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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Ravelstein" de Saul Bellow

 

Voltei ao escritor laureado com prémio Nobel em 1976, nascido no Canadá e naturalizado Norte Americano Saul Bellow com a leitura do seu último romance "Ravelstein".

Chick apresenta-nos com um enorme brilhantismo o seu grande amigo Ravelstein: uum grande e influente professor universitário de filosofia política, um acutilante crítico dos comportamentos sociais e das pessoas alicerçado nos seu saber dos filósofos e da história  clássica e dos judeus e acede aos principais líderes ocidentais. Extravagante, satírico e homossexual, adora roupas de luxo, gastronomia requintada e música barroca e Paris. É ainda o mentor de alunos que se fascinam por ele e. quando reconhecidas suas capacidades por este, tenta orientar as suas vidas. Quase sempre viveu com dificuldades em sustentar os seus caprichos, mas, de uma sugestão de Chick, escreve um livro sobre si e suas ideias que o torna imensamente rico, o que lhe permite satisfazer os seus gostos. Em Paris encomenda a Chick a sua biografia, sendo-lhe depois diagnosticada SIDA. Decorre então um período do desenvolvimento da doença, mas não de abatimento da sua personalidade, é acompanhado de perto por Chick e a última mulher deste, descrevendo a sua luta, seguindo-se os efeitos da sua ausência nos amigos dele, até que Chick adoece com uma toxina e reconhece a importância dos que lutam pelos outros e do seu dever de eternizar o seu amigo.

Escrito com uma ironia requintada e cheio de referências cultas que mostram a força de uma grande amizade sem complexos por quem é diferente. É um elogio a mentes geniais e às pessoas que dão tudo para outros sobreviverem nesta vida. Denuncia, uma marca deste autor, os complexos dos judeus norte-americanos na integração social através de reflexões filosóficas e religiosas. Apesar de dois períodos de doença, nunca a narrativa se torna deprimente, pois o bom humor acutilante atravessa todo o livro que me cativou do princípio ao fim. Magnífico e sintético, eis uma obra com pouco mais de 200 páginas que, ao contrário de outras obras onde Bellow se estendeu excessivamente, constrói para mim um romance leve e culto, mas perfeito de um galardoado com o Nobel da literatura.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

"O Mapa de Sal e Estrelas" de Jennifer Joukhadar

 

Citação

"as histórias acalmam a dor de viver, não de morrer. As pessoas pensam sempre que morrer vai doer. Mas não. É viver que nos magoa."

Estreei-me nesta jovem escritora sírioamericana com o seu primeiro romance "O Mapa de Sal e Estrelas".

Nour é filha de um casal sírio, emigrado em Nova Iorque e desenhadores de mapas, a mãe é cristã e o pai muçulmano, este morreu, criou um vazio nela e a família a retornou a Homs para reconstruir a vida. Aqui, a guerra civil apanha-os num bombardeamento. Mãe, irmãs, Nour e outros decidem fugir até Ceuta, um trajeto comum a tantos refugiados atuais das guerras no médio-oriente. A obra depois narra as dificuldades e mortes da caminhada pelos olhos da criança. Nour, tem sinestesia (associa cores aos sons e cheiros), em paralelo recorda a história que seu pai lhe contava sobre Rawiya: uma menina que fugira de Ceuta há 800 anos atrás para encontrar com Idrisi, o cartógrafo (personagem real) que depois foi encarregado de elaborar um mapa para o rei da Sicília dos territórios entre a Síria e o Magrebe. É a época dos cruzados e do expoente máximo da cultura e riqueza árabe, outra narrativa com as fantasias da idade média.

As agruras pintam o mapa com o sal das lágrimas e as estrelas desenham a esperança do caminho, realidades que se entrecruzam nos mapas de duas épocas tão diferentes dos mesmos territórios.

A autora, usa a sinestesia de Nour, para desta situação neurológica criar metáforas e dar cores e cheiros a situações e acontecimentos e fazer uma denúncia dos problemas dos refugiados sírios em torno da Europa. Não há acusações, nem toma partido por fações. Apenas temos vítimas humanas, que correm riscos de vida, morrem e sofrem e memórias de outros tempos fantasiosos que, sem serem pacíficos, contrastam na riqueza de então com a destruição atual.

Um livro muito fácil de ler numa narrativa comovente que mistura factos atuais, personagens históricas e fantasia para mostrar ao mundo um problema humano: os refugiados e vitimas inocentes das guerras, algo que presentemente cerca a Europa.

domingo, 5 de novembro de 2023

"O Hóspede de Job" de José Cardoso Pires

 

Acabei de ler "O Hóspede de Job" do escritor português José Cardoso Pires que, junto com José Saramago e António Lobo Antunes, fazem parte do trio que me cativou para a literatura lusitana da segunda metade do século XX.

Este pequeno romance, talvez mais uma novela, tem uma trama difícil de qualificar e de descrever, corresponde a um cruzamento de várias narrativas simultâneas passadas no Alentejo em plena ditadura do Estado Novo. Através destas apercebemo-nos do uso das forças policiais como instrumentos ao serviço da política e a desconfiança das populações. Vemos um povo rural que, maioritariamente, vive refém do trabalho precário em regime de jorna, pago como uma esmola e em que as famílias poderosas se sentem protegidas pelo sistema. Uma época onde as migrações internas em que autóctones e migrantes concorrem entre si em proveito das famílias bem estabelecidas. É um período em que quem proteste por melhores condições laborais pode ser considerado subversivo e em que Portugal entrou em guerra sem a população perceber porquê, nem sequer tem noção do que é um inimigo, enquanto num quartel as forças armadas recebem formação de militares por norteamericanos que olham para a miséria deste país, ora com pena, ora como uma terra de férias, e onde os danos colaterais desta decisão caem sobre pessoas indefesas e a desconfiança e o protesto são manifestados de modo escondido.

Um livro com uma escrita ao mesmo tempo poética, dura e bela, onde o autor faz um quadro do Portugal rural da década de 1960, com um povo indefeso, desconfiado, entre o acomodado à sua miséria e a luta por uma situação melhor, um confronto onde ser vítima e sobrevivente faz parte do quotidiano. Uma obra que foge ao neorrealismo costumeiro da literatura portuguesa de então e é uma homenagem ao irmão do escritor que morrera em serviço militar. Uma obra ainda sem a grandeza da maioridade literária José Cardoso Pires mas onde todo o seu potencial e originalidade já se mostra.