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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

"Três Tristes Tigres" de Guillermo Cabrera Infante


Há livros que são uma biblioteca e o romance "Três Tristes Tigres" de Guillermo Cabrera Infante é de facto uma louca adição de estórias, textos de géneros distintos, miscelânea de línguas, charadas de palavras, experiências de escrita e dissecação de vocábulos e pronúncias, mecanismos de destravamento ou travamento linguístico e tal como explicado inicialmente, o bom seria ler em voz alta para melhor entender toda a riqueza fonética ali contida. Tudo isto tem como pano de fundo a vida noctívaga de Havana no tempo de Batista pouco antes da revolução cubana sem qualquer preocupação ou censura moral.
A obra é narrada essencialmente a partir de três personagens maiores: um fotógrafo, um ator radiofónico e um escritor, com a ensombração de um poeta prestidigitador das palavras e de uma cantora cuja a voz e o corpo formariam um monumento gigante, devidamente secundado por toda a panóplia de personalidades que animam a noite boémia: músicos, coristas, prostitutas, homossexuais pessoal de bares, cabarés e restaurantes numa promiscuidade cujas combinações são impossíveis de quantificar, a que se associa de forma intercalada uma voz singular perante o seu psiquiátrica.
Os Três Tristes Tigres são uma enciclopédia da cultura ocidental: tanto musical erudita e popular latinoamericana; literária com citações e deformações e reescritas dos mais diversos escritores e provérbios universais e do saber dos filósofos, havendo uma parte onde se destacam autores cubanos e ainda ao nível do cinema norteamericano sobretudo das décadas 1930/40 e 50, todavia a obra não tem uma linha continuada da estória.
Após uma apresentação dos debutantes que serão reexpostos depois no livro que poderemos redescobrir a quem correspondem, acompanharemos a vertiginosa vida de um fotógrafo encantado com uma cantora, assistiremos períodos de engates entre o ator radiofónico na companhia dos seus amigos escritores e músicos, como veremos em imitações de escritores cubanos várias versões em torno da morte de Trotsky, para passar por um período louco de palíndromes, jogos numéricos, dissecações e transformações de um poeta cuja "deficiência" do cérebro descoberta em necropsia justifica a causa da genialidade de deformação das palavras e da linguagem, para se avançar para um dia louco de reflexões existenciais que se prolonga por numerosas páginas até um epílogo que mais não é que outro trabalho de escrita.
Um livro único do mesmo ano de "Cem anos de solidão", que por vezes com tanto exercícios de escrita pode cansar, noutros divertir o leitor, mas sobretudo é um trabalho que prova que já tudo parece ter sido inventado antes de Saramago, Llosa e outros revolucionários da escrita e da loucura narrativa terem transformado a literatura contemporânea.
Apesar de tudo, para quem não se deixa entusiasmar por estes ensaios de escrita, Três Tristes Tigres pode ser uma obra fastidiosa, ininteligível e desesperante, mas é uma obra-prima para quem gosta mesmo de literatura como arte de saber trabalhar as línguas, as letras, a sintaxe e os sons que a escrita tentam transpor para o papel e sendo um castelhano, suponho que grande parte da dinâmica linguística pode ser bem aproveitada pelo tradutor que seguramente se viu perante um trabalho hercúleo para colocar tal monumento em Português.

2 comentários:

Carlos Faria disse...

Um livro que vale pelas experiências de escrita e de sonoridades, já que a estória serve apenas de apoio a este objetivo.

Pedrita disse...

obrigada. anotado. falei de literatura no meu blog.