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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

"A seta do Tempo" de Martin Amis


Acabei de ler o estranho livro "A seta do Tempo" do inglês Martin Amis, onde o mais importante a forma de a contar às arrecuas a estória, não apenas do fim para o princípio, mas sim descrita como um filme em reverso com o tempo e os acontecimentos a andarem para trás.
Na cama de um hospital a consciência de um médico em estado terminal começa a ver a sua vida em marcha atrás no tempo. Assim se vai dissecando a biografia do protagonista, não só ele se desloca às arrecuas, pois tudo fica mais novo à sua volta. Nos diálogos, as respostas antecedem as perguntas. No dia-a-dia, o lixo é distribuído nos caminhos, recolhido até casa, retirado dos sacos, transformado em comida, ingerido e depois cozinhado. No comércio, o cliente recebe dinheiro pela mercadoria que entrega ao vendedor, enquanto as pessoas se deitam de manhã para depois se levantarem à noite. A neve sobe, etc.
Nesta caminhada retrógrada descobrimos que o médico após uma vida promíscua com enfermeiras, saiu da cidade onde se encontra, muda várias vezes de identidade e terras com apoios surpreendentes até entrar na Alemanha, chegar a Auschwitz, um campo onde ressuscitam judeus, estes são distribuídos pela Europa e ele faz experiências com mulheres e crianças retirando-lhe químicos que as melhoram, até ele casar, virar a adolescente, se tornar bebé e chegar à mãe.
Assim se vai percebendo como se formou esta mente nazi, se denuncia fugas à justiça com apoios escandalosos e secretos, isto com recurso a uma técnica em que as consequências antecedem às causas, invertendo os efeitos.
Por vezes torna-se estranho a descrição dos factos ao contrário, por exemplo, os maus-tratos acabam em saúde, mas vários pensamentos dedutivos em torno da descrição retrógrada surgem lógicos  face a uma sequência invertida. 
A estória não narra nada de belo e até aproveita o funcionamento orgânico da vida e a prática médica para um tom ainda mais chocante. A generalidade dos assuntos tratados são conhecidos, mas a perspetiva da criação desta mente perversa, construída ao contrário, torna a obra originalíssima, embora estranha. Por vezes tropeçamos na leitura e compreensão, por mentalmente tendermos a evoluir o pensamento com a seta do tempo ao contrário da do romance.
Um desafio e uma obra que é verdadeiramente de escrita criativa, feita por um grande escritor contemporâneo que gosta de mexer com o leitor.


9 comentários:

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Uau Carlos, gostei da proposta do livro. Fiquei muito curiosa. Vou adicionar na minha lista e espero que já tenha chegado por aqui.

Abs.

Carlos Faria disse...

Deve haver aí no Brasil, talvez até num sebo (alfarrabista em Portugal) pois a obra foi escrita na década de 1990 e reeditada de novo por cá este ano. Como mente de um nazi também algumas coisas chocam, não é belo mas interessante.

Pedrita disse...

nunca ouvi falar desse autor. fiquei muito curiosa pelo relato que fez. só não li em detalhes pq quero ler e depois leio melhor. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Já é o segundo livro que dele leio, é inglês, filho de outro grande escritor inglês Kingsley Amis. A obra mais famosa dele, que li, é Dinheiro, sem dúvida um murro no estômago e incomodativa. Gostei mais desta seta.
A última obra dele tem feito grande sucesso em Portugal, Zona de Interesse, também aborda a vida de um médico num campo nazi, mas esta não é a temática mais comum nele, penso que esta reedição veio precisamente por o último falar de um assunto semelhante.

Bárbara Ferreira disse...

Parece muito interessante a premissa deste livro. Tenho alguns, dele e do pai, na estante por ler... ainda não o fiz, infelizmente. Vou anotar este!

Carlos Faria disse...

Originalidade na técnica de narrar algo que já é um tema tão rebatido e só por isso vale a pena.

ematejoca disse...

Estou neste momento a ver uma entrevista com Martin Amis em Nova Iorque, e lembrei-me da sua análise sobre um romance deste autor. Fiquei MUITÍSSIMO curiosa.

Rui Luís Lima disse...

Pelo que li Martin Amis, o "enfant terrible" das letras britânicas, continua a incomodar. Um escritor que aprecio, mesmo quando anda em polémicas extra-literárias. Obrigado pela sugestão.
Bom fim-de-semana!

Carlos Faria disse...

Ematejoca
É um escritor de choque muitas vezes, já com prémios literários, este vale pela técnica, Money foi um murro no estômago e até sofri ao lê-lo.

Mister Vertigo
Já li recomendações suas, pelo que fico contente que esteje atento ao que por aqui se recomenda. Uma forma diferente de narrativa.