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quarta-feira, 15 de julho de 2020

"A desvastação do Silêncio" de João Reis

Excerto
"Era preciso, isso sim, comer, apercebi-me de que me doía a cabeça por conta da fome e o dia não era já tão agradável como fora de manhã cedo, o médico prosseguiu o discurso e, nesse momento, desejei morrer, jamais ter existido, mas, verdade seja dita, se queria assim tanto morrer, talvez não fosse preciso ir comer..."

Li o pequeno livro "A devastação do silêncio" do ainda jovem escritor português João Reis, é também uma obra ilustrada pelo artista luso Lord Mantraste, cujo traço dos vários desenhos interiores é o mesmo do da capa.
No fim da 1.ª Grande Guerra o narrador encontra-se com um amigo num café antes de uma viagem de comboio, este pede-lhe que conte a sua experiência de gravação de voz para uma equipa de cientistas germânicos, só que este opta por falar de como capitão do Exército Expedicionário Português foi capturado pelos alemãs, enviado para um campo de prisioneiros, roubado e por não possuir comprovativo de ser oficial foi obrigado a ficar com os soldados, portugueses e de outras nacionalidades, onde a vida era marcada pela escassez de alimentos, parasitas, trabalhos forçados e jogos de cartas. Desenvolveu então amizade com o médico do campo do qual ouve as suas confidências dos seus problemas familiares e que pretende apresentá-lo a um grupo que estuda pronúncias através de gravações. O protagonista foi constantemente torturado pela fome e a ânsia do silêncio e todos insistem em conversar, desabafar e as autoridades  usam a falta de comida como arma de poder.
O desenvolvimento da vida no campo é pontualmente intercalado pela insistência do companheiro interessado na gravação e pelas cenas no café, mas narrativa centra-se na vida de prisioneiro e as peripécias por que o narrador então passou.
O texto é muito contemporâneo e trabalhado com um persistente humor sarcástico, por vezes com sequências absurdas que evidenciam o vazio da guerra, o ilógico de povos que partilham sentimentos e a civilização estarem em confronto e levarem o inimigo a situações humilhantes e desumanas apenas pelo contexto do confronto bélico cujos motivos nunca parecem justificados.
O romance fez-me lembrar o impressionante Catch-22, por também pôr a nu o absurdo da guerra e deixar muito mais questões do que soluções e em suspenso o assunto lançado praticamente no início da narrativa.
A leitura não cansa por a obra ser pouco extensa (130 páginas), ter momentos de suspense, o permanentemente humor mordaz e as ilustrações ajudarem a visualizar alguns episódios.
Gostei, é uma obra arrojada para apreciadores que degustam a arte de narrar de forma original e a escrita criativa, não é uma simples estória linear de estilo mais tradicional.

2 comentários:

Pedrita disse...

fiquei curiosa. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Não sei se leu Catch-22, no Brasil Ardil-22 de Heller, eu quando li este último fez-me pensar no outro, embora numa versão portuguesa, mas como é ilustrado e pequeno não cansa, sei que o autor tem outras obras arrojadas e sarcásticas, fiquei curioso para as ler.