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quinta-feira, 18 de agosto de 2022

"Maigret e os crimes de Montmartre" de Georges Simenon

 

Tenho na memória da minha adolescência os episódios televisivos do inspetor Maigret, passados em Paris, quase sempre associados a meteorologias desagradáveis e sei que li diversos casos por ele resolvidos nessa época inicial das minhas leituras de adulto, eis a razão porque quis reencontrar-me com o escritor belga Georges Simenon e ao deparar-me com este "Maigret e os crimes de Montmartre" na biblioteca pública da Horta.
Uma bailarina de striptease após o fecho do seu bar noturno dirige-se alcoolizada à esquadra de Montmartre para avisar de um crime de uma condessa cuja preparação ouvira durante o trabalho. A polícia faz o relatório e no dia seguinte a mesma tenta desvalorizar o seu depoimento, nesse mesmo dia é assassinada em casa e mais tarde no bairro é encontrada morta uma mulher com tal título nobiliário. Maigret entra em ação não só explorando a vida no bar, descobre que um dos guardas estava apaixonado pela artista e pesquisa as relações desta com os patrões e colegas, envolvem-se outros guardas que descobrem que um médico, um homossexual e a segunda vítima estão unidos pela droga e há um elo comum a todos vindo de um passado distante que vive no bairro, mas ninguém fala, embora muitos pareçam saber algo mais até ao desenlace final.
A um ritmo paciente debaixo de um tempo frio e chuvoso a investigação prossegue, é um policial típico liderada por um comissário público e sem grandes temas em discussão para além do caso, por isso surge-nos uma história cinematográfica, pouco extensa, mas bem escrita e articulada, onde os pensamentos e sentimentos de Maigret são o principal tempero humano com poucas personagens. Gostei, fácil de se ler e adequa-se a um episódio policial calmo e bem redigido.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Vercoquin e Plâncton de Boris Vian

 

Acabo de ler o primeiro romance do escritor francês Boris Vian, escrito no final da primeira metade do século XX e sua obra de estreia neste género literário: "Vercoquin e Plâncton".

O livro pode ser dividido apenas em 3 partes, apesar de o estar em 4. Na primeira, Major organiza uma festa surpresa em sua casa e jardins onde conhece Zizanie e se apaixona. Ficamos a conhecer numa linguagem mordaz e surrealista o ambiente  eufórico e libertino destas festas com muito álcool e liberdade sexual a romper com todos os costumes e restrições ocorridas durante a guerra em Paris. Na segunda parte, o Major através do seu "Mordomo" tenta pedir a mão de Zizanie ao seu tutor que trabalha numa empresa de criação de burocracia e ficamos a conhecer as peripécias absurdas para o alcançar o noivado, bem como o efeito bola-de-neve e voraz da burocracia e dos funcionários que tentam fugir às suas obrigações. Na última entramos novamente numa festa para o noivado do Major e onde se vão cruzar todas as loucuras e surrealismo de uma forma avassaladora .

Estamos perante uma paródia surrealista e cómica sobre a loucura, os excessos de diversão e os liberalismos dos costumes em que entrou a juventude que se seguiram aos tempos de contenção da segunda grande guerra, terminada poucos anos antes deste romance ser publicado, bem como, uma crítica sarcástica dos exageros e inutilidade de muitos serviços e procedimentos burocráticos impostos pelos sistemas administrativos e a forma como os funcionários e dirigentes contornam os controlos laborais.

Um escritor que se tornou de culto em meados do século XX pela sua originalidade, com diálogos estranhos e situações que retratam a sociedade de uma forma única.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

"Para onde vão os guarda-chuvas" de Afonso Cruz

 

Excerto

"Andamos todos em órbita a nós mesmos à procura de uma porta que nos leve para dentro da nossa alma. Procuramos entrar dentro de nós, mas é um mundo que nos está vedado."

Acabei de ler o romance "Para onde vão os guarda-chuvas" do português contemporâneo Afonso Cruz. No início sabemos que o Sr. Elahi, empresário muçulmano num país do oriente, adotou uma criança cristã e tenta convencer a sua irmã a casar-se com um hindu, no que esta grita: vergonha!, por todos estes desvios à tradição secular da família. Então percebemos que a situação resultou de graves problemas trágicos do passado que afetaram a vida do fabricante de tapetes. Assim, através de episódios, curtos, que cobrem a infância dos atuais membros da família, vamos conhecer todas as desventuras e fenómenos fantásticos por que passaram, vivências a coberto das crenças e dos mitos religiosos que condicionam as suas vidas que se cruzam com saberes do islamismo, hinduísmo e cristianismo radicado na filosofia mítica oriental. Afinal, tal como as pessoas que perdemos, os guarda-chuvas perdidos nunca mais aparecem, logicamente devem ter um destino semelhante...

Afonso Cruz tem uma narrativa muito própria e cheia de metáforas que mistura a sabedoria mítica e transcendente oriental com a racionalidade fria e laica do ocidente contemporâneo, uma teia de conceitos que nos surpreende e ao juntar a perspetivas infantil com a contemplativa dos crentes e maldosa dos oportunistas, numa delícia de situações e deduções que vão do fantástico ao racional, uma crítica de comportamentos sociais transversais a todos os povos e personalidades sem agressão dos alvos preconceituosos, nem glorificação das vítimas inocentes e ingénuas movidas pelos seus sonhos de serem felizes.

Cheio de citações de sabedoria (não sei se inventadas de facto pelo autor ou baseadas em textos orientais, mas esta mistura dúbia entre o real e o ficcionado é uma característica comum de Afonso Cruz, um dos escritores mais originais da literatura portuguesa atual de que já li várias obras). Gostei e recomendo.