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sexta-feira, 1 de março de 2019

"Luz em agosto" de William Faulkner


Excerto
"A memória acredita antes de o conhecimento recordar. Acredita por mais tempo do que recorda, por mais tempo até do que o conhecimento se interroga. Sabe, recorda, acredita num corredor num prédio de tijolo vermelho, grande e comprido, decrépito, frio e povoado de ecos..."

"Lembro-me de uma vez lhe ter dito que há um preço a pagar por se ser bom tal como o há por se ser mau; há sempre um custo. E são os bons que não podem recusar-se a pagar a fatura, quando ela chega."

Voltei pela segunda vez a William Faulkner, escritor norteamericano laureado com o Nobel da literatura, com este "Luz em Agosto" que conta a vida várias personagens de terras diferentes do sudeste dos Estados Unidos que se cruzam na cidade de Jefferson (fictícia), estado do Mississipi, num momento fulcral e de grande tensão para as mesmas, um local marcada pelo ódio racial, o radicalismo religioso conservador e as feridas resultantes da derrota do sul esclavagista perante o norte abolicionista e liberal.
Lena, uma adolescente, grávida e solteira parte do Alabama em busca do pai do seu filho chegando a Jefferson num dia de um incêndio de uma casa debruçada sobre a cidade. Joe é um irresponsável pouco inteligente que parte secretamente da sua relação clandestina e vai trabalhar para uma serração em Jefferson e é acolhido pelo colega de trabalho Natal (Christmas). Este por sua vez é um órfão fugido de uma família adotiva ultraconservadora que não consegue suportar a sua suspeita de ter sangue negro, vive numa cabana de uma solteirona descendente de uma família do norte, abolicionista, com um passado marcante, dona duma moradia sobranceira à cidade, ambos estabelecem uma relação amorosa secreta que acaba em crime e incêndio. Byron, de meia-idade, é um pacato trabalhador da mesma serração que acolhe a grávida, apercebe-se da sua situação de mãe solteira,algo não aceitável na comunidade, apercebe-se de quem é o pai e intimamente apaixona-se. Hightower é um ex-pregador metodista cuja admiração pelo avô morto na guerra civil é o cerne da sua divulgação da apostólica em detrimento dos temas da fé o que  associado a um escândalo com a sua mulher o leva à excomunhão, só que se torna no elo entre toda esta gente, apesar do seu conflito entre fé, dever, memória e descrença. Tudo isto atinge o climax no momento do assassínio da solteirona com a fuga de Natal, a perseguição, o parto, o encontro da parturiente com o pai e a sua irresponsabilidade numa cidade onde ódio racial e religião impedem o bom-senso.
Um retrato da América profunda, complexada e disfuncional no período entre as duas grandes guerras, cheia de feridas históricas.
Faulkner tem uma escrita própria, com um estilo literário complexo denominado fluxo de consciência que marcou o modernismo no após a 1.ª grande guerra, onde sequencialmente, temos narrativa da estória, pensamentos das personagens, reflexões do autor, diálogos, saltos no tempo e comentários numa cadeia de parágrafos longos que exigem concentração por na mesma frase sujeitos, predicados e factos estarem cruzados subtilmente ou muito distantes, parecendo que houve um lapso gramatical mas depois o leitor compreende a lógica da sintaxe.
Apesar de não ser sempre fácil, a escrita de Faulkner está cheia de beleza com metáforas originais, reflexões e personagens complexos e cheios de conflitos internos, mas obriga a um esforço do leitor por autor dispersar momentos e focos distintos no encadeado da narrativa que só muito mais tarde se cruzam, se completam e se tornam compreensíveis como a montagem de um quebra-cabeças.
Poucas personagens na literatura são tão densas e profundas como algumas das de Faulkner, Natal é uma do expoente máximo desta criatividade. Chega a ser suicida ao completar-se como um branco racista, orgulhoso e supremacista junto com a sua luta na vontade de alimentar a suspeita do seu sangue negro que o revolta e o obriga a vingar-se das humilhações de raça inferiorizada e a lutar pelo reconhecimento do direito à sua liberdade e igual dignidade. Outras personagens neste romance atingem níveis quase tão elevados como o dele neste conflito interno que os divide, une e os completa.
Confesso, gosto muito desta luta dentro da beleza do texto que está cheio de imagens parciais refletidas como por uma bola de espelhos, onde os retratos montados por Faulkner compõem um quadro final excelentemente estruturado com uma mirídade de peças que pareciam desencaixadas, mesmo que às vezes me irrite com as cambalhotas e desvios que sou forçado a dar ao longo da narrativa.
Um grande escritor, um génio e um expoente máximo da literatura que ao ser galardoado com o Nobel, reforça a credibilidade deste prémio e o honra por o ter reconhecido e premiado. 

4 comentários:

Pedrita disse...

é o meu preferido do faulkner, o abandono dessa garoto. q livro triste. excelente texto. beijos, pedrita
comentei sobre o livro aqui https://mataharie007.blogspot.com/2012/02/luz-em-agosto.html

ematejoca disse...

Li vários romances do escritor americano, mas este ainda não li. A sua excelente análise das personagens abriu-me o apetite.

Continuação de boas leituras e um ótimo fim-de-semana 🌻

Carlos Faria disse...

Pedrita
Penso que todos os livros de Faulkner narram situações tristes, mas contadas com uma beleza única enquanto divulga problemas da sociedade do sudoeste americano para com subtileza levar a refletir sob as amarras da região que tanta dor podem provocar.

Ematejoca
Nesse caso já conhece o género e este é muito bom no estilo de Faulkner e é mais fácil que O som e a fúria.

Bárbara Ferreira disse...

Talvez venha a ser a minha próxima leitura do autor. Como sabe, gostei muito dos dois que já li. Obrigada por esta opinião.