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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

"A obra ao Negro" de Marguerite Yourcenar


Citações
"roubar os segredos da morte para lutar contra ela, utilizar as receitas naturais para auxiliar ou contrariar a natureza, dominar o mundo e o homem, refazê-los, talvez criá-los..."
"Hei de morrer um pouco menos estúpido do que nasci"
"Uma onça de inércia pesa mais do que um alqueire de saber"

"A obra ao Negro" é o terceiro livro que leio de Marguerite Yourcenar, escritora de culto de nacionalidade e língua francesa, nascida em Bruxelas e também cidadã norteamericana, sendo que  "Memórias de Adriano" é um dos livros da minha vida, pelo que iniciei este romance com uma bitola elevada, apesar de bom, o estilo e  a mensagem são bem distintos um do outro.
O livro narra a vida do flamengo Zenão e a visão da sociedade europeia no século XVI, a época da reforma e contrarreforma religiosa, vista pelos olhos e a razão do protagonista que representa o espírito do renascimento ainda enraizado pelo misticismo medieval mas a libertar-se pela ânsia do saber científico, apesar de todos os riscos que isso representava para a sobrevivência deste filósofo, médico, investigador/alquimista e intimamente ateu e sodomita, quando as religiões, as cismas e a política partilhavam o poder e regiam a justiça segundo os seus interesses e ideias.
Zenão, nascido bastardo de uma jovem de família poderosa da banca da Flandres que pertencia à católica Espanha, educado por um cónego e apaixonado pelos segredos da natureza, filosofia e tecnologia, não convive bem com nenhuma das ideias e poderes estabelecidos, parte pelo mundo correndo riscos, enquanto tratados científicos anunciam importantes descobertas ainda enraizadas no pensamento religioso e quando este está em conflito sangrento e aliado a interesses de dinastias que disputam espaço na Europa. Assim, o protagonista terá contacto com tudo isto em várias partes do velho mundo e relações difíceis de familiares conservadores e reformistas e estará sempre sob a ameaça da condenação por heresia, sobrevive uma vezes a coberto de identidade falsa, outras protegido por religiosos tolerantes com quem tem sábias discussões e outras em ações de risco contra tudo e todos, como médico, aliado das vítimas e com a sua moral privada.
A obra densa de informações históricas arrumadas ao interesse da trama, dá-nos um retrato negro dos medos e conflitos associados à mudança do misticismo medieval para o renascimento. As cismas religiosas violentas, a inquisição e as descobertas marítimas numa época que hoje parece cheia de luz, mas que se nutria de terror e da coragem para mudar o estado de coisas. Nem Papa, nem Lutero são heróis, tudo está em mudança e luta pelos seus interesses. Zenão passa por isto à espera de se tornar vítima que ninguém como ele poderia escapar e é uma das personagens mais fortes de toda a literatura que já li.
Gostei, mas a densidade de informação e a escrita introspetiva do livro não o torna fácil a todos os leitores, parece um quadro negro de Hyeronimus Bosch ou de Pieter Bruegel, mas sem uma mensagem de governar para um mundo melhor que caracteriza as Memórias de Adriano, que prefiro, mas sem dúvida é um bom e culto romance.

5 comentários:

Pedrita disse...

são diferentes mesmo memórias de adriano e obra em negro. esse que leu agora é o meu preferido. eu gostei demais de toda a parte da medicina. tanto obscurantismo, tanta precariedade e tanta avidez de zenão em tentar aprender algo, evoluir cientificamente. sou apaixonada por esse livro. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Talvez por ter uma vida pública ativa e por as memórias serem como uma carta com recomendações para a boa gestão do interesse público, aquele livro tornou-se uma das obras da minha vida.
Este é mais hermético e muitas referências a factos reais que desconhecia mas só no fim há uma nota de Yourcenar que faz a ligação entre acontecimentos do livro e os factos históricos em que se baseou, inclusive ao nível de personagens... exceto Zenão que é um apanhado de várias.

Bárbara Ferreira disse...

Muito, muito interessante, Carlos. Não li nem este, nem Memórias de Adriano - no 7º ano, na escola, li "A Salvação de Wang-Fo" e não fiquei particularmente bem impressionada... mas talvez tenha agora a idade mais indicada para ler Yourcenar.

Carlos Faria disse...

Esse é um conto da coleção dos contos orientais, também já li, mas esse é mais lúdico do que informativo. As memórias de Adriano é uma carta a um dos seus sucessores como imperador de Roma a justificar os motivos da sua boa governação para o outro governar para o bem futuro e em paralelo saberemos por essa carta toda a vida de Adriano, um dos bons imperadores do século II, apesar de algumas coisas que nos parecem loucas.

Bárbara Ferreira disse...

Irei investigar mais então, parece muito interessante mesmo. Obrigada!