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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

"Sangue Sábio" de Flannery O'Connor



"Sangue Sábio" de Flannery O'Connor, que acabei de ler, é um pequeno romance diferente do habitual. Mostra o peso das religiões cristãs no sudeste dos Estados Unidos, tema também presente nos seus livros de contos, um deles li e falei aqui.
Com recurso à linguagem popular das pessoas humildes do Tennessee, situação que é difícil de transpor numa tradução e seguramente perde muito com esta, esta edição não é um bom exemplo de um tradutor, a obra, apesar de conter momentos irónicos e divertidos, não deixa de ser amarga, deprimente e com situações duras, fruto de pressão psicológica causada pelo fanatismo religioso instalado na sociedade, sobretudo evangélico, aspeto brilhantemente trabalhado através da criação do protagonista, um jovem pregador que vindo do serviço militar para se libertar deste peso cria e anuncia a sua "igreja sem Cristo".
Todas as personagens do romance tem uma componente desequilibrada e ou oportunista, tanto crente como descrente, criando situações bizarras e mesmo momentos de violência, apesar de tudo, gostei do retrato apresentado de uma sociedade onde a fé pode ser tão perversa como o racismo.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

"Meursault, contra-investigação" de Kamel Daoud


O livro "Meursault, contra-investigação" que acabei de ler, do argelino Kamel Daoud, prémio Goncourt de 2014 é uma reação à famosa novela "O Estrangeiro" de Camus, prémio Nobel de 1957, que reli antes para melhor a compreender.
Para quem não se lembra, ou não sabe, Meursault é o estrangeiro membro da comunidade colonial em Argel e o assassino do árabe na obra de Camus, de cuja vítima nada soubemos na novela, exceto a existência de uma pretensa irmã, pois nem travou conhecimento com o seu criminoso.
Agora Daoud atribui um nome ao árabe: Moussa, uma comunidade de bairro e uma família, curiosamente não tem uma irmã mas sim um irmão: Haroun, situação explicada nesta ficção, e é este familiar mais novo que narra todo o impacte do crime e o seu contexto sociocultural.
Haroun serve-se da narração de "O Estrangeiro" para não só falar do absurdo na novela de Camus, mas também para contrapor o choque de culturas entre o colono e o povo local, a importância da língua francesa no contexto é interessante, e fala-se até da diferença do ocupante matar um anónimo autóctone e o desprezo votado à vítima em contraponto com os assassinatos na luta pela liberdade da Argélia ou na retaliação do irmão.
Harroun narra a sua vida e desenha situações paralelas e opostas sobre as quais reflete e compara com as de "O Estrangeiro". Em ambos os mundos o narrador está desadaptado dos costumes da sua sociedade, ambos matam, ambos são ateus que confrontam o clero, ambos têm uma relação de incompreensão com a mãe e ambos tiveram uma relação amorosa não comprometida. Todavia Camus conta o presente, Daoud faz uma restrospetiva desde as dificuldades dos argelinos ao tempo de Meursault, passa pela esperança da libertação do País e vai até à desilusão no presente, uma realidade quem também convive com o absurdo.
Um livro interessante, também de pequena dimensão, mas cuja qualidade sai diminuída pela comparação com a genialidade intrínseca a uma das obras maiores do século XX. Não obriga a ler "O Estrangeiro" previamente, mas que ajuda a leitura desta, ajuda, e a de Camus é a obra-prima.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"O Estrangeiro" de Albert Camus


Reli "O Estrangeiro" de Albert Camus, prémio Nobel de 1957, obra lida na década de 1980 e que me marcara em profundamente. A nova leitura foi para me relembrar do conteúdo desta novela, uma das mais famosas do século XX, dado que a obra que pretendia ler a seguir retomar um outro lado desta ficção.
O Estrangeiro, uma novela que nem chega a 100 páginas, é o relato na primeira pessoa da vida de um francês de Argel a seguir ao falecimento da sua mãe, onde agiu de acordo com as circunstâncias do momento e sem se preocupar que os seus atos pudessem chocar o senso-comum, ações que após um crime circunstancial vão ser usadas contra ele em julgamento e só então se apercebe da distância que existia entre ele e o mundo.
Albert Camus, que também foi filósofo, nesta obra mostra o seu modo de pensar: só o indivíduo entende bem os seus atos; muitos destes são irrefletidos e só coerentes com o seu sentir. Ao ouvir-se o mundo que nos cerca tomamos consciência como se pode viver desenquadrado com a sociedade e ser-se um estrangeiro na sua terra e exposto às interpretações mais díspares sobre o comportamento que se teve na vida diária.
Escrito numa linguagem muito concisa, simples e direta ao que se quer dizer, apesar de tudo profunda, aliciante e bela, Camus mostra um protagonista perdido na sua terra, cuja vida foi a das sensações do momento e como tal pode conduzir a um absurdo para o mundo. Absurdo que Kafka já explorara, mas aqui a personagem vem a perceber a sociedade, mas esta não vai entender o protagonista e este ao consciencializar-se do desencontro percebe o seu existir ou o seu modo de ser. Apesar de um fundo filosófico, é um livro de leitura muito fácil que maravilha a maioria dos seus leitores e daí o seu sucesso e recomendo a todos a sua leitura

sábado, 24 de outubro de 2015

"Volfrâmio" de Aquilino Ribeiro


Acabei de ler "Volfrâmio" de um dos escritores portugueses mais importantes do século XX, Aquilino Ribeiro, um romance que em simultâneo cumpre vários papeis.
Mostrar o que foi a corrida desenfreada da população ao minério de volfrâmio ou tungsténio durante a segunda guerra mundial no interior de Portugal para o exportar para a Inglaterra ou Alemanha para fabrico de armamento, tendo em conta que este elemento químico aumenta a resistência das ligas metálicas e melhora capacidade explosiva do equipamento bélico, situação que gerou uma loucura generalizada semelhante à da febre do ouro. Esta ânsia de encontrar volframite ou de adquirir terrenos potencialmente detentores deste mineral levou à riqueza de muitos, à desgraça e exploração de outros e a uma luta sem ética nas populações indiferente à mortandade que grassava na Europa.
Destruir o mito romântico de que as pessoas rurais são simples, honestas e honradas ao contrário das urbanas, no seio da província lavram todos os vícios que empestam as cidades: a argúcia maldosa, a mentira, a inveja, a mesquinhice, os grupos de malfeitorias, as traições, o domínio dos mais fortes que infernizam a vida de muitos e onde não falta a violência e o crime neste mundo tido por são e pacífico.
Por fim e não menos importante, Aquilino mostra a diversidade lexical do português das Beiras, da designação dos utensílios da economia rural e recorre ao vocabulário em vias de esquecimento, escrevendo um texto não só magnificamente elaborado e cheio de figuras de estilo com raízes nos falares e provérbios populares, como também com uma riqueza de termos e uma elegância linguística que delicia todos os que apreciam a escrita como forma de arte. Todavia nem sempre é fácil apreender o significado de todas as palavras usadas quer pela abundância, quer pela frequência e proximidade em determinados parágrafo.
Assim, por estes três aspetos estamos perante um romance histórico e uma colectânea da riqueza da língua numa história acessível, uma vezes irónica, outras divertida e com momentos densos e amargos do que foram as dificuldades vividas nas nossas aldeias devido à pobreza das pessoas e à luta entre as virtude e defeitos da população portuguesa, sendo que estes também não são poucos.

sábado, 17 de outubro de 2015

"O outro pé da sereia" de Mia Couto



"O Outro Pé da Sereia" de Mia Couto tem duas histórias ao longo do livro, intercaladas por capítulos que se cruzam no espaço mas estão distanciadas em 440 anos. A mais antiga em 1560 romanceia a vinda de Goa para Moçambique para a região do Zambeze do jesuíta Gonçalo da Silveira, personagem história tida como o primeiro mártir da evangelização portuguesa. A mais recente em 2002 numa aldeia da zona do martírio do missionário que se prepara e recebe um casal de afro-norte-americanos negros de uma ONG interessados em descobrir as feridas deixadas pela escravatura para compensar os descendentes de forma de aliviar a consciência de pertencerem a uma sociedade privilegiada mas onde são ainda alvo de preconceitos.
No relato histórico na linha condutora da narração denuncia-se o contrassenso na evangelização se aproveitar para implementar a exploração e escravatura dos africanos, mostrar a coexistência do cristianismo e das crenças animistas que levam a conversões em sentidos contrários de ambos os lados, pondo a nu o conflito de interesses e o choque de culturas.
A estória que decorre no século XXI, parodia os complexos de culpa e de indemnização dos descendentes africanos em estados ricos, como o aproveitamento de populações negras que exploram a situação e criam casos para justificar apoios e, em paralelo, são usadas memórias e uma imagem de Santa de 1560 e outros dados posteriores como meio de denuncia de injustiças históricas enraizadas em Moçambique e onde muitas vezes foram os seus habitantes os exploradores de si mesmo.
O romance tem duas escritas, a do relato histórico, em estilo de crónica romanceada com um português escorreito e a do romance neste século, onde Mia Couto utiliza a sua técnica de criação de palavras e parafrasear provérbios para construir a sua paródia e cultivar subtilezas irónicas que caracterizam o seu estilo. No conjunto é um romance divertido e triste, onde as feridas do colonialismo e da guerra fraticida brotam como pistas para reflexão e conhecimento dos problemas na sociedade moçambicana atual. Gostei.

sábado, 10 de outubro de 2015

"O tempo e o Vento" de Érico Veríssimo

"O Tempo e o Vento" de Érico Veríssimo, além de ser uma importante obra-prima da literatura brasileira, que estranhamente se encontra esgotada em Portugal, é um romance que nos últimos anos procurei ansiosamente adquirir com dois outros motivos: (1) por relatar a história do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul que contou com um importantíssimo contributo de emigrantes dos Açores no século XVIII, Região onde vivo e estão todas as minhas raízes; (2) por Porto Alegre ter-se tornado cidade irmã da Horta e esta ter-se depois geminado com aquela capital do mesmo Estado através de uma votação unânime da Assembleia Municipal da Horta, em que eu participei, e não concebo ter contribuído para este ato sem conhecer a cultura daquela metrópole onde Érico Veríssimo é um dos seus expoentes máximos literários.
Assim após intensa pesquisa só consegui encontrar num alfarrabista da feira do livro de Lisboa um livro antigo, com ortografia anterior a 1973, com os dois primeiros volumes reunidos de "O Tempo e o Vento" que constituem a primeira das três partes desta extensa obra e designada por "O Continente".
"O Tempo e o Vento" é um romance em forma de saga que desenvolve a formação da família Cambará através da fusão de sangue índio, açoriano luso-flamengo, paulista e até de um salteador errante que se torna sedentário por amor. O narrar-se estas origens no século XVIII e o posterior evoluir das várias gerações Cambará serve de meio para dar a conhecer ao leitor as lutas entre Portugal, Espanha e oportunismos ingleses, bem como o papel das Missões jesuíticas, que levam à definição das fronteira meridionais do Brasil com o Uruguai e a Argentina e prosseguir pela criação da província do Continente do Rio Grande de São Pedro, as suas guerras internas e fronteiriças, o estabelecimento da sua população com migrações brasileiras e imigrações açorianas, lusitanas, alemães e italianas, passando pela independência do País e indo até ao início da república federal com a instituição do Estado do Rio Grande do Sul já no fim do século XIX com o seu carácter cultural único, com virtudes e defeitos bem evidenciados na obra, que mistura todas as proveniências do seus habitantes, aproveitamentos políticos, influências religiosas e onde as raízes açorianas merecem um destaque no romance, não só com a Cavalhadas típicas da Ribeira Grande em São Miguel, como a dança da chamarrita tão forte no Faial e Pico e a culinária misturada com os produtos locais.
Érico Veríssimo com uma escrita elaborada que mistura linguagem popular com a escorreita, não expõe de uma forma linear esta saga: a obra começa num momento em que a família Cambará está sitiada no seu ninho histórico quando das lutas entre republicanos e federalistas em 1897 e depois com recuos e avanços em capítulos diferentes constrói toda a história destas gentes com grandes personagens e perfis psicológicos fortíssimos como Pedro Missioneiro, Ana Terra, Rodrigo Cambará, Bibiana Terra Cambará, Licurgo Cambará e Ana Valéria Terra que sem dúvida estão ao nível de outras figuras da literatura mundial. Um magnífico romance que deve ser lido não só pelo povo do Rio Grande do Sul, mas por todos os Brasileiros e Portugueses, sobretudo Açorianos.
Espero ter oportunidade de ler as sequelas desta saga: "O Retrato", e "O Arquipélago" que completam "O Tempo e o Vento" e penetram pelo século XX e onde seguramente a influência Açoriana se deve ir autonomizando e tornando-se cada vez mais Brasileira.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

"Sombras queimadas" de Kamila Shamsie



"Sombras queimadas" de Kamila Shamsie acompanha a vida das pessoas em torno de uma japonesa sobrevivente do segundo ataque nuclear ao Japão em Nagasaki poucos momentos depois do seu pedido de casamento por um alemão ali desterrado.
A partir da explosão Hiroko fica para sempre marcada com as sombras das aves do quimono que experimentava quando daquela luz intensa, sombras que sente na alma em Deli para onde foi à procura dos familiares ingleses do seu noivo vítima da bomba, onde se dá a independência da Índia e a partilha do país que a empurra para o Paquistão onde viu os reflexos dos movimentos da guerra fria no Afeganistão nascerem, crescerem e as mudanças de atitude com o tempo de um ocidente aliado virar a inimigo e onde a loucura lhe trouxe novas perdas e novas sombras. Sombras que renascem em 2001 quando acolhida em Nova Iorque pelos primeiros que a receberam assistem ao 11 de setembro, que desencadeia novas ondas de loucura e mais perdas ligadas ao Afeganistão e se viu o medo semeado nos outros e só então Hiroko compreendeu porque foi aplaudido o lançamento da segunda bomba no seu País, quando na realidade os EUA já tinham tudo para vencer a guerra sem necessidade de tal dano.
O romance não acusa ninguém diretamente, mostra sim um conjunto de sombras deixadas em vítimas das muitas loucuras, tensões e incompreensões que têm dominado o mundo desde aquele longínquo 9 de agosto de 1945 em Nagasaqui, uma história de gente que conviveu com culturas e religiões bem distintas e mesmo assim foram capazes de amar, sofrer, proteger-se e ferir-se entre si. 
Apesar dos reais acontecimentos bélicos associados à violência como pano de fundo, Sombras queimadas é um romance que junta uma escrita elegante e suave, à paz e ternura emanada da protagonista que enche assim toda a obra de um sentimento calmo e nostágico de uma saga com duas famílias que se protegem e se destroem mutuamente ao longo de 60 anos, que sofrem mais do que compreendem o que se passa em cada momento. Uma magnífica obra que recomendo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Deixa o Grande Mundo Girar" de Colum McCann


A partir de um facto real ocorrido em 1974, a travessia não autorizada de um funâmbulo por um cabo entre as duas torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque, Colum McCann desenvolve um conjunto de histórias independentes que de uma forma ou outra, no tempo ou no espaço, se cruzam ou foram tocadas por este ato assombroso e prosseguem depois o seu curso natural em coerência com A múltiplas estórias vai montando um retrato da diversidade social, cultural, étnica, económica e geográfica da cidade com as suas desconfianças, feridas e dores do povo de Nova Iorque de então, que permite compreender o mundo já no século XXI, pois, tal como uma das personagens explica "Por vezes temos de subir a um andar muito alto para ver o que o passado fez em nós".
O romance com um estilo de escrita fácil e realista tipicamente norte americano, onde se evidencia a influência de Don DeLillo ou Jonathan Franzen, mostra gentes com uma certa angústia existencialista e desnuda a sociedade e a cidade, expondo, com crueza, as suas injustiças e onde praticamente todos são de alguma forma vítimas neste mundo que continua a girar.
O romance foi premiado com o National Book Award de 2009, e gostei apesar de atravessado por uma quase permanente tristeza mas compensada por uma ternura quase omnipresente.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

"1984" George Orwell


O romance "1984", de George Orwell, é uma "sátira" ou um alerta sobre até onde os totalitarismos de meados do século XX poderiam levar a humanidade.
A obra de 1949 projeta um futuro sombrio em 1984, onde a revolução para criar uma sociedade sem classes foi subvertida com o fim único de se preservar como poder com o controlo total das ameaças ao edifício político construído. Ironicamente gera-se outra estratificação, a grande maioria continua esmagada, a prole; uma minoria faz de classe média e apoia uma ínfima parte que domina uma sociedade que se tornou globalmente mais pobre e onde os escassos privilégios para o topo são valorizados.
Com três máximas: guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força; explicadas em livro; com a criação de uma novilíngua que limite o pensamento por falta de conceitos que sirvam a argumentação da contestação; e com uma verdade oficial trabalhada; a classe dominante, com um mítico líder o "grande irmão" vigia tudo e todos, de facto não a prole que por si só não é um perigo.
O livro centra-se num protagonista da classe média, cuja profissão é alterar os arquivos da história para os acomodar à verdade do presente as vezes que for necessário, cuja memória questiona o presente e o passado e busca seres com dúvidas, cujo controlo deteta e o vai transformar para que no seu íntimo acredite que a verdade do partido é absoluta e rejeite até a incoerência desta com as recordações, a lógica e a verdade científica.
Este excelente romance é um perfeito complemento a "O Maravilhoso Mundo Novo" de Aldous Huxley, onde era a técnica para a predestinação e a alienação que tornava os seres apáticos e a aceitarem a sua distopia; agora é a psicologia através da omnipresença da vigilância, o controlo absoluto da mente e da informação que o faz a pessoa acreditar na verdade oficial e até temer a dúvida. Um magnífico livro, um bom suporte à reflexão sobre as estratégias para a instalação e preservação do totalitarismo absoluto.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

"Número Zero" Umberto Eco


"Número Zero" é um pequeno romance publicado já este ano por Umberto Eco, neste, em estilo de paródia, o escritor disserta sobre como fazer mau jornalismo e utilizar esta atividade como ferramenta de pressão sobre personalidades e manipulação social, isto através da preparação de uma nova equipa editorial contratada para a emissão de um novo título de jornal e a "publicar" precisamente com este último objetivo.
Em paralelo, um dos jornalistas da equipa na sua investigação histórica acredita ter descoberto uma conspiração e efetua uma reinterpretação de notícias passadas, sobretudo na Itália, desde o fim da II Grande Guerra que tem como base a hipótese de sobrevivência de Mussolini e o seu uso como ídolo capaz de estancar a expansão comunista durante a guerra fria. Assim ligam-se numerosos atos terroristas e situações aparentemente isoladas numa teia que envolve políticos, guerrilhas de esquerda e de direita, igreja, forças de segurança nacionais e de inteligência internacionais e até guarda-florestais, no fim sentimo-nos usados numa manipulação social dos destinos dos Estados. Curiosamente um relacionamento amoroso na equipa que envolve alguém hipoteticamente mais sentimental e com perturbações é capaz de dar alguma racionalidade a esta loucura narrativa.
Umberto Eco já não surpreende, pois usa a mesma fórmula conspirativa de organizações secretas em outras obras anteriores, como no Cemitério de Praga e no Pêndulo de Foucault, e como o atual romance é demasiado centrado na Itália muitos elementos da história  perdem-se na memória de quem não conhece bem os acontecimentos ocorridos naquele país no último meio século, originando uma cadeia louca que por vezes me cansou ou me perdi, mesmo assim tem o interesse de mostrar como a comunicação social pode manipular o modo de pensar da sociedade muito além da real verdade dos factos.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

"Uma verdade incómoda" de John le Carré


A minha estreia em obras de John le Carré teve o mérito de mostrar que existem escritores de sucesso popular capazes de escrever thrillers, policiais e histórias de espionagem que vão muito para além do mero suspense que criam no leitor e são capazes de levantar questões, fazer retratos da sociedade contemporânea e de denunciar muito do mal que a domina.
"Uma verdade incómoda" ou "delicada" como no título original é isso mesmo, um romance que depois de relatar uma operação secreta que mistura ambições políticas individuais com interesses privados, tem danos colaterais que importa esconder ao comum cidadão, pisando para este objetivo todos os princípios que a democracia tem por critério pautar-se.
Sendo uma obra recente e passada na atualidade, o romance denuncia muito da hipocrisia socioeconómica presente e não se coíbe em criticar o que foram os efeitos desastrosos das opções estratégicas para o Iraque no tempo de Blair e toda a panóplia de interesses e de preconceitos religiosos hipócritas que minam presentemente os ultraconservadores dos Estados Unidos, isto numa história cujo enredo está muito distante destas matérias e tem como base uma perseguição entre quem quer mostrar a verdade e o poder que a pretende esconder.
Como normalmente acontece com romances de espetro mais popular e suspense, a escrita é fácil, mas escorreita e realista e como tal recorre à gíria banal sem recursos estilísticos muito elaborados, mesmo assim gostei da obra e recomendo a qualquer leitor, inclusive aqueles que têm receio de livros eruditos e complexos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

"A crónica de Travnik" de Ivo Andric



"A crónica de Travnik" do escritor Ivo Andric - Nobel de 1961, um croata da Bósnia que se sentia jugoslavo e passou a escrever em servocroata - que acabei de ler, é de facto mais uma crónica do que uma trama de relações entre protagonistas e auxiliada por entidades secundárias comum a um romance tradicional. O livro mostra pelos olhos do cônsul francês - uma personalidade que vibrou em criança com a monarquia absolutista e depois se converteu em jovem às ideias liberais napoleónicas e que busca o caminho certo que não encontra, o que o torna inseguro - a forma de ver a vida de Travnik no período de abertura e fecho do consulado nesta cidade bósnia durante as guerras napoleónicas para defender os interesses do império que representava. 
O livro além de ser uma obra com uma escrita muito agradável, é um desfile de personagens que retratam a miscelânea de católicos, ortodoxos, judeus e muçulmanos sob o domínio turco numa pequena cidade onde confluem desconfianças entre religiões, choques de cultura entre ocidente e o oriente e ainda onde através da diplomacia se jogo interesses entre impérios que se atropelam para conquistar mais poder, sem esquecer as visões da realidade fruto da juventude, maturidade e velhice.
Nestes tempos conturbados e de choque de mentalidades, decorreram períodos ternurentos, outros deprimentes e inclusive do horror típico de quando o poder toma a rua com culturas que se odeiam ou de quando o terror é usado como uma arma. Gostei do livro e comecei a compreender o que foi de facto o rastilho da ainda recente guerra dos Balcãs. Mais do que uma lição de história, este romance é uma mostra do choque de gerações, de mentalidades e de culturas e por isso ajuda a compreender melhor de modo diplomático os conflitos do mundo em que vivemos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"Admirável mundo novo" de Aldous Huxley


"Admirável mundo novo" de Aldous Huxley é um romance sobre um futuro distópico onde as ciências são colocadas não ao serviço da verdade, mas para cimentar uma sociedade estável onde cada indivíduo é sujeito a um condicionamento psicológico desde a sua gestação em cadeia extra-uterina, para não ser afetada por relações sentimentais de laços familiares, bem como através de uma produção programada biofisico-quimicamente que gera seres predestinados a preencher a estrutura da sociedade conformes às necessidade coletivas e adaptados à classe a que se destinam ou tarefas a realizar e ainda mentalmente controlados e educados para se sentirem realizados nesse posto, servindo-lhes ainda alucinógenos sem ressaca para fugirem a qualquer perturbação psicológica, além de uma desinibição sexual para não permitir elos amorosos consistentes, criam-se assim seres acomodados à sua situação sem liberdade de a questionar, embora felizes na sua demência.
Num prefácio de 1946, na celebração da edição dos 20 anos da sua obra, Aldous Huxley escreve os elementos de referência que enquadram o romance: "Um estado totalitário verdadeiramente eficiente será aquele em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de diretores terá o controlo de uma população de escravos que será inútil constranger, porque todos terão amor a sua servidão."
Texto que penso ser claro para descrever o conteúdo  deste Admirável Mundo Novo, em que Deus foi substituído pela criador do trabalho em cadeia Ford e onde Shakespeare (de onde é tirado o nome do romance) é desconhecido por ser pernicioso a estas crianças felizes na sua ignorância, contudo no planeta preservam-se relíquias do passado em reservas onde a realidade também não era perfeita, onde um Selvagem tem como referência cultural principal o autor de Hamlet, mas o contacto viabilizado entre estes dois mundos também não foi positivo. Uma obra-prima intemporal e um clássico no seu género literário.

domingo, 2 de agosto de 2015

"A cidade dos prodígios" de Eduardo Mendoza

Disponível aqui
"A cidade dos prodígios" foi o primeiro livro que li do barcelonês Eduardo Mendoza, onde o escritor cria uma personagem que de miserável fugido da Catalunha rural para a capital da província se torna numa das personagens mais ricas e importantes da cidade e de Espanha, servindo a narração desta ascensão e decadência para contar a história de Barcelona sobretudo entre a decisão da organização da Exposição Universal de 1888 e a inauguração da de 1929 nesta mesma terra.
Assim, misturando personagens reais, desde políticos do país e da cidade, bem como artistas locais e mundiais, de Gaudi a Mata Hari, usando factos históricos, alterando outros e ficcionando muitos, incluindo fantásticos hagiográficos, neste romance Barcelona é de facto a personagem principal do livro e esta serve de suporte ao protagonista que vai de propagandista ignorante e miserável da causa anárquica, passando a pequeno delinquente e vai até chefe de gangue, criminoso a capitalista influente que mesmo nos períodos difíceis nos é simpático.
Com uma série de personagens ficcionadas com interessantes retratos psicológicos e uma análise crítica e irónica de acontecimentos históricos Eduardo Mendoza constrói um excelente livro e uma magnífica homenagem e retrato físico de Barcelona. Gostei muito e recomendo.

domingo, 26 de julho de 2015

"Anna Karénina" de Lev Tolstoi

O romance "Anna Karénina" é muito mais que a mera narração da paixão avassaladora desta exemplar senhora de sociedade por Vronski e do seu adultério assumido: cuja relação egoísta evolui para a desilusão, rejeição social e acaba em tragédia; pois é também o relato paralelo da história contrastante do amor de início inseguro de Kontantin Levin por Kitty, que pelo altruismo prossegue num crescendo para a felicidade integração social e serve a Tolstoi de contrapeso moral.
Entre estes dois casos de igual importância no romance, há um conjunto de personagens, alguns constituindo casais, que unem os protagonistas e servem para: denunciar a hipocrisia da vida em sociedade; a desigualdade de tratamento na infidelidade do homem e da mulher na nobreza; as virtudes da maternidade num casamento; o possível aproveitamento dos valores cristãos para o desrespeito humano; a futilidade da vida urbana face à utilidade da atividade rural; os vícios de domínio das classes sociais mais poderosas face às dificuldades do povo; as questões filosóficas da existência de Deus, da crença contra a razão e dos valores éticos e morais e discute-se ainda as potencialidades e condicionantes do desenvolvimento económico e cultural da Rússia em comparação com as outras potências da Europa. O livro é um tratado profundo de muitos problemas e desonestidades que minam as relações humanas e um louvor ao amor altruísta e um crítica à paixão egoísta. Um grande romance que é uma obra-prima e muito maior que uma mera estória romântica.
Nesta edição há posfácio de Nabokov, este reabre o dilema de qual é o maior escritor: Tolstoi ou Dostoiévski; este russo não tem dúvida em colocar o autor de Anna Karénina por cima, eu pessoalmente, além de outros aspetos em que discordo do que ele escreve, mantenho que não consigo decidir quem é de facto o maior de entre estes dois grandes vultos da literatura russa.

domingo, 12 de julho de 2015

"Os Demónios" de Fiódor Dostoievski


"Os Demónios" será outro livro de Fiódor Doistoievski  que me vai deixar marcas profundas na minha carreira de leitor e apesar de parecer menos citado que outras obras deste escritor russo, como: "O Idiota" e o "Os Irmãos Karamazov" já dissertados neste blogue, a verdade é que pelo tema e estrutura, despertou-me um interesse não inferior aos acima citados e ainda levantou-me questões sobre o mundo atual.
Depois do romance apresentar algumas personalidades de uma cidade provincial russa, dois revolucionários clandestinos voltam a esta terra natal com a missão de ali criar um núcleo de agitadores, fundado numa estratégia de luta nacional e internacional. Um destes, sem qualquer escrúpulo, aproveita a situação para além de agitar a vida social local e destruir o governo provincial, implementar ainda com uma estratégia despudorada para cimentar o núcleo clandestino em desrespeito à ética, vingar-se em alguns elementos do grupo por questões pessoais e até servir-se de filosofias individuais em proveito próprio e dos ideais políticos que propõem.
Dostoievski, como normal na sua obra, cria personagens complexas, psicologicamente extremadas e coloca-as intervenientes numa sociedade onde se denunciam os seus defeitos e a forma de pensar e agir russa. Reúne assim figuras contraditórias em situações de debate e choque de ideias com uma elevadíssima carga dramática características de representações teatrais e desencadeia uma série frenética de acontecimentos que acaba em catástrofe.
Alguns debates são profundamente filosóficos: a importância de um suicídio racional de um ateu para demonstrar a inexistência de Deus, este, em paralelo, levanta questões éticas ao servir de aproveitamento para fins de guerrilha. Outros desenvolvimentos mostram o choque de consciência moral entre a pureza das ideias, os meios para as implantar e a manipulação despudorada de pessoas aderentes à causa para se alcançar o objetivo pessoal em detrimento do político e social. Um livro que em paralelo leva a refletir sobre a confusão que reina na Europa atual

quarta-feira, 1 de julho de 2015

"Arquipélago" de Joel Neto


"Arquipélago" de Joel Neto despertou-me a curiosidade por ser uma obra recente, escrita por um Açoriano, tratar-se de um romance ambientado a esta região insular que habito e por acompanhar parte da atividade cronística e interventiva do seu autor.
Considero este romance uma obra diferente do habitual que se publica não apenas nestas ilhas, como inclusive ao nível nacional, foge ao estilo preponderante do que vai saindo no panorama literário de Portugal. Gosto de originalidade em detrimento da onda avassaladora que se submete às tendências de uma época e tende a homogeneizar tudo o que entretanto vai saindo num dado período e neste aspeto "Arquipélago" é de facto diferente e segue um estilo próprio.
"Arquipélago" é um romance que em simultâneo conjuga divulgação da cultura e beleza Açoriana, a história e os mitos que pululam por estas ilhas (com destaque na Terceira), o amor, a magia, o crime, a investigação, a denúncia de problemas sociais e inclusive inclui casos e situações reais bem como especulações recentes propagadas na comunicação social insular sobre determinados vestígios patrimoniais existentes nos Açores. Levantando questões que provável e intencionalmente nem sempre são respondidas no livro.
Penso que Joel Neto poderia ter caracterizado melhor o falar terceirense, mesmo assim, o estilo de vida desta ilha está magnificamente caracterizado. A obra tem um desenrolar cronológico algo incomum, começa num momento perto do último quartel do século passado, estende-se até ao presente ano, penetra no próximo e depois tem um epílogo a descrever os dados mais marcantes dos protagonistas nas próximas décadas e pelo meio saltita por vezes entre estes momentos e outros mais recuados. Literariamente sinto que não atinge o nível de duas das minhas referências da literatura Açoriana: "Mau tempo no Canal" de Vitorino Nemésio e "Gente Feliz com Lágrimas" de João de Melo, mesmo assim, penso que pode tornar-se num dos romances que melhor caracterizam estas ilhas e as suas gentes. Valeu a pena esta leitura... e recomendo sobretudo a quem pretender conhecer as tradições mais Açorianas e as gentes destas ilhas.