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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

"Não se pode morar nos olhos de um gato" de Ana Margarida de Carvalho

 

Citações

"E quem só dá conta de pequenos males, enche-se tanto deles que acaba por não sobejar espaço para o mal grande."

"não é Deus que dorme, nós é que o sonhamos."

Há livros que, inicialmente, me custa prosseguir a leitura "Não se pode morar nos olhos de um gato", da portuguesa Ana Margarida de Carvalho, foi uma dessas obras. Há uns anos atrás desisti mesmo na primeira meia dúzia de páginas e agora quase que repetia o ato, venci esta rejeição do começo e depois deparei-me com um romance magnífico com prémios literários plenamente justificados. Que grande e magistral livro. Tinha-me sido recomendado por este blogue  do Brasil com que troco opiniões literárias, estranhei os elogios de então dados por Pedrita, agora, rendido ao romance, dou-lhe toda a razão. Valeu a pena!

Após o fim da escravatura no Brasil, um navio negreiro clandestino naufraga na costa daquele País, os escassos sobreviventes: um capataz, um criado deste, a mulher e a filha do negreiro, um padre, um bebé negro, um jovem rejeitado, um antigo escravo e a imagem de uma santa cabocla, que os parece censurar; atingem uma pequena praia isolada que duas vezes por dia é galgada pela maré e situada sob uma falésia com uma pequena gruta que lhes permite evitar o afogamento. Entre eles, os preconceitos individuais e a necessidade de cooperação para sobreviver, a que se juntam as memórias e os remorsos de passados sombrios e não recomendáveis de cada um que perturbam o presente, mas todos terão de ultrapassar tudo isso para almejar uma escapatória da situação, enquanto novos sentimentos de ódio e paixão se desenvolvem entre eles.

No primeiro capítulo vemos a vida no navio pelos olhos da santa de pau com cabelo índio: a violência do comandante sobre a tripulação, do capataz sobre os escravos clandestinos, o comportamento dos passageiros, bem como a escassez de água e comida e reações extremas que justificam o castigo do naufrágio. Depois, temos as vivências dos náufragos na praia isolada e em cada capítulo recuamos ao passado de um dos vários sobreviventes. Assim percebemos as tensões e vícios que lhes vão na alma, frequentemente intercaladas com ditos justificativos da autora sobre as reações observadas.

Uma escrita criativa que amplia as tensões psicológicas e cujas máximas que culminam esses momentos fornecem imensas frases para sublinhar e refletir, mas que no início me custou a digerir e depois admirei. O vocabulário junta termos de uso mais comum no Brasil com outros de Portugal, evidenciando a riqueza da lusofonia que, efetivamente, fala uma grande língua comum.

Gostei mesmo deste romance, um livro muito bom, uma grande obra literária de partilha lusófona, nem sempre fácil, mas capaz de agarrar o leitor pela tensão, suspense e drama psicológico. Recomendo.

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