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sábado, 9 de novembro de 2019

"Cisnes Selvagens" de Jung Chang


Excerto
"Mao conseguira transformar o povo na arma suprema da ditadura... Ao fazer vir à tona e alimentar o que de pior havia nas pessoas, Mao criara um deserto moral e uma terra de ódio."

Acabei de ler o livro "Cisnes Selvagens" da chinesa Jung Chang. Mas este não é romance nem ficção: é a história da família da escritora desde o início do século XX com as memórias da autora sob o regime comunista e de culto da personalidade implantado por Mao Zedong (Tse Tung) até esta se estabelecer no Reino Unido em 1978.
Assim, sem omitir considerações pessoais e recuando ao tempo de juventude dos avós, Jung Chang relata os sofrimentos da sua família infligidos pelos sucessivos regimes que estiveram no poder na China: o fim da monarquia, a ocupação japonesa antes da II Grande Guerra, a república nacionalista Kuomitang e por último e em grande pormenor Mao Zedong com todas as suas fases: a guerra civil, a conquista, o grande salto em frente e a revolução cultural.
A escritora mostra bem o peso da tradição milenar no comportamento das pessoas que subsistiu às mudanças, bem como as esperanças e receios que cada um transição trazia e a desilusão posterior, atingindo o auge com o comunismo: não só por ambos os pais terem aderido convictamente à ideologia e ao líder, tendo mesmo alcançado altos lugares na administração provincial e aderido ao Partido, mas também pela integridade com que exerceram princípios políticos que se diziam subjacentes ao comunismo, o que até fez ricochete nas vinganças de maus caracteres oportunistas.
Na narrativa evidencia-se a desumanidade na instalação do comunismo, pois a transição é sempre um momento de vingança de adversários, de abusos sem lei e de convite à denúncia do outro como burguês, capitalista ou seguidista, por vezes empurrados para sobreviver, e também mostra que este modelo é intrinsecamente contra o indivíduo humano: há a necessidade de destruir tudo o que se relaciona com a liberdade de pensamento e da identidade individual. Desumaniza até a relação familiar, no amor entre avós, pais e filhos ou entre esposos e irmãos. Tudo isto foi ainda agravado pela culto de personalidade a Mao, que teve de alimentar ódios e terrores entre todos e de conduzir o povo à ignorância para nesta divisão e histeria coletiva ser o único idolatrado inquestionavelmente, eliminando quem resistisse ou mostrasse algum pensamento intelectual ou crítico. Daí os livros e intelectuais serem alvo de uma razia feroz dos seguidores acríticos do Presidente.
É habitual a dizer-se em Portugal que os comunistas não comem crianças, mas uma das páginas mais negras do livro prende-se mesmo com a alienação que o regime criou que conduziu à fome e morte de milhões de pessoas que até levou à antropofagia de crianças.
Na obra é evidente que mesmo nas perseguições e humilhações públicas das sucessivas vagas de terror, o Estado assegurava salário às vítimas proscritas e torturadas, mas não o direito a um local de lar e alimentação da família, substituído pela imposição de sítios de residência, por vezes afastando os membros da célula familiar básica, e obrigando a refeições em cantinas coletivas.
A narrativa dá maior destaque às vidas das mulheres da família da escritora: dela, da mãe e da avó materna, mas também o pai desta e os irmãos são tratados como personagens principais da obra. No texto não há diálogos, só citações avulsas do que disseram a pessoas da narrativa.
Como curiosidade, não fui surpreendido pelo conteúdo, pois em estilo de romance ficcionado o livro "Não digam que não temos nada" aborda a mesma temática numa escrita mais literária, estendendo-se até a revolta de Tiananmen. Contudo, Cisnes Selvagens é uma descrição bem mais profunda e comenta politicamente  os horrores do período de Mao Zedong, repisando as múltiplas formas como sofreram os diferentes membros da família de Jung Chang. Um tratado histórico e prolixo deste regime que esteve ao serviço de um ditador desumano.
O livro  publicado em 1991 contém um epílogo a atualizar a sua situação pessoal e da família e ainda com perspetivas positivas que a autora tem sobre a China pós Mao que eu visitei em 2018, havendo ainda nesta edição 28.ª um posfácio de 2003 com novas atualizações de Jung Chang.
Gostei, mas doeu esta leitura pelo pormenor dos factos, pela violência psicológica e tensão descrita.

4 comentários:

Pedrita disse...

ah, terminou, estava ansiosa por sua resenha. vc focou bastante na última história, a da autora, mas a avó dela já sofria absurdos desde a infância nos pés, qd se tornou concubina. as mulheres não tinham vozes. eram objetos. o choque da autora qd se depara com os horrores do regime q ela só conhecia um lado é desolador.
a minha está aqui https://mataharie007.blogspot.com/2010/07/cisnes-selvagens.html

Carlos Faria disse...

Eu deixei claro que o sofrimento foi transversal a vários sistemas ao mencionar: "Jung Chang relata os sofrimentos da sua família infligidos pelos sucessivos regimes que estiveram no poder na China" desde o início do século XX e até citei o fim da monarquia e ainda reforcei com o pormenor de que a escritora mostra bem o peso da tradição milenar no comportamento das pessoas que subsistiu às mudança e aqui está implícito a subalternidade da mulher e outros costumes. O caso que citou até acabou ainda nesse período, pois a mãe e as tias desta já nem passaram por isso. Agora o maior pormenor e extensão da obra é sobre o período de Mao Zedong, até porque ela os viveu de perto e mais grave ainda: este veio propagando eliminar a injustiça e o sofrimento dos anteriores e no fim mostrou-se o mais desumano.
Outro aspeto que eu noto em várias análises a esta obra é focarem essencialmente a resistência das três mulheres, mas ora cooperante, ora resistente, ora desiludido, uma das personagens centrais da obra é mesmo o pai da Jung e até o Dr. Xia tem um papel central na família na compreensão da obra.
Já li a sua resenha e novamente vejo o enfoque nas 3 mulheres.

Joaquim Ramos disse...

Comprei este livro pelo que Pedrita falou dele, mas ainda não o li, mas depois da sua excelente resenha fiquei com vontade de pegar nele. Posso inferir que gostou mais do de Madeleine Thien?

Carlos Faria disse...

Joaquim
São livros diferentes, o de Madeleine Thien é a literatura de ficção que serve de pano de fundo à denúncia, é muito mais curto, menos repetitivo e as vítimas são de uma família ligada à arte (literatura e música) com forte influência da música erudita ocidental e como sou melómano foi ótimo explorar (na net) as gravações citadas sobre Bach, penso que Ravel, entre outros que suavizavam os horrores dos terrores do regime de Mao até Tiananmen.
Este é um relato real, muito exaustivo e bem escrito, sofri muito mais sem nenhuma distração que suavizasse todo aquele horror. Mas são ambos muito bons.