Páginas

sábado, 24 de setembro de 2022

"A dança dos Ossos - Antologia do conto gótico luso-brasileiro" Vários Autores

 

Uma coletânea de 27 contos de teor gótico, 13 de autores lusos e 14 de escritores brasileiros, selecionada por Ricardo Lourenço, que cobrem este género literário desde meados do século XIX até às duas primeiras décadas do XX.

No conjunto existe escritores de grande renome literário como Eça de Queiroz e Machado de Assis, outros conhecidos e alguns de quem nunca ouvira falar, a heterogeneidade de autores também se reflete na diversidade dos contos, alguns quase da dimensão de novela, outros curtos e muitos entre uma a duas dezenas de páginas.

Desde lendas medievais, passando por pseudociências mais atuais, bruxas, espiritismo, até narrativas onde o sobrenatural é apenas fruto da sensação extremada que conduz ao terror ou à suspeita deste, alguns com lições de moral, outros inócuos, a coletânea vale sobretudo pela informação biográfica dos seus autores, do seu papel na história da literatura, da cultura ou da política do seu país e ainda pela amostra do género pouco divulgado em Portugal.

Confesso que alguns contos gostei mesmo muito, outros divertiram-me, nenhum me tirou o sono e também houve alguns (poucos) que nada me disseram, mas valeu a leitura do conjunto "A dança dos ossos" e recomendo a quem se interessa por este tipo de literatura mais negra, que explora medos das pessoas, fenómenos menos claros para a ciência e as crenças e superstições existentes nestas duas sociedades de língua portuguesa. 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

"Homens Bons" de Arturo Pérez-Reverte

 

Citação

"Uma biblioteca não é algo para ler, mas sim uma companhia - disse ele, ... Um remédio e um consolo."

Em pouco tempo regressei a este escritor espanhol: Arturo Pérez-Reverte, agora com uma obra que quando foi traduzida logo quis ler: "Homens Bons", por ser um romance que fala da importância dos livros e de pessoas que lutam pela sobrevivência e propagação de livros. Neste caso, a aquisição, no século XVIII, pela Real Academia Espanhola, da primeira edição da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert, uma coletânea de saberes que é um marco da época das luzes e considerada subversiva pela Inquisição ao dar prioridade à verdade científica e à razão nos seus artigos em detrimento da Bíblia e diretrizes religiosas como era regra até então.

Dois membros da Real Academia Espanhola são nomeados para irem de Madrid a Paris comprar a primeira edição de Enciclopédia Francesa, então o expoente máximo da época das luzes, mas ignoram que outros dois membros, em segredo, um jornalista por conservadorismo doentio e outro filósofo medíocre por inveja do reconhecimento do saber de outros, conspiram para que a viagem não concretize este objetivo. Pedro Zárate e Hermógenes Molina, duas pessoas muito diferentes mas amantes do saber, no meio de dificuldades arrancam na sua atribulada deslocação sem perceberem que alguém os segue e conspira. Na cidade das luzes os protagonistas descobrem um mundo diferente, grandes nomes das ciências e cultura, como o próprio Diderot, além de outros sábios e amigos de Voltaire e Rousseau, bem como um abade revoltado contra a ignorância que a igreja impõe e o despotismo da elite absolutista que escraviza a população, encontramos também uma dama que domina a vida social da cidade, o que permite pôr a nu uma capital de contrastes, vícios e onde nem tudo é razão e luz.

Pérez-Reverte vai romanceando esta viagem histórica verídica, intercalando textos de como investigou e encenou os principais episódios do livro e narrando as entrevistas que realizou, referenciando os livros que leu. Monta assim uma série de textos que ora são o desenrolar do romance, ora são o trabalho do escritor, mas, à semelhança de Proust na sua obra-prima, aqui o autor também não é exatamente o escritor, uma série de pormenores, como a referência aos seus livros torna evidente que também este autor é uma personagem ficcionada, um alter-ego que não é exatamente Pérez-Reverte.

O conjunto do romance permite fazer um retrato da época, mostrar a realidade que então se vivia numa Espanha conservadora, dominada pela Inquisição e com um rei que queria mudar o estado das coisas sem conseguir sempre sobrepor-se aos poderes instalados. Assistimos ao ambiente explosivo que se vivia então em Paris, cheia de contradições em choque que prenunciavam não só a revolução francesa, mas também a chacina a ela associada  cujas ideias que marcam as luzes e a razão não previram.

Um romance que não só ensina como foi aquela época tão marcante no século XVIII, como cultiva o amor pelos livros, o saber e apela ao fim da ignorância baseada no misticismo sempre em luta com a verdade resultante da ciência.