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sexta-feira, 28 de junho de 2019

"O Pregado" de Günter Grass

Excertos
"A esperança desatravanca a História. A esperança  desembaraça, dos estorvos de época, a linha que chamamos progresso. E sobrevive, porque é a única realidade."
"...a grandiosa e importante verdade que é o facto de nenhum ordenamento político poder ser realmente bom se não estiver ao serviço do bem da generalidade das pessoas."

Numa promoção recente para autores com prémio Nobel comprei um conjunto de livros: uns para descobrir escritores, outros para revisitá-los e inclusive dois para ver se me reconciliava com certos laureados após uma primeira leitura que não me cativou. O alemão Günter Grass estava neste último pacote, depois de ler  há uns anos atrás "A Ratazana" que foi uma tortura para mim. Agora, neste "O Pregado", já antes traduzido como "O Linguado", fiquei ciente da bagagem cultural desta obra que mostra a sabedoria do escritor.
O Pregado não é um romance fácil de se ler, quer pela narrativa (saltitante num tempo longo e articulada entre factos e realismo mágico) quer pela dimensão (grande número de personagens, páginas, uma exposição enciclopédica de referências da história de um Povo e do evoluir da sua gastronomia) e pelos pormenores da província da Pomerânia e sua capital Gdansk, hoje integradas na Polónia, onde Günter Grass nasceu quando pertencentes à Alemanha, tendo a cidade então o nome de Danzig, uma importante urbe da Prússia sempre ambicionada por germânicos e eslavos.
A trama é difícil resumir, a atual esposa do protagonista está grávida e aquele encarna a memória da história dos homens da Pomerânia. Assim, lembra-se das mulheres que teve em diferentes instante-tempos desde o Neolítico até à greve nos estaleiros de Gdansk em 1970, irá então contar-lhe as biografias de uma dezenas dessas esposas ao longo de milhares de anos em nove capítulos que correspondem aos meses da gravidez de Insebill e assumindo que toda a sua história foi fruto do aconselhamento de um pregado falante, pescado nesse início remoto quando este se comprometeu a orientá-lo nas várias épocas sempre que o pedisse se o devolvesse ao mar Báltico. Em paralelo, o pregado voltou a ser pescado por mulheres feministas no século XX que o levam a julgamento por ter cultivado o machismo nas recomendações que deu ao homem da Pomerânia no relacionamento com as esposas.
Em cada capítulo a narrativa centra-se numa época distinta, embora misture memórias do passado e conhecimentos do futuro que fornecem provas para o julgamento. Através dos diferentes tempos descobre-se que a sociedade começou por ser matriarcal, onde as mulheres teriam 3 seios de forma a assegurar as suas funções femininas e acalmar os homens, mas depois com a agricultura, caça, pesca e intercâmbio das civilizações e globalização, além dos conselhos do pregado, a comunidade virou a machista, bélica e com a escravatura das mulheres que se revoltam na época moderna.
A linha da história é feita pela evolução gastronómica liderada pelas mulheres, desde os tempos recoletores. Assistimos à introdução do fogo na arte de cozinhar os alimentos, à incorporação dos cereais, legumes, aromáticas e diferentes animais e técnicas, a revolução que resultou dos Portugueses terem difundido a preços baixos as especiarias pelo norte da Europa (Vasco da Gama é uma das personagens que vê o fruto da sua descoberta numa Calcutá de hoje miserável onde vive Madre Teresa), a importância da introdução da batata, os combates dos povos germânicos, eslavos, nórdicos para conquistar este território hoje polaco, montando assim o essencial da história de Gdansk e seus arredores até à conclusão do julgamento e parto da atual mulher num momento onde o papel feminino aspira a ocupar o lugar a que tem direito e quer condenar o machismo no passado.
Günter Grass, alicerçado num conto fantástico tradicional, na história real da zona da Pomerânia e na evolução da gastronomia, cria uma trama que mistura factos da história, personagens verdadeiras e ficcionadas, reflexões sobre erros da humanidade que se repetem ainda no presente, num texto ora poético, ora irónico, por vezes crítico, noutros é um relato jornalístico e nalguns momentos é ordinário e grosseiro erótico e noutros está cheio de ternura e denúncia dos crimes da igreja, dos nacionalismos, do poder político e das ideologias.
Um grande romance cuja complexidade e dimensão por vezes dificulta a leitura e compreensão de pormenores, pode até ser fastidioso e malicioso mas que também tem momentos cativantes e a destilar um saber enciclopédico que ensina o leitor. Gostei, mas não é uma obra acessível a todos.

5 comentários:

Pedrita disse...

eu achei que no brasil tinha nome diferente. aqui chama o linguado. eu li passo de caranguejo . fiquei curiosa por esse q leu. beijos, pedrita
https://mataharie007.blogspot.com/search?q=grass

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Um dos maiores textos (em números de palavras) que já vi por aqui rs.

Carlos Faria disse...

Pedrita
Cá as edições antigas também são O Linguado, mas nesta tradução mais recente o tradutor explica que cientificamente as características morfológicas descritas pelo escritor são de um peixe da mesma família, mas de outra espécie, o pregado e por isso adotou a alteração do nome. É uma obra extensa e complexa.

Kelly
Pois não foi fácil fazer uma síntese tal a densidade de aspetos abordados na obra. Também já houve romances que tiveram direito a mais do que um texto por estarem divididos em vários volumes como aconteceu com Guerra e Paz, Em busca do tempo perdido e O Quarteto de Alexandria, embora este seja mais uma tetralogia do que um romance único.

Joaquim Ramos disse...

Excelente descrição do livro e parece que fez as pazes com o autor.

Carlos Faria disse...

Passei a reconhecer uma bagagem cultural muito grande no autor, este livro não me deprimiu, ao contrário de A Ratazana e aprendi muito sobre a Pomerânia, o que foi mérito do escritor. Talvez volte a outros romances dele.