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terça-feira, 11 de abril de 2017

"RESSURREIÇÃO" de Lev Tolstói


Acabei de ler "Ressurreição" do grande escritor russo Lev Tolstói, um romance onde o autor expõe a sua filosofia de vida, a sua moral e fé de forma clara, com um apelo de conversão ao bem e tendo como referência a denúncia da injustiça que domina a sociedade que cria vítimas permanentes, não reabilita, nem resgata as pessoas do mal, proclamando uma visão do cristianismo muito própria e livre das interpretações oficiais das religiões cristãs tradicionais.
Nekhliúdov é um príncipe e com um bom coração amolecido pelo bem-estar da sua classe e luta permanente entre o ideal que busca e os hábitos e vícios a que se afeiçoou que o seu estrato social apoia e tem como a norma. No seio disto apaixona-se e abusa de uma doméstica órfã que engravida, é ostracizada e levada para a prostituição, vendo-se anos mais tarde envolvida num crime e sujeita a um tribunal de júri onde, por coincidência, ele se senta como jurado.
O príncipe, acobardado entre a vergonha e o dever, além dos interesses pessoais das personagens judiciais, assiste à condenação da inocente ao desterro e trabalhos forçados. Começa então a luta do herói para resgatar e reabilitar a mulher de que se sente culpado da sua situação, enquanto abdica das suas terras por ideais de justiça e se dedica completamente à condenada, inclusive oferece-se em casamento. Todavia a burocracia judicial, os seus intervenientes e os preconceitos dificultam a reparação dos próprios erros da justiça, o que o leva a acompanhar a sua vítima para a Sibéria e a conhecer os horrores do sistema prisional e a quantidade de inocentes que a sociedade condena e se desfaz e não salva.
Tolstói faz uma crítica forte do sistema económico e social da Rússia de então, expõe com crueza o sofrimento intolerável do regime judicial e, à semelhança de Victor Hugo, denuncia a aplicação cega da Lei contra as pessoas que mantém o sistema. Propõe o modelo económico de Henry George, que tem uma perspetiva mais rural do que o proposto por Marx para o seu proletariado urbano, a que associa a necessidade de uma prática do Evangelho livre da estrutura eclesial, mas ligada a Cristo.
Ao contrário de "Guerra e Paz" e "Anna Karénina", aqui Tolstói tem uma única linha narrativa, não havendo histórias paralelas a atravessar toda obra e servem de comparação a opções de vida alternativas. Todavia Nekhliúdov conhece muitas prisioneiros, de crimes a razões políticas, cujas vidas são comunicadas para destacar os defeitos do sistema vigente. Sem dúvida um grande romance, menos consensual que os outros citados, pois em Ressurreição as ideias do escritor são ditas diretamente sem preocupação de ferir ou divergir do leitor. Tolstói quer mesmo agitar a consciência de quem lê e tirar os acomodados da sua situação de conforto. Gostei e recomendo.

6 comentários:

Pedrita disse...

não conhecia essa obra do autor. tb falei de livro no meu blog. beijos, pedrita

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Boa resenha!!! Nunca li nada do autor, mas quero ler. Achei interessante e inquietante a reflexão na ficção do que seria o Evangelho fora dos moldes eclesiásticos.

Abs.

Denise disse...

Tem tudo para conquistar :)
Ahhh, super curiosa para conhecer a sua opinião do livro que lê atualmente de Steinbeck!

Beijinhos

Carlos Faria disse...

Pedrita
Penso que é o terceiro romance mais extenso de Tolstói, depois de "Guerra e Paz" e "Anna Karénina" e o último que ele publicou em vida.

Kelly
As interpretações da Bíblia fora de diretrizes da hierarquia das religiões tem sido um braço de ferro de muitos séculos, Lutero traduziu a Bíblia precisamente com o objetivo de permitir aos cristãos de lerem e interpretarem o seu conteúdo sem o filtro da hierarquia católica, na Rússia os Ortodoxos fizeram o mesmo e era proibido a leitura livre do Livro pelos russos. Tolstói tinha uma visão da mensagem de Cristo que tem algo de teologia da libertação e a abordagem de fé intimista sem estrutura organizada de crentes, simplesmente ele era mais um ideólogo pela reforma do sistema político do que pretenso teólogo. O livro é muito bom para compreender o que ele pensava mesmo sobre a sociedade e a religião Ortodoxa.

Carlos Faria disse...

Denise
Ainda é muito cedo para entender a obra, exceto para ver já que ninguém é capaz de como Steinbeck descrever o mundo dos agricultores, juntando a beleza da arte da escrita, à dureza do mundo rural e ao sentimento de fragilidade do produtor agrícola face aos caprichos da natureza.

Kelly Oliveira Barbosa disse...

Legal Carlos, obrigada por esclarecer.