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sábado, 26 de setembro de 2020

"FANNY OWEN" de Agustina Bessa-Luís

 
EXCERTOS
"A amizade não proíbe a ingratidão da lucidez."
"O amor não é senão uma cristalização do desejo."
"As calunias fáceis são obra de desejos infecundos."

Acabei de ler o romance "Fanny Owen" de Agustina Bessa-Luís, baseado num caso real, com personagens históricas e ocorrido em meados do século XIX na cidade do Porto. Segundo o prefácio da autora, esta obra surge na sequência do convite para fazer os diálogos do filme "Francisca" de Manuel de Oliveira. Contudo, lendo-a, é fácil ver que este livro não é a montagem desses diálogos.
José Augusto é um jovem morgado rural que perdeu a mãe. É dado a uma instabilidade emocional sofredora e vive uma certa devassidão no Porto à sombra da amizade do escritor Camilo Castelo Branco. Nesta cidade vai conhecer as filhas Maria e Francisca (Fanny) de um militar escocês que casou em Portugal com uma mulher da corte de D. Pedro IV (I no Brasil) no Rio de Janeiro. Entre estes dois amigos e as duas irmãs vai surgir uma relação de amor, ciume, traição, escândalo público e um casamento, que Camilo, talvez por vingança, levará a uma tragédia. Pelo meio reflexões da guerra civil onde o escritor lutara ao lado da fação miguelista perdedora e o modo de Camilo sobreviver com as suas publicações nos jornais locais.
Agustina, como sempre nas suas obras, não faz uma narrativa linear, vai dissertando sobre a complexidade psicológica das personagens, as suas inseguranças, intenções e ações irrefletidas, o que vai intercalando com situações ocorridas no passado misturadas com pistas para o futuro da história que está a contar e o momento que está a relatar, tudo isto de uma forma labiríntica, pontuado por máximas que saem naturalmente da autora que deixa soltas no texto. Isto conduz à montagem de um "puzzle" ou à pintura de um quadro global esbatido entre as numerosas reflexões, considerações, possibilidades psicológicas e a história em si.
Neste conjunto de quatro protagonistas centrais tratados ao pormenor, Agustina faz um retrato maior de Camilo, disseca a personalidade do escritor mais profícuo do século XIX em Portugal, ela que é sem dúvida a escritora mais profícua do século XX neste País, gerando assim um choque de gigantes da literatura portuguesa, que faz faíscas, ao misturar admiração com abominação, reconhecimento de uma genialidade literária criativa com um agir maquiavélico destrutivo para os que lhe são contemporâneos. Um caso único nos numerosos livros que li.
Se nas obras de pura ficção Agustina arquitecta narrativas complexas que esboçam por detrás retratos da realidade, sobretudo, do norte de Portugal e da personalidade feminina; neste relato histórico, ela consegue espremer as possibilidades da realidade que a torna num esboço ficcional do que pode ter ocorrido e coloca Camilo com todas as suas contradições num estrato acima da mediania que o cercava. Gostei, para mim foi uma obra fácil de ler por gostar e estar familiarizado com o estilo, para outros poderá exigir esforço para seguir a direito este labirinto narrativo.


6 comentários:

Pedrita disse...

eu li uma obra dessa autora e gostei muito. quero ler mais algum. fiquei curiosa com esse. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Eu gosto muito, apesar daquele entrançado de escrita, misturado com reflexões que obriga a grande atenção. Adorei este, mas ela tem cerca de meia centena de obras. Há quem não goste mas ela tem um grande número de seguidores.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Oi Carlos!

Pela maneira que você descreveu o estilo de escrita da autora, sei que eu iria gostar.

Joaquim Ramos disse...

Há quem diga que este é o melhor livro de Agustina, outros preferem A Sibila. Eu como não li nenhum...só tenho Os Meninos de Ouro.

Carlos Faria disse...

Kelly
É provável, há sempre alguma incerteza, mas como é pequeno, é um caso real e um encontro de personalidades gigantes entre a autora e a personagem de Camilo, talvez seja o mais indicado para começar.

Joaquim Ramos
O que mais me tocou foi a "5.ª Essência", mais denso e extenso do que este, ambos são encontros faíscam, neste Agustina com Camilo Castelo Branco, no outro a cultura e a feminilidade chinesa com a cultura e masculinidade lusa, muito mais vazia ou oca, Também mais difícil por a teia ser complexa. Este apesar de tudo é bem mais fácil e pequeno, talvez por isso mais popular.

Pedrita disse...

a irresponsabilidade dos amigos é deprimente.