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sábado, 2 de junho de 2018

"Moby-Dick" de Herman Melville


Excertos
Não quero no meu bote homem que não tenha medo da baleia.» ... a coragem mais consistente e mais proveitosa é aquela que nasce da justa avaliação do perigo diante do qual se está, ... um homem totalmente desprovido de medo é um camarada mais perigoso que um cobarde."


"... olhemos para esta portentosa mandíbula inferior, que se assemelha à tampa estreita e comprida de uma imensa caixa de rapé, com a dobradiça numa extremidade em vez de num dos lados. Se a abrirmos de modo a erguê-la e a exibir a sua fileira de dentes, parece uma terrífica ponte levadiça, e ai, é exactamente o que ela é na pesca para tantas desgraçadas criaturas..."

Compreendo! Não é a primeira vez que acontece. A trovoada da noite passada virou a bússola do avesso, Sr. Starbuck... mais nada. Presumo que já ouviste falar de um fenómeno destes.» ... uma vez aniquilada a sua qualidade de íman, a agulha antes magnética fica reduzida à inutilidade da agulha de tricotar de uma dona de casa..."

Este grande clássico da literatura do século XIX: Moby-Dick, do americano Herman Melville, é muito mais que a narrativa de uma viagem contada pelo marinheiro Ismael num navio baleeiro sob as ordens do capitão Ahab com a ideia-fixa de matar o cachalote albino que num acidente anterior lhe amputara a perna e a descrição da faina ali desenrolada. Este livro é também um enorme tratado, escrito de forma literária, da atividade da baleação e do conhecimento técnico, por vezes científico em meados do século XIX sobre os cetáceos e a vida dos baleeiros.
Apenas o primeiro quarto do livro e umas dezenas das páginas finais da obra, de um volume com mais de 600, são essencialmente de narrativa ficcionada, na inicial ficamos conhecer os antecedentes do narrador Ismael que o levaram ao navio Pequod, relatados com grande humor, e na última conta-se o confronto do capitão Ahab e da tripulação com Moby-Dick. Os dois terços centrais da obra são relatos de acontecimentos da viagem que servem de ponte à descrição da atividade e cultura baleeira e a caracterização dos cetáceos.
Tão importante são os aspetos descritivos e técnicos da baleação e cetáceos que muitos capítulos quase não importam para a ficção, são como "fichas" das múltiplas atividades desenvolvidas numa baleeira em viagem: a explicação das funções específicas dos diferentes membros da tripulação, das profissões a bordo e a estrutura de comando; a descrição em pormenor dos utensílios e do seu manuseio, sem esquecer as variabilidades entre comunidades baleeiras repartidas por vários locais da Terra, sobretudo no ocidente; a classificação científica das várias espécies de cetáceos baseada na anatomia externa e, por vezes, órgãos internos e ainda do potencial comercial de distintos tipos de cetáceos e descrição dos produtos obtidos; a exposição de todas as tarefas no ato da caça ao cachalote e transformação deste em alto-mar, sendo a embarcação um navio-fábrica com ferreiros, carpinteiros e outras profissões; os relatos das tradições, superstições e lendas que envolvem a baleação; e ainda e regras de cortesia, diplomacia e códigos de ética dos navios desta faina. Cria-se assim um quadro global de toda a cultura relacionada com esta atividade no mar e das comunidades portuárias associadas por volta de 1850.
A tentativa de descrever tecnicamente e numa linguagem com estilo literário de ficção e cheia de simbolismos, todo o saber dos cetáceos, numa época ainda radicada em muitas incertezas, leva a que por vezes não só se sinta a desatualização da exposição, dando-lhe um cariz que parece ridículo, como a inclusão dos cetáceos  nos peixes e não nos mamíferos, e a forte influência religiosa com numerosas referências ao antigo testamento na perspetiva das religiões protestantes mais radicais anglo-saxónicas, sendo o cachalote também designado por Leviatã e com frequência enquadrado em histórias bíblicas ou da hagiografia cristã, além de personagens e cenas simbólicas, dá um tom conservador e místico à obra numa estranha mistura de figuras de estilo e descrições mecânicas semelhante a tratados científicos medievais, onde o misticismo baralha as observações empíricas.
Por sua vez, as várias dezenas de "fichas" para os diferentes tópicos, o seu grande pormenor descritivo feitas neste estilo místico-científico e alheias à trama tornam a leitura do livro muitas vezes fastidiosa pelo enorme manancial de informação, as um bom documento para historiadores da baleação.
A escrita tem a marca da genialidade estilística do autor e é típica do século XIX, um misto de exposição jornalística cheia de metáforas literárias e opiniões do narrador, é o afinco de Melville incluir todo o universo da baleação neste romance que torna exasperante ler tanta informação sem importar para a trama, mas o escritor nunca secundariza o simbolismo  e misticismo em Moby-Dick.
Confesso, que dada a importância da baleação no Faial e Pico, ter conhecido baleeiros e ao descobrir-me bisneto de alguém que tinha convivido no século XIX com a baleação na Nova Inglaterra despertou-me interesse pela temática, caso contrário teria sido ainda mais difícil acompanhar tanto pormenor, apesar de se estar perante uma obra-prima e marcante da literatura mundial.
Eis uma grande obra literária que não se limitou a ser um romance, mas sim um compêndio completo do saber de então da arte e da atividade da baleação, o que torna esta obra difícil para muitos leitores devido à minúcia com que este assunto é exposto no seio da ficção, o que exige uma dose significativa de resistência para continuar a leitura até ao fim se a temática não interessar.

4 comentários:

Pedrita disse...

a fatima adora livros de aventuras. eu sou muito avessa a eles. então não me identifiquei com moby dick, nem com os trabalhadores do mar do victor hugo. mas pq eu nao me empolgo com aventuras. e concordo, o livro detalha muito essas atividades, é muito rico em detalhes, mas eu sofro bastante com a leitura. e como sou disciplinada não quero largar, acho que o sofrimento amplia. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Temos conceitos de livro de aventuras muito diferentes, não considero este um livro de aventura, até porque o narrador conta sempre a história como testemunha e dá pistas suficientes para sabermos o desenlace desastroso o que não é normal numa aventura onde o protagonista são heróis que vencem as dificuldades e não derrotados por uma obsessão psicológica. Agora, em termos de detalhe, concordo e sofro do mesmo comportamento de resistência na leitura.
Os trabalhadores do mar não li.

Bárbara Ferreira disse...

Olá, Carlos,

Tinha muita curiosidade para ver a sua opinião deste livro. É realmente verdade: muito pouco do livro é dedicado à ficção, o grosso do centro da obra é catalogação e ciência. Se o Carlos assume dificuldades não obstante o seu interesse pela temática, poderá compreender alguém que leu completamente de fora, como foi o meu caso... também não sinto grande apreço na leitura de detalhes e descrições.
Acho um livro único, que cumpre o objectivo a que se propõe, mas é sem dúvida uma leitura que pede persistência.

Carlos Faria disse...

Compreendo perfeitamente.
Reconheço contudo que Melville escrevia muito bem ficção e descrições técnicas, embora não se auto-contivesse em expor pormenores e isto cansa.