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sábado, 30 de maio de 2020

"O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena

Excerto
"...Disseste-me também que eu era um deus. E eu sinto que sou. Ou sinto que estou sendo. E é uma coisa insuportável."

Acabei de ler a novela "O Físico Prodigioso" do português Jorge de Sena, obra inicialmente integrada na coletânea de contos do autor "Antigas e Novas Andanças do Demónio", mas que depois da queda da ditadura ficou com o seu texto definitivo, a ter vida própria e foi publicada autonomamente por vontade do escritor.
Uma novela que vai buscar as suas raízes em dois mitos antigos expostos em contos portugueses da idade média que o autor integra num só, numa narrativa do género fantástico, mágico e gótico.
Um jovem inocente e de beleza impressionante desperta a paixão no Demónio que lhe permite poderes fantástico de físico (mago/médico da idade média). Aquele ao banhar-se num lago é descoberto por três donzelas que o cativam para a sua senhoria, uma viúva retida no seu castelo e a definhar de uma doença que se diz apenas ser curada por um jovem belo e virgem. Aceite o desafio irá então desenrolar-se uma evolução orgíaca, a descoberta de um passado sangrento da castelã e momentos de bruxaria que desemboca num tribunal coletivo religioso com juízes (magníficas caricaturas de puritanos cheios de ruindade) que o julgará no obscurantismo da igreja com a intervenção do demónio numa luta entre o misticismo, o castigo da sujeição às tentações e a liberdade individual.
Uma narrativa onde a língua portuguesa é trabalhada com genialidade numa escrita criativa que vai da prosa à poesia com timbre medieval e textos paralelos que põem frente a frente o ocultismo da época, o erotismo e o misticimo religioso, puritano e castrador. Jorge de Sena cria uma trama que está entre um conto das mil e uma noites numa cultura cristã e um história gótica de terror e luta com a religião e o demónio, qual deles mais pernicioso ao homem e à liberdade neste contexto.
A novela, com pouco mais de 100 páginas, é seguida por uma pequena nota explicativa de Jorge de Sena sobre os mitos em causa e excertos dos dois contos medievais que serviram de inspiração a esta obra, o que permite uma compreensão mais vasta que a simples leitura da narrativa.
Uma obra diferente com insinuações eróticas tratadas na liberdade de um mundo fantástico como projeções de sonhos livres sem as inibições sociais e morais dos desejos, o que pode ferir sensibilidades, mas que me deu um enorme gozo de leitura, pela imaginação e o tratamento da língua lusa.

8 comentários:

Pedrita disse...

fiquei curiosa. não conhecia o autor. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Um dos escritores muito cultos do século XX, esteve exilado durante a ditadura sem ser próximo da URSS, tem magníficos ensaios, contos e poucas obras de ficção sendo esta a mais libertária.

Joaquim Ramos disse...

Obrigado Carlos por mais uma resenha e que talvez me sirva de embalagem para a sua leitura. Na verdade, depois de ter lido Sinais de Fogo do mesmo autor, fiquei tão bem impressionado que comprei o Físico Prodigioso e as Novas Andanças do Demónio, mas ainda não lhes toquei. Este escritor acabou por viver no Brasil onde deu aulas e na Califórnia onde também deu aulas e acabou por morrer. Depois do 25 Abril quis regressar a Portugal mas não foi convidado por nenhuma Universidade tendo ficado bastante melindrado com o país por essa razão. Portugal vivia o período conturbado pós revolucionário e provavelmente ele não era da cor política dominante de então.

Carlos Faria disse...

Não li Sinais de Fogo, mas tenho-o cá em casa, sei que é bem diferente no género e temática. O Físico Prodigioso tem afinidades com alguns contos das Novas Andanças do Demónio, onde nutri simpatia por uns mas não todos. Como obra literária esta que agora li pode parecer estranha, com todo aquele ambiente medieval, fantástico e gótico e embora a inquisição seja bem posterior, está presente no conto e é satirizada de uma forma bem mordaz. Eu gostei muito do livro, mas pode gerar sentimentos contraditórios entre os leitores, mas como pequena que é, também não daria para cansar.

Maria disse...

Olá Carlos,

Gostei muito de ler a sua recensão, fico sempre com vontade de ir logo ler o livro, mas este não tenho cá em casa.
E ainda não li todos os contos das Antigas e Novas Andanças do Demónio.
Lamentavelmente, Jorge de Sena foi sempre um incompreendido...
Neste momento ando com muito pouco tempo e concentração para leituras, mais poesia e contos curtos e net.
Sou cuidadora de minha mãe (com 97 anos) a tempo inteiro e não me sobra tempo para quase nada.

Boas leituras!
🌻

Carlos Faria disse...

Maria
Felizmente ainda arranjo tempo para ler, até porque saio pouco de casa agora precisamente para proteção de minha mãe, bem mais nova neste caso, 85 anos, mas já arriscado para ela eu expor-me e sair de casa em contacto com muita gente, felizmente apesar de certas limitações está ativa o que me dá tempo livre.
Sim, Sena não viu nem ainda tem a projeção na sociedade merecida pela qualidade da sua obra.

Maria disse...

A minha mãe era uma pessoa muito activa e adorava ler (lia Saramago, imagine) mas agora, embora não esteja acamada, está muito frágil.
Eu estou nos late sixties, quase a precisar que alguém cuidasse de mim... mas como dizia o outro : É a vida!
Esse do Zweig que o Carlos está a ler é muito bom, foi um autor que li muito na minha juventude.

Bom resto de domingo.
🌻

Carlos Faria disse...

Sim este Zweig é de memórias dele até à 2.ª grande Guerra onde mostra como era a Europa que ele viveu. Estou a adorar.
A minha mãe ainda lê, de óculos e lupa enquanto aguarda a operação às cataratas.