Páginas

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

"2084 O Fim do Mundo" de Boulalem Sansal


Excertos
"correr em direção à queda é uma inclinação muito humana."

" a vida do crente perfeito é uma continuidade ininterrupta de gestos e palavras que se repetem, sem que lhe reste qualquer espaço para sonhar, hesitar, refletir; descrer, eventualmente, crer, talvez."

"O escravo que se reconhece escravo será sempre mais livre do que o seu senhor, mesmo que este seja o rei do mundo."

Interessou-me de imediato o tema deste romance, uma visão distópica futura em resultado do aparecimento de uma idade das trevas devido à tomada do mundo por uma ditadura global religiosa, uma obra do argelino Boulalem Sansal. "2084 O Fim do Mundo" foi vencedor do prémio da academia francesa em 2015.
O título pretende deixar clara a relação com o romance "1984" já falado neste blogue, um novo alerta de que certos maus sinais do presente podem conduzir ao fim da liberdade e a um regime de poder absoluto, só que a via seguida para esta distopia não é a apresentada antes por Orwell, agora alicerça-se num fanatismo religioso e no risco de uma guerra santa global que termina numa nova idade das trevas e ao fim do mundo como o conhecemos agora.
Ati foi exilado para um sanatório distante por tuberculose, nesse mundo questiona o seu País, o Abistão, único no mundo, onde todos são submetidos a uma fé e às suas cláusulas sem possibilidade de duvidar devido ao risco de morte, mas há noticiadas e boatos de guerras contra infiéis inimigos que não poderiam existir num Estado global. A elite religiosa governa e vive num espaço fechado em condições muito diferentes das consideradas conformes para o Povo. Após a sua cura, no regresso encontra um arqueólogo que descobriu uma cidade de antes da conversão da humanidade e este dá-lhe a entender que a história pode ser muito diferente da narrada oficialmente. Apesar da semente da dúvida estar lançada, a sua reinserção do sistema obriga-o a seguir as regras, até que se cruza com Koa em quem encontra a mesma curiosidade e perguntas. Começa então uma nova caminhada onde vão descobrir guetos de infiéis que sobrevivem em conluio com a elite, servindo a fundamentos da luta e a interesses da classe alta, empreendem uma viagem à capital, a cidade santa, onde se cruzam com  líderes num mundo de luxo mas num conflito fraticida para conquista total do poder, conhecem alguém com nostalgia do século XX que poucos sabem ter existido, memórias de uma época com problemas mas em que havia liberdade e não apenas submissão a uma lei religiosa criada à medida dos interesses dos líderes... uma revolução está em curso e eles serão peças usadas neste xadrez de uma sociedade organizada para a submissão do Povo.
Apesar da contracapa falar da globalização do islamismo como mote da obra, não sei se por questões de segurança do escritor, a verdade é que a estória decorre no domínio de uma nova religião que não é nenhuma das grandes da Terra no presente, embora certas características indiciem qual lhe terá servido de raiz principal, veja-se a máxima "Não há outro deus senão Yölah e Abi é o seu Delegado", mas na obra é assumido que resultou do aproveitamento de oportunistas gananciosos de outra anterior com valores, podendo até argumentar-se que tal só terá ocorrido no futuro sem acusar qualquer líder religioso até hoje, mas a similitude com algumas ideologias e radicalismos do presente torna esta obra num alerta para o caminho que a humanidade pode estar a trilhar. Contudo penso que nenhuma grande religião se pode sentir isenta dos vícios perigosos apontados em 2084.
Os capítulos tem características diferentes ao longo do desenrolar da estória, o primeiro é sem dúvida mais filosófico com uma análise sobre o aproveitamento religioso como arma de submissão física do povo e da sua mente capaz de travar a liberdade de pensamento. A seguir vêm a tentativa de explicar o nascimento da nova civilização e as incoerências do seu modelo, depois a caminhada da descoberta até ao clímax, no final da ainda se levantam alguns aspetos que dão que pensar sobre as virtudes do presente que se podem irrefletidamente deitar fora.
As referência a 1984 são muitas não só no texto, mas também nalgumas situações da narrativa e citações, mas é uma obra totalmente diferente da de Orwell. Também tem alguns aspetos menos aprofundados, mas muito do seu valor está nas entrelinhas e na capacidade de nos deixarmo-nos surpreender com a imaginação de um autor que consegue falar dos perigos do fanatismo religioso, possivelmente defendendo uma sociedade agnóstica,  a partir de um país islâmico ao criar uma cultura de tal forma estilizada que não o tornou num alvo a abater pela sua liberdade de escrever um romance deste teor quando muitos outros foram vítimas de fatwas por blasfémia denunciando o mesmo que Sansal... só por isto vale a pena ler o livro, além de toda a reflexão contida no romance. Talvez isto também justifique o prémio literário alcançado e sem gerar polémicas religiosas, numa obra que é de fácil leitura e um alerta para que a humanidade abra os olhos aos sinais deste tempo.

4 comentários:

Pedrita disse...

nossa, fiquei interessada tb. ando incomodada com o crescimento do radicalismo e limitações as expressões. no brasil estamos seguindo para o mesmo caminho. aumentou demasiadamente igrejas evangélicas no país e várias pregam a intolerância aos diferentes, imigrantes. estanho religiões que pregam o desamor ao próximo que não seja da sua fé. vou procurar. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Uma distopia vinda do mundo islâmico é de facto um originalidade na literatura

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Muito interessante Carlos. Ainda não li 1984, mas quando fazê-lo vou me lembrar desse outro com certeza e que o vi aqui.

Abs
https://cafeebonslivros.home.blog

Carlos Faria disse...

Sim Kelly sou da opinião que só deve ler 2084 depois de 1984, não que não compreenda a estória, mas perde as referências e algumas citações são transposições de ideias, mas as obras são muito diferentes.