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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"A Amiga Genial" de Elena Ferrante



"A Amiga Genial" de Elena Ferrante é a primeira obra que leio desta escritora italiana contemporânea, correspondendo a um dos maiores fenómenos literários dos últimos anos por em simultâneo coincidir com um grande êxito editorial e reconhecimento de qualidade do romance, sendo este o motivo que me despertou interesse após ouvir numerosas recomendações para a respetiva leitura.
Este título corresponde ao primeiro volume de uma tetralogia que conta pelos olhos da narradora as histórias de vida e da amizade desta com outra rapariga da mesma idade iniciada nos bancos da escola primária até ao começo da velhice integradas na teia das relações sociais do seu bairro pobre e popular de origem em Nápoles até ascensão e sucessos pessoais da autora e da sua amiga nesta cidade. O presente tomo vai da infância, passa pela adolescência e chega até à entrada da vida adulta da sua colega e decorre a partir da década de 1950. A autora que deseja ser escritora vai descobrindo que a companheira possui uma genial inteligência, mas descobre-se que há uma admiração mútua, grandes sonhos de ambas em ascensão socioeconómica, uma influência nos comportamentos entre si, onde cada uma considera a outra um modelo de capacidades, vontade de estudar e exemplo para condicionar a sua atitude.
A escrita do livro é magnificamente agradável e desperta um grande prazer de leitura que se associa ao conteúdo narrativo, onde somos cativados pelas lutas de sobrevivência destas personagens, as descobertas íntimas da puberdade, do amor, os estilos de vida familiar e social num bairro pobre de operários com pequenos empresários locais, os defeitos do sistema, desde a sombra das redes do crime organizado, aos esforços dos empreendedores, às vicissitudes porque estes passam até aos preconceitos e hábitos destas gentes que os preserva num gueto de onde é muito difícil sair ou subir na vida.
É um livro de muito fácil leitura, onde a análise social é exposta por meios simples, descomplicando a narrativa e a reflexão, gostei de tal modo do volume que imediatamente encomendei os restantes três para próximas leituras, reforçado pelo facto de ainda este ano Nápoles ter sido a minha região de férias e descoberta, havendo passagens que me recordam aqueles dias tão agradáveis que ali passei. Recomendo a qualquer leitor.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

"O Lobo das Estepes" de Hermann Hesse


"O Lobo das Estepes" do escritor germânico Hermann Hesse, laureado com o prémio Nobel da literatura, apresenta o desencanto e revolta de um homem com a humanidade mas que inconscientemente anseia integrar-se no mundo que refuta e despreza por considera a sociedade rendida a um estilo de vida banal e medíocre nas suas relações em comunidade, curiosamente a sua luta para ultrapassar esta misantropia e depressão que o atrai para o suicídio desenvolve-se, precisamente, com a ajuda de pessoas de grupos sociais marginais e despromovidos, como prostitutas e músicos de salão traficantes de psicotrópicos, que lhe demonstram como valorizar e aproveitar a vida, desde a produção de arte genial e eterna, até tirar proveito da obra popular passageira capaz de só despertar o prazer frugal do momento e fundamental para temperar a vivência do ser humano e assim se justifica apostar na sobrevivência e adiar a morte inevitável em alternativa a se tornar num alienado vencido.
O romance tem uma espécie de prólogo editorial que pertence à obra, possui uma grande densidade psicológica e um conjunto de reflexões que evidenciam a contraditória luta íntima entre o aspirar ao sublime e a perfeição, exemplificados nas obras de Goethe e Mozart, e a importância de aproveitar o banal para tirar proveito da vida que justifique a sobrevivência numa luta de personalidades múltiplas de que cada indivíduo é na realidade composto, onde até mesmos génios como Goethe e Mozart são capazes de ser crianças e de amar a brincadeira, havendo assim que equilibrar a convivência na alma de cada um entre o desejo para os ideais e as tendências internas para os seus opostos.
Este romance, que é de facto uma obra-prima, antecede em muito a questão levantada por Umberto Eco em "O nome da Rosa": se o riso também faria parte de Deus ou era fruto do mal, sendo que Hesse, de uma forma diferente, evidencia que no ser humano a felicidade está em saber conjugar o sério, perfeito, maduro e imortal, com o divertido, tosco, infantil e passageiro que tempera a vida. Gostei muito do livro e a escrita é magnífica, os meus sublinhados de ideias interessantíssimas a reter surgiram em muitas das suas páginas, é uma obra que recomendo a leitura, mas a quem gosta de obras profundas e onde a facilidade do conteúdo exposto não seja um fator limitante ao prazer de ler.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

"As altas montanhas de Portugal" de Yann Martel



Acabei de ler o romance "As Altas Montanhas de Portugal" do escritor Canadiano Yann Martel, este é o quarto livro que leio deste autor que se tornou mundialmente famoso com "A vida de Pi" que ganhou o prémio booker prize em 2002 e foi adaptado ao cinema, mas é o primeiro que leio traduzido em Português.
Todos os romances de Martel têm uma estrutura, conteúdo e estilo original fugindo aos rótulos de outras escolas literárias, misturam acontecimentos fantásticos, mas distintos do realismo mágico ibero-americano; relacionamentos humanos com animais abordando análises de compreensão psicológica destes; questões filosóficas de cariz religioso e teológico e o impacte da morte nos protagonistas a partir de familiares próximos. Este não é exceção. Junta três narrativas distintas que se cruzam no Nordeste de Portugal, denominado por Altas Montanhas de Portugal, e, de forma mais ou menos direta, faz referências a personagens e animais comuns às três histórias.
A primeira alguém afetado por fatalidades na família próxima expressa a sua amargura adotando um andamento à recuas e vai procurar um artefacto religioso que descobre por indícios num diário de um missionário que trabalhou no seio da escravatura, empreende então em 1904 uma viagem de automóvel de Lisboa às Altas Montanhas de Portugal, uma inovação da época com todo o pasmo e aventura que esta travessia do País provoca descrita de uma forma divertida e sarcástica que envolve um Jesus simiesco. A segunda decorre numa sala de morgue de um hospital em Bragança onde o médico legista ouve uma dissertação de sua mulher falecida que aborda semelhanças da vida de Cristo e as obras de Agatha Cristhie, terminando com  a vida de um idoso autopsiado a pedido da viúva com um resultado original e envolvendo um primata. A última narrativa fala de um político que ascende a senador no Canada que confrontado com a perda da mulher desiste de tudo para se refugiar nas Altas Montanhas de Portugal, a terra dos seus ascendentes, com um chimpanzé .
A escrita é elegante e cheia de notas nostálgicas, descrições estéticas e sentimentais de uma forma bela, apesar do rigor descritivo de certos factos históricos e geográficos, têm por vezes erros ou alterações intencionais  do autor e traz até hoje animais pré-históricos da fauna ibérica.
A ideia de fundo do romance parece sintetizada no final da primeira narrativa: a humanidade é fruto de símios que se elevaram e não o resultado de anjos caídos. O livro lê-se bem e é agradável, mas algo estranho sem atingir o nível da obra mais famosa de Martel e mostra um retrato de Portugal pelos olhos de um Canadiano.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"Morte no Verão" de Yukio Mishima


Uma coletânea de 10 contos do escritor japonês Yukio Mishima sendo "Morte no Verão" o de entrada da série contida neste livro, todos mostram dramas psicológicos mais ou menos intensos da vida dos seus protagonistas sobre a luta pela sobrevivência face à perda de entes amados, à obtenção de rendimentos, aos medos pessoais ou a forma de resolver as questões de honra tradicional, do amor e da amizade, brilhantemente escritos com numa rica linguagem onde muitas vezes fluem reflexões do interior das personagens resultantes dos efeitos da observação ou dos acontecimentos do mundo exterior dentro do pensamento e consciência das pessoas. Um deles é apresentado sob a forma de uma pequena peça de teatro.
Por vezes somos chocados pelo desenlace da narrativa, outras vivemos o drama interno das personagens, havendo mesmo alguns como que um jogo de espelhos das relações entre estas, que no conjunto mostram  a cultura japonesa ou  algumas das diferenças de mentalidade face ao ocidente, como o que narra um suicídio por honra ou as memórias e orações de gueixas num fundo muito distinto do que se teria no hemisfério judaicocristão.
Pessoalmente gostei de todas as histórias, umas mais do que de outras, mas todos elas me cativaram desde o início sem deixar de transparecer uma calma do desenrolar das histórias mesmo nos casos mais dramáticos, Gostei e recomendo a quem gosta do género contos e de conhecer outras culturas.

domingo, 18 de setembro de 2016

"Nora Webster" de Colm Tóibín



"Nora Webster", apesar de ser o romance mais recente Colm Tóibín foi o meu livro de estreia neste escritor atual da Irlanda, o qual já ganhou vários prémios literários e teve uma obra adaptada ao cinema.
Nora Webster narra a luta pela sobrevivência no dia a dia da homónima protagonista após a morte do seu marido, um professor conservador católico, à sombra de quem ela se habituara a viver, ficando então com cerca de 40 anos e 4 filhos, desde a idade do ensino básico até ao universitário, a seu cargo, passando então a enfrentar dificuldades financeiras, necessidade de compreender a psicologia variada dos seus descendentes e com personalidades, gostos e maturidades bem distintas, enquanto se adaptava à nova situação numa pequena cidade da República num período de tensão política com a violência na Irlanda do Norte e reivindicações laborais na parte independente da ilha que se deduz ser nos anos 1960/70.
Colm Tóibín mostra que é possível tornar cativante um romance escrito de uma forma límpida e quase sem floreados estilíticos sobre a vida de uma mulher comum, numa terra provinciana banal, sem ocorrência de grandes acontecimentos sociais e mesmo com tanta simplicidade prende o leitor.
Ao longo de todo o romance vamos conhecendo devagar os pensamentos, as recordações, os receios, os passatempos/fugas da vida de Nora e as suas pequenas decisões diárias desta viúva que são os passos para a sua emancipação forçada, bem como os problemas e a solidariedade da família alargada, dos amigos e da influência católica que permitem que ela não colapse perante os novos desafios que enfrenta.
Talvez o mais original neste romance seja o facto de a protagonista não deixar de ser uma mulher comum que na sua intimidade apenas luta para ultrapassar as suas fragilidades, mas que a sentimos como uma heroína, permitindo elevar a tal categoria uma pessoa comum que poderia ser a nossa vizinha onde parece que nada de especial se destaca mas onde um grande drama se desenrola e se vence. Gostei e recomendo.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

"CORRECÇÕES" de Jonathan Franzen



"Correcções" é o segundo romance que leio de Jonathan Franzen, um escritor dos Estados Unidos da atualidade e de elevada notoriedade pública. À semelhança de "Liberdade", o livro que agora li também se serve dos desencontros numa família para mostrar muitos dos problemas contemporâneos da sociedade norteamericana.
O romance conta os principais episódios da vida dos vários membros da família Lambert, desde meados dos século XX até à entrada do presente milénio, com maior pormenor do dia a dia de recente. Um agregado composto por pai, mãe, dois filhos e uma filha, todos com personalidades diferentes, com perspetivas do mundo distintas e com problemas pessoais, éticos e morais díspares, sendo comum a todos, a senilidade e demência do pai que a mãe enfrenta diariamente enquanto sonha reunir todos pelo Natal, enfrentando conflitos geracionais, de avós aos netos, passando pelo afastamento da nora e indo até às inconveniências individuais a tal desiderato.
Novas e velhas tecnologias de comunicação, globalização, consumismo, alcoolismo, depressões psíquicas, neoliberalismo, marketing de aliciamento financeiro, injustiça social, racismo, homossexualidade, assédio laboral, fardo da velhice, desencontros sentimentais e problemas de compreensão do amor familiar de uma forma ou outra são expostos no evoluir destas vidas que optam por formas mais ou menos corretas para os enfrentar, tudo isto numa escrita trabalhada de forma diferente em função do carácter da personagem ou do meio utilizado: reflexão psicológica, diálogo direto, telefone, correio-eletrónico, páginas de internet, SMS, etc. conferindo uma grande diversidade de estilos sempre com uma linguagem fácil, despretensiosa mas bem trabalhada literariamente. 
O romance varia de momentos hilariantes e irónicos, até ternos, depressivos e de angústia, em função das situações, gerando um retrato multifacetado da sociedade norteamericana através das vivências e sentimentos desta família da classe média-alta com as suas alegria, tristezas, receios e esperanças. Uma grande obra que não camufla a fealdade de muitos dramas pessoais e sociais de hoje.

domingo, 11 de setembro de 2016

No aniversário da morte de Antero de Quental


Culpado

Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto o seixo.

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
Não chamo à existência hora sombria;
Acaso, à ordem; nem á lei desleixo.

A Natureza é minha mãe ainda...
É minha mãe... Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir: se estou desesperado;

Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza...
É de crer que só eu seja o culpado!


(Ponta Delgada 18 de abril 1842 - 11 de setembro de 1891)

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"AMERICANAH" de Chimamanda Ngozi Adichie


"Americanah" da escritora da Nigéria Chimamanda Adichie, de quem já li este livro e do qual muito gostara, é um romance que mostra não apenas as dificuldades de vida da população daquele País, como também os problemas que a sua juventude enfrenta ao emigrar ou refugiar-se no Reino Unido ou nos Estados Unidos, mostrando muitos dos preconceitos raciais e culturais nos Países de acolhimento com sociedades multiétnicas e ainda os desajustamentos daqueles que regressam à origem. Aliás, o título "Americanah" é o termo com que os Nigerianos designam os seus emigrantes que vêm da América aculturados, à semelhança dos Açorianos quando falam dos "calafonas" e "amercas" e os Continentais denominam "francius" aos que passam pela França.
O romance centra-se numa relação amorosa que se iniciou na adolescência no ensino secundário, se prolongou no universitário e é interrompida pela emigração legal da jovem para a América e ilegal dele para Inglaterra sendo então afetada pelas vicissitudes que cada um enfrenta relatada em partes distintas ao longo do livro.
Os penteados africanos e as novas tecnologias tornam-se peças importantes para a caracterização do mundo atual, não só pelo uso destas nas comunicações à distância, mas também quando parte dos capítulos se passa num salão cabeleireiro que suporta reflexões sobre a importância do cabelo na integração social e, sobretudo, por a protagonista se tornar numa blogger famosa, onde, a partir das experiências do dia-a-dia, denuncia e caracteriza os vários tipos de racismo e os preconceitos e ideias feitas nos povos de acolhimento. Enquanto a estadia ilegal do protagonista servirá para mostrar vertentes diferentes das dificuldades dos imigrantes. Por sua vez, os momentos vividos na Nigéria evidenciam a corrupção política neste Estado, as ideias irrealistas do povo sobre os países de sonho, a estratificação social, económica e educacional e ainda a aculturação que sofrem os que saem e voltam transformados ao local de origem, em contraste com os que permaneceram sempre na terra natal.
Chimamanda utiliza escritas diferentes em função das necessidades de narração da estória, textos comunicacionais privados no e-mail ou públicos na blogosfera e redes sociais, nas caracterizações dos falares do inglês britânico, americano, nigeriano e da influência da língua nativa da escritora: o igbo, contudo sem nunca perder nem a coerência nem a uma grande fluência, o que torna a leitura muito agradável e diversificada, mas sempre fácil e a tradução tece a preocupação de respeitar minimamente essa riqueza estilística.
Assim, estamos perante uma obra magnífica que é ao mesmo tempo uma história de amor, um manifesto contra a injustiça e o preconceito e um retrato do mundo globalizado e informatizado atual visto pelo olhos de uma Nigeriana. Interessante também o recurso a encontros sociais em salão ou em festas que recordam técnicas da literatura do século XIX e de Proust no século XX, para mostrar a diversidade intrínseca das classes média e alta que se cruzava nas suas relações de vida.
Americanah é de facto uma grande obra literária e um tratado social que enriquece a literatura contemporânea e alarga os horizontes de quem lê. Apesar de grande (cerca de 700 páginas) vale a pena ler e recomendo.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Reflexões sobre Bernardo Soares e sua poesia


Fernando Pessoa continua a ser para mim uma caixinha de surpresas, apesar de há tantos anos ler a sua obra, sob os mais variados heterónimos, nunca consegui esgotar novidades nos seus textos.
A coletânea de textos em prosa que constitui "O livro do desassossego", escrito sob o nome de Bernardo Soares, se tirar a Biblia, é sem dúvida a obra que ando há mais tempo a ler e nunca parei, está sempre à minha mesinha de cabeceira. Hoje leio um pouco, depois paro uns dias e mais tarde regresso a ela, e mesmo quando repito textos tenho sempre a sensação de estar a ler algo de novo e encontro sempre qualquer parágrafo que me fascina e releio como se fosse a primeira vez.
Apesar disso, só hoje descobri que Bernardo Soares também tem poemas e naturalmente nestes se sente aquela lassidão, indecisão do observador atento, que analisa o pormenor e discute a sua atitude e aqui vai um que testemunha esta personalidade.

Loura a face que espia
Cose, debruçada à janela,
Se eu fosse outro pararia
E falaria com ela.

Mas seja o tempo ou o acaso
Seja a sorte interior,
Olho mas não faço caso
Ou não faz caso o amor.

Mas não me sai da memória
A janela e ela, e eu
Que se fosse outro era história
Mas o outro nunca nasceu...

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

"Jesus Cristo Bebia Cerveja" de Afonso Cruz


Acabei de ler o romance "Jesus Cristo bebia cerveja" do português Afonso Cruz, um dos escritores mais elogiados da atualidade, que tem uma forma de escrever original, cheia de metáforas e expressões estilísticas inovadoras e de quem já li vários livros, os quais, pelo menos, têm-me agradado sobretudo pela sua escrita e este não foi exceção.
Numa aldeia alentejana cruzam-se personagens tão díspares como uma arqueóloga da capital que se seduz pela rusticidade de um camponês em detrimento dos seus colegas cultos; um idoso professor ateu que conferencia com um sacerdote hindu e outro de religião africana sob o patrocínio de uma inglesa dona de uma aldeia de estrangeiros; um padre masoquista; um bar de streap num antigo avião, uma avó católica cujo maior sonho é visitar Jerusalém; uma neta que pretende atender a grande desejo dela enquanto se decide por se entregar a um pastor jovem e viril que cheira às coisas da terra ou ao idoso sábio e apaixonado que decide ajudá-la na viagem à Terra Santa através de uma solução original para a conquistar. Está assim reunido um cenário de singularidades que junto com a escrita criativa rapidamente cativa o leitor.
O desenrolar da história, misturado com ironia, comicidade e crítica social, leva à construção de páginas ora hilariantes, ora nostálgicas mas também por vezes tristes e até trágicas que denunciam injustiças e expõem sentimentos feridos e contraditórios.
Apesar de ter gostado do livro e de em muitas páginas me ter divertido, novamente aconteceu neste romance algo que me vem frequentemente a acontecer ao ler muitas das obras nacionais que se vão publicando nos últimos tempos em Portugal: prometem muito, são magnificamente trabalhadas em texto e depois esmorecem para o seu final, mas pior, não deixam uma mensagem ou conteúdo que me marque com uma ideia ou recordação forte, um sabor final a pouco face aos indícios com que começa.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

"O Retrato" de Nicolai Gogol


"O Retrato" do escritor russo do século XIX Nicolai Gogol, será mais um conto do que romance, dividido em duas partes: na primeira um pintor com talento, mas em dificuldades financeiras, cruza-se com um retrato inacabado num antiquário e fica fascinado pela força com que os olhos da pintura o fixam e consegue comprá-lo, só que a força desse olhar e um acontecimento, que parece fortuito, virão mudar a sua vida, dando-lhe nome como profissional, mas mediocridade no aproveitamento dado ao seu dom. Na segunda, compreender-se-á a origem da pintura e a razão da maldição que transportam esses olhos.
Não sendo uma obra que navega no mundo do fantástico, este insinua-se, tanto pelos efeitos nefastos que o quadro provocou no pintor, como na suposta transposição para a pintura dos efeitos do mal do agiota retratado.
"O Retrato", mesmo sem ser considerado a obra-prima de Gogol, neste conto, ele aborda a ideia de que é fulcral a arte contribuir para a edificação do Homem, sendo que o uso dos talentos para outros fins menos nobres um desvio deste objetivo, o qual pode ter reflexos na propagação do mal. Em paralelo, está também patente o conceito de ligação da origem do mal às causas e agentes de injustiça social, provavelmente uma influência das ideias políticas veiculadas pela revolução francesa, onde o "pecado" contra os mais pobres e desfavorecidos passa a ter uma relevância na moral muito mais forte do que no passado.
Muito bem escrito, como é característico da escola russa daquele século, e de fácil leitura, este conto é, sobretudo, uma alegoria ou parábola sobre o contributo da arte para moralização do Homem e uma crítica contra a injustiça social, preocupações que se refletirão noutros escritores como Dostoievki, Tchekhov e Tolstoi e assim se compreende porque Gogol está entre os génios literários mais influentes da Rússia. Gostei e recomendo.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

"História do Cerco de Lisboa" de José Saramago


"História do Cerco de Lisboa", do único laureado com o prémio Nobel da literatura de língua Portuguesa, José Saramgo, começa com um diálogo entre um revisor de textos e um autor de um ensaio de história em revisão relativo ao cerco de Lisboa no tempo de Dom Afonso Henriques na conquista da cidade aos mouros, um diálogo onde se reflete a importância do revisor naquilo que é publicado e se fala do sinal gráfico "deleatur" que indica corte de letras ou palavras no texto a publicar.
Após esta introdução, o revisor, contra todas as regras deontológicas da profissão, altera o texto do ensaio citado, não através de um deleatur, mas introduzindo um "não" numa verdade histórica que modifica o enquadramento deste evento dos inícios de Portugal.
Ficou então aberta a oportunidade para o romance passar a conter uma reflexão sobre o papel daqueles que intervêm no "moldar" a narração do passado histórico de um País, como, do protagonista ser desafiado a recontar a história do cerco de Lisboa alterada por aquela palavra, mas condicionado aos resultados finais do passado que moldam o presente. Deste modo passam a desenvolver-se duas estórias: a histórica, alterada e conciliada com a reinterpretação crítica e irónica de crónicas da época, onde não falta o tempero do amor cujo desenvolvimento o revisor controla e direciona e a outra no tempo atual, de onde lhe nasce uma que não controla e resulta da transgressão.
Saramago aproveita no cruzar destas estórias desfasadas no tempo para falar de Lisboa, dos vestígios daquela época na atual cidade,e para criticar mentalidades, perceções, preconceitos e os ajustamentos que a História sofre em função da religião e cultura de quem narra ou tem o poder de moldar a comunicação do conhecimento do passado face aos interesses do presente. Saramago aproveita ainda para utilizar em estórias diferentes e relatos das "fontes" escritas de estilo de narrativo distinto  e uso de várias forma ortográficas sintáticas que acrescentam uma grande riqueza ao texto.
É sem dúvida um excelente exercício criativo e uma reflexão sobre os primórdios da história de Portugal e abordagem de questões sociais de hoje, cheio de informações e de ironias subliminares, sem deixar de ser uma obra ao estilo de Saramago nem sempre fácil de ler e de abarcar tudo o que é díto nas entrelinhas. Gostei e recomendo sobretudo a quem aprecia a prosa deste escritor como é o meu caso.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

FESTA do LIVRO 2016 na Horta - A colheita da visita para a minha biblioteca


Não costumo falar dos títulos que compro antes de os ler, mas visitei logo no seu primeiro dia a Festa do Livro 2016 que decorre nesta Semana do Mar e confesso-me agradavelmente surpreendido face ao ano passado. É verdade que do conjunto de de obras que tinha anotado para comprar em breve apenas encontrei uma: "Americanah" de Chimamanda Nogzi Adichie, mas também encontrei muitos bons livros que já li e outros de escritores que conheço que estiveram nas minhas mãos para aquisição, mas o pacote de compras já estava extenso e comecei a encolher a lista e esta reduziu-se a 9 obras.
Curiosamente uma já li quando jovem, mas não a tinha e por vezes apetecia-me folheá-la "A quinta dos animais" de Orwell. Também me aventurei por escritores famosos que nunca li: contos de Yukio Mishima e outro de Gogol, mais outro contemporâneo que tem merecido grandes elogios Colm Tóibín sem ser em nenhum destes casos as suas obras de referência, mas para a estreia por vezes é uma boa opção, pois mantém a esperança de que ainda há deles melhores títulos quer se tenha gostado ou não do livro por onde se começou.
Também não podia deixar passar a oportunidade de voltar a ler o concidadão Canadiano Yann Martel numa obra que até fala de Portugal, uma coincidência que me tem despertado interesse e como à muito queria ler "O cerco de Lisboa" de Saramago já arranquei com esta leitura.
Os últimos dois, Franzen e Hess, são as obras mais referidas deles e foram oportunidades do momento, mas houve muitos mais títulos que estiveram em vias de compra, pelo vale a pena passar por lá 

domingo, 7 de agosto de 2016

"Salambô" de Gustave Flaubert



"Salambô" do grande escritor francês do século XIX: Flaubert, é um romance histórico sobre a guerra dos mercenários que ocorreu entre os anos 241 e 238 antes de Cristo na cidade do norte de África de Cartago, então a grande rival de Roma para dominar o Mediterrâneo ocidental e por esta destruída após as três guerras púnicas que estabeleceu a hegemonia do Império Romano.
Durante a primeira destas guerras, Cartago contratou mercenários para criar exércitos contra os romanos com promessas de pagamento elevadas e lideradas pelo general cartaginês Amílcar, mas chegada a paz deixou estes militares junto às suas muralhas sem lhes pagar o acordado, enquanto rivalidades internas mantiveram o general distante. Esta situação, após uma farra soldadesca, conduziu a uma revolta e à tentativa dos mercenários de conquistarem Cartago e de se aliarem às outras cidades rivais das vizinhanças, todas na atual Tunísia. Flaubert introduz um cunho romântico, aproveitando-se do facto de um dos comandantes inimigos se ter casado com uma filha de Amílcar e este aliar-se a Cartago, elementos para imaginar uma história de paixão, ódio, vingança nesta guerra que acabou no massacre dos estrangeiros.
Salambô é uma personagem real, mas de nome desconhecido, os restantes protagonistas do romance são os famosos líderes históricos deste conflito, há batalhas e acontecimentos documentados, mas Flaubert fugiu à história para os adaptar ao seu romance. O escritor foi muito pormenorizado ao nível das descrições do armamento antigo e dos costumes dos povos de origem dos mercenários, bem como da barbárie que foi este conflito, usando uma terminologia técnica por vezes de difícil perceção que intercalou com relatos de ritos pagãos, superstições e luxo exuberante dos atos litúrgicos e das famílias dominantes, alternando assim partes de grande violência sanguinária de uma ferocidade sádica chocante, com momentos fantásticos que descrevem edifícios. roupagens e ritos pagãos onde domina o luxo de metais e pedras preciosas  e animais míticos típicos e objetos sagrados dos contos de mágicos.
Gostei da estória e aprendi história com o romance, mas confesso, para mim Flaubert foi hiperbólico ao falar da riqueza e não se conteve na descrição da violência atroz dos povos antigos que são tratados como selvagens cheios de sede de vingança geradora de um sofrimento sem limite ao seu inimigo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Festa do Livro 2016 da cidade da Horta

Todos os anos a na celebração da Semana do Mar, sempre com início no primeiro domingo de agosto, decorre, em paralelo ao festival náutico, gastronómico e lúdico, um evento especial dedicado aos livros organizado pela Biblioteca Pública João José da Graça, antes era a Feira do Livro, depois transformou-se em Festa do Livro.
Para divulgação, junto imagem com a lista dos livros que estarão em especial promoção nos vários dias da Festa do livro neste ano de 2016 na cidade da Horta, bem como o horário e endereço deste evento cultural.


Clique na imagem para a ampliar

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

"O Sol Nasce Sempre" ou "Fiesta" de Ernest Hemingway


"O Sol Nasce Sempre", também intitulado noutra edições por "Fiesta", é um dos romances mais icónicos do laureado norteamericano com o Nobel da literatura Ernest Hemingway, embora talvez, para alguns leitores, seja moralmente dos mais difíceis de digerir, tendo em conta a sua componente hedonista ou, para os mais exagerados até niilista, e é uma obra muito diferente das outras que já li deste autor, nomeadamente as duas aqui e aqui faladas.
O romance narra, na perspetiva de um elemento pertencente a um grupo de amigos americanos e ingleses, que goza a vida passando uma temporada em Paris, homens e mulheres que procuram tirar o proveito máximo da noite boémia desta cidade onde confluem artistas plásticos, escritores e "bon-vivants", sem grandes planos que não seja usufruir desta liberdade de pensamento e divertimento, do sexo e álcool que marcou os anos loucos das décadas entres as duas guerras mundiais na capital francesa.
Este estilo desemboca também em vazio e incompatibiliza-se com sentimentos humanos como o amor e paixões de momento que brotam deste convívio sem compromissos, fidelidades mais tradicionais ou perspetivas de futuro. A ânsia de novas experiências num momento de saturação do que entretanto se foi disfrutando repetidamente e até à exaustão em Paris leva parte do grupo para festas de San Fermin em Pamplona, um meio muito diferente mas vivido num mesmo estilo na loucura daquelas festividades.
De uma forma que até parece despretensiosa, pelo estilo quase jornalístico da narração, conta-se assim o estilo de vida de uma geração de jovens hedonistas que aproveitam para gozar ao máximo o dia-a-dia, sem planos para o futuro e sem a restrições que o convívio social obriga. Diria que se "On the road" de Kerouac está para a geração beatnik nos anos 1950/60, "Fiesta" está para a geração louca e despreocupada dos anos 1920/30, duas denominadas por alguns "gerações perdidas". Se o primeiro, bem mais recente, mostra muito do modo de viver do seu autor, o gosto pelo estilo de vida preferido de Hemingway está nesta sua obra e a sua paixão pela "arte" tauromáquica está magnificamente tratada neste romance que foi sem dúvida o maior cartaz de sempre daquele festival a mundialmente famosa corrida de touros de San Fermin... a "fiesta".
Para quem pense que este livro é amoral, está errado, os riscos deste hedonismo estão bem expostos sem ser necessário narrar uma história que julgue as personagens ou dê uma lição de moral. Gostei.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

"A Mulher da Lama" de Joyce Carol Oates


Acabei de ler "A mulher da lama", romance com que me estreei nesta escritora norteamericana frequentemente nomeada para o prémio Nobel da literatura.
A obra narra a vida de uma mulher abandonada pela mãe num lamaçal, resgatada por um deficiente e depois adotada por um casal que são exemplos de bondade cristã, enquanto no seu crescimento ela se mostra muito inteligente, competente e trabalhadora e consegue subir muito alto na vida, momento em que a pressão do lugar, o facto de ser mulher e os problemas de ética que os cargos de topo enfrentam, a levam a grandes dificuldades para conseguir sobreviver num mundo de homens e de interesses financeiros sem valores num período extremado entre o 11 de setembro e o início da segunda invasão do Iraque.
Gostei da escrita, com parágrafo curtos que desenrolam uma sucessão de pensamentos, sensações e descrições sempre expostos pela mente da protagonista e numa vertente muito feminina. Todavia, J C Oates utiliza por vezes uma técnica onde os receios nas situações reais da narração são prolongados por pesadelos, nalguns casos de aparência surrealista, noutros violentos, misturados com as suas questões de consciência e onde nem sempre se distingue no momento o que de facto acontece no terreno do que se passa mente da personagem central da estória, o que me provocou algum mal-estar, retarda o evoluir da trama e diminuiu o prazer que senti no começo do livro.
Apesar destas fugas, que podem ter servido para contornar o modo como a protagonista poderia resolver dados problemas, é um livro interessante sobre a sobrevivência da mulher num papel de líder na sociedade contemporânea e vale, sobretudo, por expor essa luta sentida no feminino.