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terça-feira, 19 de maio de 2020

"A vida era assim em Middlemarch" de George Eliot

Excerto
"Os mortais são facilmente tentados a atentar contra a glória do vizinho e pensam que essa maneira de matar nada tem de assassínio."
"As pessoas valem sempre mais do que aquilo que pensam delas os seus vizinhos."

Considerado um dos clássicos da literatura da época vitoriana inglesa "A vida era assim em Middlemarch", da escritora George Eliot, faz um retrato da vida social numa zona central de Inglaterra na primeira metade do século XIX situada no condado fictício, moralmente conservador e carácter rural de Middlemarch.
Doroteia é uma bela jovem órfã de uma família de grandes proprietários rurais, é discreta e anseia o saber e planear o bem aos mais desfavorecidos. Apesar de alguns pretendentes prestigiados locais lhe fazerem a corte, ela opta por um homem eclesiástico, rico de meia-idade e só devotado a escritos da era clássica cujo interesse dela pela cultura lhe despertou a paixão no celibatário. Numa época dominada pelos homens e onde o saber estava reservado a estes, ela vai descobrir que o seu casamento não vai ser a fonte do conhecimento que esperava e encontra um jovem parente do marido, filho de uma deserdada por ter abraçado o que era então interdito às mulheres, mas protegido pelo esposo como obrigação de consciência, só que a inesperada a viuvez chega mas o falecido não deixa liberta a viúva. A sociedade de Middlemarch está atenta não só a esta nova viúva rica, mas precavida contra todos os que venham com ideias novas para a zona, como acontece com um jovem médico e ao deserdado, entretanto a elite local entrega-se à guerrilha política entre partidos, religiões  tradicionais locais e empresários, nesta luta desacredita-se a inovação, procuram-se manchas morais nos adversários, estimulam-se atritos entre fações e retaliações e alimentam-se possíveis escândalos e paixões e a tensão atinge um clímax nesta pacata terra.
O romance é extenso, largas centenas de páginas, está escrito com grande elegância e é rico em metáforas que tecem explicações de caracteres e críticas sociais, denunciando com delicadeza as injustiças e disfunções que marcam a época e o meio. Apesar do retrato social, o papel da generalidade dos pobres é meramente secundário neste romance, à exceção de dois ou três personagens que desempenham funções de contraponto entre a honestidade de quem trabalha e de alguém que se quer aproveitar mas é atingido pelos que subiram pisando outros.
 A narrativa começa pacata a lembrar ritmo de vida rural provinciana, mas depois expõe a maledicência, a hipocrisia, o ciume, a aversão à mudança, as rivalidades e os tentáculos dos poderosos que minam a sociedade e prejudicam gente honesta cheia de valores e a rede eclesiástica das religiões que coabitam em Inglaterra. Doroteia é desde o início comparada a Santa Teresa d'Ávila, uma mulher também de grandes feitos, só que a nossa protagonista não tem igual reconhecimento à doutora da Igreja, não se valorizando os seus sacrifícios e ações, o que no fim explica a lenda em torno de Doroteia e a incompreensão do seu heroísmo, assumindo a obra uma homenagem a muitos homens e mulheres que muito deram à sociedade e passaram praticamente incógnitos à história. A extensão exige algum esforço, mas é um excelente romance.

10 comentários:

Joaquim Ramos disse...

Ao ler esta recensão lembrei-me de Fanny e Alexandre de Ingmar Bergman, o cineasta sueco que também escrevia romances que depois adaptava a guiões dos seus filmes.
Uma antologia de memórias infantis, obsessões, angústias e crueldades e curiosamente escrito em Faro.

Pedrita disse...

fiquei curiosíssima, q vergonha, nunca tinha ouvido falar. adoro obras extensas. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Joaquim Ramos
Não me lembro de ter visto esse filme, aliás não vi muitos Bergman, penso que vi um ciclo no quarteto quando estudava em Lisboa, por aqui na ilha penso que nunca passou nenhum filme dele.

Pedrita
Faz parte da grande maioria das listas dos principais livros de literatura anglossaxónica, em inglês é só Middlemarch

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Oi Carlos! Gostei da resenha. Achei super interessante esse livro.

ematejoca disse...

"Jede Frau soll dieselben Eigenheiten aufweisen, sonst gilt sie als Ungeheuer."

GEORGE Eliot,
Daniel Deronda

George Eliot, uma das minhas escritoras favoritas.
Fiquei com vontade de ler novamente a sua obra.

Carlos Faria disse...

Kelly
Suspeito que talvez seja menos popular que Austen por ser uma analista com espírito mais severo de certas disfunções da sociedade inglesa, mas como só li George Eliot ainda não posso comparar, estamos neste caso em conhecer talvez escritoras complementares.

Ematejoca
Como já conhece, compreende bem o que eu disse no postal.

Maria disse...

O Carlos provavelmente viu alguns filmes do Bergman na rtp2, antigamente eles faziam ciclos fantásticos dedicados a realizadores.
Que saudades tenho desses tempos!
Dos inúmeros filmes dele eu destacaria:
Morangos Silvestres
O Sétimo selo
Sonata de Outono
A Flauta Mágica
Cenas da Vida Conjugal
Saraband
Mónica e o Desejo
Este último filmado nas Ilhas Faroé (ilhas no Báltico, onde ele comprou uma casa e viveu até morrer).
Eu não conheço nenhum romance dele, li A Lanterna Mágica, uma autobiografia onde ele conta o que sofreu em criança com um pai demasiado austero.
Se puder, não deixe de ver alguns filmes dele, é um cineasta que merece ser conhecido, embora não seja muito fácil - mas quase apostaria que a Carlos vai gostar.

Boas leituras e bons filmes!
🌻

Carlos Faria disse...

Boa noite Maria

Na realidade nos Açores a rtp2 é um canal relativamente recente, a maioria dos filmes que via era no cineclube local onde se passava muito filme europeu. Paralemente, há já vários anos que pouca televisão vejo, nem sei há quantos nos não vejo nenhum filme ou série na TV.

Maria disse...

Nunca li este Middlemarch da George Eliot, nem me recordo de ter lido algum livro dela.
Agora da Jane Austen li tudo e mais alguma coisa: comecei com o Pride and Prejudice, ainda teenager, e foi tudo a eito, incluindo filmes e séries.
Sou mesmo fã!

Boa noite.
🌻

Maria disse...

Desconhecia esse facto, e isto foi nos anos 80/90.
A tv agora também não me interessa, há dias em que nem a ligo a não ser para ver os meus filmes, faço os meus próprios ciclos de cinema. Tenho imensos livros e DVD - do Bergman tenho cerca de 25.
A tv está insuportável.
🌻