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segunda-feira, 20 de abril de 2020

"Ruído Branco" de Don DeLillo

Excertos
"Durante uma crise, os facto verdadeiros são tudo aquilo que os outros dizem. Nenhum conhecimento é tão inseguro como o nosso."

"À medida que a fé desaparece deste mundo, as pessoas cada vez acham mais necessário haver alguém que acredite."

Talvez para exorcizar a tensão do confinamento em virtude da pandemia optei por ler um romance onde sabia haver um acidente que obrigava a um recolhimento, neste caso temporário: "Ruído Branco" do norteamericano Don DeLillo. Obra vencedora do National Book Award de 1985.
O livro está dividido em três partes, a primeira evidencia a futilidade da vida moderna nos EUA contemporâneo através do dia-a-dia do protagonista Jack, casado 4 vezes, e do seu agregado familiar com filhos de vários pais e mães mas por norma bons observadores do mal da sociedade. Como professor universitário criou um departamento que estuda Hitler e convive com um professor da área da cultura popular moderna nos EUA que serve de comparação de duas sociedades disfuncionais. Na segunda parte há uma fuga de um gás tóxico a que Jack pode ter ficado exposto e obriga a um recolhimento oficial onde a informação e desinformação estão em choque. Na terceira o Jack com a mulher e o amigo discute os medos da morte e uma medicação para o combates deste. Nos diálogos fala-se da importância deste para valorizar a vida e os modos como a ciência e a sociedade tentam ultrapassar este receio, o que irá desembocar num final com uma situação extraordinária e imprevista.
Apesar dos temas sérios do romance, a escrita de tom sardónico enche a narrativa de humor transversal a todas as situações e o tratamento de choque a algumas questões levantadas com personagens cheias de autossabedoria e referências à cultura pop sujeita aos mídia retiram qualquer carga depressiva à leitura da obra, pondo-nos a rir em momentos duros e tensos e onde final assombroso agita as consciências, levanta a moral e mexe com pruridos do leitor. Gostei mesmo muito e percebi a razão do prémio atribuído, embora  não seja um livro de mero entretenimento.

5 comentários:

Joaquim Ramos disse...

Boa tarde Carlos, não conhecia o livro, o autor vagamente, mas já anotei.
Entretanto queria-lhe fazer uma pergunta, dada a sua condição de ilhéu e amante e conhecedor de literatura açoriana. Nemésio à parte (para mim a grande figura das letras açorianas), seria possível ao Carlos estabelecer em termos de patamar, entre João de Melo (autor do consagrado Gente Feliz com Lágrimas) e Joel Neto (também com grandes obras como Arquipélago e Meridiano 28), não obstante os 25 anos que os separam, qual deles representa melhor o pensar, o sentimento e a existência do povo dos Açores e também qual deles tem maior projeção aí.
Um abraço e obrigado.

Pedrita disse...

vc procura então algo que faça pensar. tem gente q em momentos de crise gosta de fugir totalmente do tema. eu não gosto de comédias em épocas difíceis pq acho q sempre estão debochando da gente. e me irritam personagens felizes e momentos difíceis. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Faria disse...

Pedrita
Este Ruído Branco não tem nada, mesmo nada de comédia, tem a estratégia de usar o tom sardónico para falar de coisas muito preocupantes: o medo da morte e a futilidade da vida moderna. É uma obra que demonstra genialidade de um escritor em falar de assuntos deprimentes sem deprimir, antes pelo contrário dando prazer e boa disposição.

Carlos Faria disse...

Joaquim Ramos

Os Açores nunca tiveram um pensar único, houve sempre vários formas sociais distintas que geram formas de pensar diferentes. São Miguel de onde saiu João de Melo é uma ilha de sociedade estratificada e conservadora, com uma elite de grandes proprietário e industriais acolitados pelo clero que dominavam e uma grande maioria da população pobre, analfabeta e é duro mas alguns eram mesmo escravizados e assim foi até ao 25 de Abril, este é o retrato dado pelo escritor da ilha que citou.
Joel Neto literariamente talvez seja mais pobre, mas é das "ilhas de baixo" a mesma de Vitorino. Estas ilhas havia intercâmbio entre classes e não se distinguiam tanto pelo poderio económico, nem havia guetos profissionais. A Terceira por ter sido capital no tempo da monarquia tinha um estrato de nobres mais forte, nomes sonantes mas mesmo assim não havia distanciamento de classe. Isto criou uma população que nas generalidade nestas ilhas era mais culta, alegre e com suficientes rendimentos para sobreviver dignamente, claro que havia pobres, mas poucos e conviviam com os remediados e ricos, este é o retrato de Neto e Nemésio.
Apesar da lei impor que a navegação atracasse em Angra os ventos empurravam os navios para a Horta, pelo que era aqui que eles paravam primeiro e havia o intercâmbio de uma população pequena com muitos povos, daí o cosmopolitismo e não conservadorismo que impressionou Nemésio e expôs no Mau tempo no canal.
O Pico de mau solo gerou uma particularidade económica difícil de ultrapassar e exposta por Dias de Melo nos seus romances fortemente enraizados na realidade sobre a baleação.
Assim terá de ver o contexto para perceber porque uns transpiram recalcamento e injustiça social nos 2 Melos e alegria em Nemésio e Neto.