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quinta-feira, 15 de março de 2018

"O Jogo do Mundo" (Rayuela) de Julio Cortázar


Citações
"Para que é que serve um escritor senão para destruir a literatura?"
":o juízo que o Rei pronuncia não é o seu, mas o teu. Julgas-te a ti mesmo sem o saberes."

Eu sabia que "O jogo do mundo" do argentino Julio Cortázar, à semelhança do desenho do jogo desafiante mostrado na capa do livro que nos punha a saltar de "casa" em "casa" e surge na estória, era um romance que recomendava saltar entre capítulos, isto numa sequência de leitura diferente das narrativas habituais noutra obras, só que este livro é bem mais complexo do que os meros saltinhos do jogo da macaca (rayuela em castelhano da Argentina ou amarelinha no Brasil).
A trama está relacionada com um grupo de artistas e pensadores estrangeiros "refugiado" em Paris do final dos anos 1950, quando esta cidade ainda era considerada o centro do pensamento e das artes mundiais. Neste grupo, o intelectual Horácio Oliveira, argentino, desenvolve uma paixão por Maga, uma uruguaia de pouca culta cuja ignorância desperta reações várias no grupo que se reúne numa tertúlia de reflexão "Clube da Serpente", que discute pintura, filosofia ocidental existencialista e tibetana, jazz e, claro, literatura. Uma ocorrência grave levará não só à fuga de Maga, como à exclusão de Horácio e ao seu desnorte em busca dela, o que o leva de regresso à Argentina para junto de gente de um circo ao lado de um manicómio, aí a mulher do seu melhor amigo torna-se obsessivamente numa réplica de Maga com toda a tensão psicológica deste jogo.
Cortázar escreve não só o romance, que ocupa quase os dois primeiros terços do livro (cerca de 400 páginas), por vezes divertido, mas também tenso, como também expõe em mais do terço final uma reflexão sobre a literatura, a arte e o existencialismo, tanto através de discussões das personagens da própria trama, como também com recursos a pequenos textos de um escritor, Morelli que se cruza com os da primeira parte e cujo seu espólio é acedido por eles.
Cortázar leva-nos através de uma tabela guia, associada aos capítulos, a saltitar da narrativa romanesca para outros da última parte, isto numa sequência que parece ilógica, mas que está profundamente estruturada e onde se descobrem os escritos de Morelli que fala da desconstrução da literatura, da necessidade de o leitor não ser um mero elemento passivo da obra, bem como, se acede a pretensos excertos de outros textos de origem diversa a que se adiciona ainda reuniões do clube da serpente a refletir sobre tudo e mais alguma coisa dispensáveis à trama.
Cortázar não deixa de ensaiar escritas criativas, com estilos variados em função dos diferentes autores dos capítulos por onde se saltita e no fim fecha-se o ciclo de um romance muito mais vasto que uma simples estória.
Gostei muito, custou-me a ambientar inicialmente no que parecia caótico, mas depois vibrei e tornou-se numa experiência inesquecível, recomendo apenas a leitores não passivos que gostam de ser desafiados pelo escritor... mas dá para ler sem o saltitar no que será uma experiência muito menos intensa deste livro.

6 comentários:

Pedrita disse...

ah, aqui chama o jogo da amarelinha. amo esse livro. li como ele orientou. tb adorei. beijos, pedrita
http://mataharie007.blogspot.com.br/2008/01/o-jogo-da-amarelinha.html

Carlos Faria disse...

Não associei a ideia de a criança poder ser filha dele, mas tem lógica vendo o comportamento posterior de Maga.
Eu segui mesmo o guia de Cortázar, perdi-me uma vez e depois repus a ordem sem problema.
Há momentos delirantes na obra, sobretudo na parte que se passa na Argentina, que tem muitas subtilezas.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Olá Carlos, essa é a segunda resenha que vejo desse livro.

Não conheço o autor, mas achei muito legal a proposta inovadora. É bom perceber o grande mar de possibilidades que a literatura oferece em quanto arte e autores que saem da sua zona de conforto linear de escrita.

Abs.

Carlos Faria disse...

Sim como escritor Cortázar é um dos pilares que marcaram o reconhecimento da literatura latinoamericana.
Como forma de pensamento tem muitas das ideias dos anos de 1960 de corte com a moral e costumes onde muitas vezes os seus seguidores se perdem e essa sensação de vazio está evidente no livro.

Bárbara Ferreira disse...

Comprei este livro há cerca de um mês, em ocasião de viagem a Espanha. Se já estava curiosa (e já queria comprar o livro há que tempos), agora quero lê-lo rapidamente! Gosto da ideia de desafio - quero a experiência intensa. Obrigada, Carlos, por me inspirar sempre a sair da minha zona de conforto.

Carlos Faria disse...

Se dúvida esta obra não só nos tira da zona de conforto do leitor, como até tem o desplante de discutir essa conveniência de sair e os incómodos que isso pode gerar