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quinta-feira, 9 de julho de 2009

MEMÓRIA DO SISMO DA RIBEIRINHA DE 9 DE JULHO

A minha rua em Julho de 1998 (Foto Conceição Quaresma)

Há momentos que nos marcam definitivamente, o sismo de 9 de Julho de 1998, sem dúvida, foi aquele evento que mais me moldou na vida adulta e como autarca naquele momento tive de continuar intensamente envolvido nos anos seguintes. Embora por vezes tenha sido ouvido na comunicação social sobre vários problemas, muito sofrimento assisti e silenciei para manter o controlo da situação no terreno, até que um momento de dor intenso desembocou no meu primeiro artigo de opinião:

SISMO DE 9 DE JULHO
REQUIEM AOS NOSSOS MORTOS ESQUECIDOS

A internet é um dos meus favoritos meios para me actualizar profissional e socialmente e acompanhar o evoluir desta cultura de terceira vaga. Sentado diante do computador, encontro uma página do sul do Ontário, refere-se ao sistema regional de vigilância sísmica. Abro-a, apresentam-se, a título exemplificativo, alguns registos locais interessantes de vários sismos mundiais, para meu espanto leio: 9 de Julho de 1998, Açores, Mg 6 - ao lado da figura do sismograma alguns dados importantes: 8 mortos, 110 feridos, 1100 habitações destruídas.
Aquele dado - 8 mortos - não me sai da cabeça, uma voz insistente grita-me: Mentira, são mais! Pensa bem... Conta.
Inicio uma viagem por todas as casas dali destruídas e percebi então a falsidade daquele número.
O Joaquim, de 70 anos, meses após o sinistro ainda gritava entre os idosos acolhidos no acampamento, transportado com frequência para a urgência, voltava amansado pelos sedativos, a sua voz silenciou-se eternamente naquele ano.
A Conceição, 77 anos, durante ano e meio arrastou-se para fazer o Modelo 1, o Atestado de residência, a Certidão de teor, a Declaração de IRS, etc. mas foi a Elvira quem entregou ao CPR a Certidão de óbito...
A Antónia, de 50 anos, após tratamentos ambulatórios, percorria as várias via-sacras com estações nos Cartórios de registo predial e notarial, na fazenda, no CPR, na Junta, etc., agora descansa no cemitério.
A Maria, 64 anos, cozinhou para um acampamento inteiro, convenceu a família a ceder um terreno destinado à colocação de um bairro de pré-fabricados, outro para a deposição de entulho e ainda outro para permitir acessos às estruturas de apoio aos sinistrados, tratou de montanhas de papéis entretanto solicitados, recebeu em troca o pedido da certidão de óbito datado da véspera do seu falecimento.
Após tudo isto os - 8 mortos - continuam-me sem sair da cabeça.
Ontem, a Luisa, de 81 anos, pediu-me boleia, não conseguia subir a camioneta para ir à cidade buscar mais outra certidão entretanto solicitada. Pergunto-me, durante quanto tempo aguentará ela?
Há pouco, Felismina, após outra deslocação para tratamentos químicos e de radioterapia, questionou-me: Se eu não chegar ao fim a minha filha perde os direitos?...
Os - 8 mortos - permanecem na internet e ninguém diz nada...
Até quando?

Ribeirinha, 31 de Janeiro de 2000

Nota: Os nomes, sequência e as idades destes relatos verídicos foram alterados.

Publicado no Jornal Telégrafo, em 9 de Fevereiro de 2000.

A minha rua em Julho de 1998 (Foto Conceição Quaresma)

7 comentários:

A ilha dentro de mim disse...

Como não podia deixar de ser, também já escrevi um post sobre a data. A verdade é que não há borracha que apague as mágoas de vidas perdidas e memórias derramadas. Resta saber se as nossas gentes conseguirão tirar daqui lições para deixar ao futuro...
Saudações,
LB

Unknown disse...

nao sabia do artigo como é compreensivel, mas acho muito bem dito, uma coisa é certa a mente humana esquece muito depressa mas este acontecimento para quem o passou nao vai esquecer tão depressa.

Anónimo disse...

provavelmente não voltará a acontecer algo desta dimensão, devido ás casas mais seguras agora construídas...

Mas as poucas memórias que deixam os meus 5 anos de idade na altura são medo de entrar em casa, acampamentos e destruição... aquela foi com toda a certeza a manhã mais confusa da minha vida...

Grifo

Tibério Dinis disse...

Um bom memorial, é importante não esquecer estas datas e preparar o futuro.

Excelente post.

Carlos Faria disse...

Hoje, sentado ao balcão da minha casa, numa noite amena, a ouvir os ruídos de uma freguesia com vida regularizada; ainda recordo os sons daquela madrugada, sinto os seus medos e as saudades daqueles que no meio da confusão posterior se deixaram abalar e apressaram angustiados a sua saída do mundo dos vivos.É neles que penso por ter partilhado a dor de uma forma tão próxima como responsável dos acampamentos

Paulo Pereira disse...

Parabéns, embora atrasados, pelo artigo do Telegrafo.
Esperemos que as próximas catástrofes, embora inevitáveis, sejam menos dramáticas.

Carlos Faria disse...

foi um momento difícil, uma daquelas pessoa era um familiar muito próximo