bloqueia.
A escritora toca os sentimentos e confusões típicos da adolescência, enquanto sem se inibir, questiona algumas regras católicas sem as julgar, põe a nu, de forma dura, os excessos fanáticos e choques culturais religiosos e ainda denuncia a corrupção política que coloca o povo nigeriano na miséria num Estado onde alguns usam o dinheiro público em proveito, próprio recorrendo mesmo à violência para alcançar os seus fins, enquanto outros, cheios de valores e bom-senso, se tornam vítimas e se veem forçados a emigrar.
O romance está muito bem escrito, numa narrativa sem preocupações de criatividade modernista que perturbem a leitura, embora tenha muito léxico e frases comuns da língua ibo, mas de tal forma integrados que o leitor não se perde e quando necessário existe a adequada tradução englobada no texto de uma forma natural. Gostei muito do romance e espero ter oportunidade de ler outras obras desta escritora de grande sensibilidade e potencial literário elevado.

sábado, 18 de abril de 2015

"Tudo o que sobe deve convergir" de Flannery O'Connor



Acabei de ler a conjunto de nove contos de Flannery O'Connor reunidos no livro "Tudo o que sobe deve convergir", adorei a escrita e a forma destas pequenas histórias, com 30 páginas em média cada, todas com personagens complexadas e onde se expõe, de uma forma crua e dura, os preconceitos sociais do racismo e da obsessão religiosa no sudeste dos Estados Unidos.
Apesar da omnipresença do preconceito e de relatos de fím trágico em quase todos as histórias, o livro não é deprimente devido à qualidade da escrita e de até estar presente alguma ironia ou humor de forma subtil nos relatos.
A estrutura perfeita dos contos em termos de duração da história, a tensão psicológica no protagonista, personagens que são cidadãos simples da sociedade rural ou de pequenas cidades e a qualidade do conjunto fizeram-me recordar a laureada com o Nobel: Alice Munro; embora as temáticas sejam bem distintas. Gostei muito e recomendo a quem gostaria de encontrar contos bem estruturados e magnificamente narrados.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

"A educação sentimental" de Gustave Flaubert



O romance "A educação sentimental" de Gustave Flaubert, começou-me a surpreender logo no início: a escrita era diferente da de outros autores do século XIX do período romântico, parecia muito mais contemporânea, tanto nas figuras de estilo, como na sintaxe; depois, as personagens eram complexas, sem serem  exclusivamente boas ou más, como em Charles Dickens ou até em Victor Hugo, mas sim um misto de tudo um pouco, moldáveis às circunstâncias políticas e sociais do contexto e do momento em que se surgem e evoluem ao longo da obra.
"A educação sentimental" mostra a lição da vida de um jovem ambicioso perante a realidade da sociedade que entretanto não consegue romper com certos princípios resultantes da descoberta de uma paixão, inicialmente platónica mas utópica, e que por isso se torna refém de armadilhas e do evoluir da sociedade francesa no seio da segunda fase da revolução francesa, onde praticamente no meio da violência tudo se conjuga para que a mudança preserve os vícios da sociedade e os hábitos dos mais poderosos.
Assim, progressivamente vai-se descobrindo como Flaubert faz um retrato da sociedade de então e uma denúncia do comportamento do ser humano, onde o protagonista em vez de se tornar num vencedor, se rende e se acomoda a esta realidade, vencido nos seus ideais sociais e sentimentais.
Um romance que apesar de parecer a história de uma paixão é um relato rico da história de França de meados do século XIX que o transforma numa obra-prima cheia de informações subliminares e dá para compreender porque se tornou numa referência literária para Kafka e Proust no século XX.

sábado, 4 de abril de 2015

"Os peixes também sabem cantar" de Halldór Laxness


Halldór Laxness corresponde ao escritor de ficção que nos últimos 3 anos descobri e mais me marcou neste espaço de tempo. "Os peixes também sabem cantar" talvez seja dos 3 romances que li o de mais fácil leitura ao grande público, mas continua a retratar e a tratar a sociedade e a cultura islandesa com o mesmo estilo poético que em "Gente Independente" ou no "O sino da Islândia", apesar da análise política ser agora mais suave e superficial.
Uma romance que se desenvolve como as memórias de infância até ao início da vida adulta do seu protagonista: Álfgrímur, abandonado pela mãe, filho de pai desconhecido e acolhido à nascença pelos seus avós adotivos, os donos de uma pensão que recebe os islandeses mais pobres das várias partes da ilha em Reiquiavique no início do século XX, quando a cidade se começa a potenciar como futura capital do País ainda sob o domínio dinamarquês.
O livro tem dois mundos: o da pensão dominado pelo sino de prata do relógio, com a fronteira no torniquete da cancela e onde se hospeda uma série de personagens ímpares que mostram a vida miserável do povo, as suas superstições, o orgulho das tradições, músicas, poesias em convívio com os valores éticos e morais dos avós, também pescadores e incapazes de se renderem às regras do mercado em benefício próprio para explorarem as pessoas.
O outro mundo que Álfgrímur vai descobrir situa-se além do portão, dominado pelo sino do relógio da igreja, possui homens de negócio sujeitos às regras da Dinamarca, sofre a transição socioeconómica associada ao desenvolvimento industrial e comercial, onde a hipocrisia convive com um conjunto de pessoas que deambulam sem se enraizarem neste meio, também orgulhosas das suas tradições e interessadas na notoriedade da Islândia mundial, onde se destaca uma vítima deste sistema: um cantor lírico de fama mundial que ninguém na cidade o ouviu cantar, nem sua mãe, que dizem ser parente próximo do protagonista, que o vai conhecer, estabelecer amizade e desvendar o seu segredo, que o marcará para o futuro na mudança da da seu destino de pescador de peixe-lapa para a vocação de encontrar e cantar a nota pura e mostrá-la ao Mundo. Gostei muito, embora seja um romance menos profundo que os outros dois acima referenciados.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Em memória de quem era o cineasta ativo mais idoso do mundo: MANOEL OLIVEIRA


Manoel Oliveira com 106 anos, não só era um marco pela sua extensa obra de realizador de filmes, iniciada em 1931 com uma curta-metragem documental "Douro, faina fluvial", para passar a longas-metragens de ficção com o referência histórica que foi "Aniki-Bobó" em  1942, prosseguindo a sua atividade praticamente ininterrupta até 2014 com a mais recente obra "O velho do Restelo". Nem sempre amado pelo grande público português, devido ao ritmo lento do desenrolar da ação nas suas películas, onde muitos nem se apercebiam que tinham a oportunidade para apreciar a poesia da fotografia, este realizador era um caso de sucesso em França pela pela forma artística com que fazia passar a história na sala de cinema.
Em Portugal Manoel Oliveira era contudo uma referência cultural conhecida de todos, mesmo os que não viam os seus filmes ou se limitavam a ver o seu papel de ator na Canção de Lisboa de 1933 ou na obra de Wim Wenders "Lisbon Story" de 1994, mas poucos se lembram que antes da sua carreira na 7.ª arte foi atleta e campeão nacional de salta à vara e um piloto de desporto automóvel na década de 1920/30.
Vi várias obras deste realizador, menos do que desejava por as mesmas em Portugal passarem menos fora de Lisboa por razões comerciais, mas admirava a sua fotografia e sem dúvida foi quem melhor colocou em filme os romances da sua conterrânea do Porto: Agustina Bessa-Luís.
Manoel Oliveira morreu hoje de paragem cardíaca, mas ainda trabalhava para mais filmes... Portugal ficou mais pobre e fica a aqui a minha homenagem a este génio da cultura nacional de referência internacional.