Páginas

terça-feira, 22 de julho de 2025

"Os cus de Judas" de António Lobo Antunes

 Citação

"... é a nossa própria morte que tememos na vivência da alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes."

Não sei há quanto tempo, nem onde comprei "Os cus de Judas" um dos primeiros romances deste escritor português considerado por muitos como merecedor do prémio Nobel da literatura.

Numa noite de solidão do narrador, num bar noturno em Lisboa, este, perante uma mulher que deve então ter conhecido, expõe-lhe as suas memórias de criança até à ida para a guerra em Angola como médico. Ali prestou serviço perto de dois anos junto às frentes de combate, em lugares distantes e ermos (popularmente "cus de Judas") do leste daquele território. Ficamos a conhecer o menino mimado olhado pela sua família aristocrática que via no serviço militar o modo de alguém se tornar "homem"... recém-casado parte para a guerra numa viagem de gente infeliz, vê a Luanda da década de setenta, parte para o interior onde assiste à inutilidade da guerra para manter um regime na Capital e o bem-estar de umas poucas famílias, exploradoras da população africana, indiferentes à dor, morte, desilusão e desespero daqueles jovens, vigiados pela PIDE e que se distraíam no uso de mulheres locais. Anos depois não consegue ultrapassar os traumas, o arrependimento da sua cobardia, o que o leva ao fim da sua relação matrimonial, sustenta as lembranças da filha e ao encontro com mulheres que depois traz para o seu apartamento à noite como esta após muito álcool.

Uma narrativa que terá muito de autobiográfico, talvez também, para exorcizar a revolta silenciada do autor por medo do regime em vigor em Portugal durante a guerra colonial e publicado pouco a seguir à época revolucionária de desforra do passado. Um texto com muitas metáforas sucessivas com longos parágrafos e a uma única voz, já que as personagens brotam do testemunhado do narrador. As descrições possuem numerosas referências a grandes obras e artistas do mundo da pintura, da literatura, da música, etc., mas sem citações, apenas referências, comparações.

Apesar de ser um obra de sofrimento, com momentos muito duros de violência psicológica e humana, não existem relatos de batalhas, tudo se passa na retaguarda das frentes de combate nos cus de Judas, onde o médico está a receber e a tentar salvar as vítimas físicas e os derrotados psicologicamente por tudo o que ali se assiste e ele socorre.

Um pequeno grande livro de guerra, duro e onde se mostram as feridas que ficam na alma depois das batalhas por muitos e muitos anos.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

"As memórias de Sherlock Holmes" de Arthur Conan Doyle

 

Pela primeira vez li contos protagonizados por este famoso detetive da literatura policial e escritos pelo profícuo autor inglês: Arthur Conan Doyle, apesar de as narrativas curtas serem independentes, existem, por vezes, referências a histórias publicadas anteriormente, pelo que, em parte a narrativa é sequencial, mas um erro meu no momento da compra, levou-me a adquirir inicialmente o segundo livro destas histórias, precisamente "As memórias de Sherlock Holmes".

Neste volume são narradas 11 aventuras pelo seu permanente companheiro de investigação, o médico Watson, dimensões semelhantes e na ordem e duas a três dezenas de páginas cada. Todas são como memórias, não do protagonista, mas do doutor que o acompanhou, algumas são charadas, outras crimes e a última um confronto épico de inteligência com o seu inimigo figadal: o Professor Moriarty por Sherlock lhe destruir a sua quadrilha de malfeitores.

São contos muito fáceis de ler e de puro entretenimento, mas muito diferentes do estilo de Agatha Christie de quem tanto tenho lido, nesta autora é, sobretudo, a análise psicológica que leva à descoberta do criminoso, em Conan Doyle, são pistas físicas que cuja análise e interpretação conduzem à descoberta, mas onde os conhecimentos do detetive vão mais longe que os dados postos na narrativa e dificilmente o leitor se sente na posse de tudo. Sendo histórias da transição do século XIX para XX, muitas das tradicionais pesquisas forenses dos policiais mais recentes estão ausentes aqui, não se fala de impressões digitais, ADN, tipos e pesquisas de sangue oculto, etc.

Gostei e penso explorar mais este personagem que de facto só mais recentemente comecei a ler e recomendo a qualquer leitor que goste do género policial.


domingo, 6 de julho de 2025

"Contos" de Eça de Queiroz

Voltei à minha coleção, que possuo há mais de 30 anos, das obras completas de Eça de Queiroz, da qual já li os romances, mas falta-me ainda vários volumes com outros tipos de obras.

Agora coube a vez ao volume dos "Contos", coletânea que está também disponível no mercado noutras edições, como esta aqui. São 23 histórias que retratam situações contemporâneas da época de Eça e históricas que vão da idade média, ao tempo de Cristo que chega a personagem, recua até Odisseu e vai ao primeiro homem e mulher que, claro, são Adão e Eva, mas que pouco têm com os do génesis bíblico.
Os contos contemporâneos têm temáticas diversas, que vão desde o "Réu Tadeu", que se descobre ter morto o irmão, se dá por culpado e tem um comportamento exótico; até paixões que levam aos atos extremos de José Matias ou ao racional  em "Singularidades de uma rapariga loura", à exaltação da natureza em "Civilização", talvez um ensaio que deu origem ao genial romance de "As cidades e as Serras" e passa por fundamentos do insucesso de Portugal em "A catástrofe", entre outros. Em muitos deles sente-se o espírito satírico e mordaz de Eça nos seus grandes romances mas aqui em obras curtas.
Os históricos vão desde o terror fantástico em "O defunto" ou selvático de "Enghelberto", prolongando-se para os deprimentes ambientes religiosos medievais com o peso da obrigação de pureza para a salvação, até um Jesus, bem mais leve, amigo dos pobres que desprezo os poderosos em três versões de "O Suave Milagre", mostra a superioridade do amor humano imperfeito humana face à "Perfeição" dos deuses e questiona o legado de "Adão e Eva no paraíso". Nestes contos, a temáticos de alguns levou a que o tom de Eça mudasse e a sua narrativa parece-me, por vezes, menos conseguida, se gostei muito de algumas destas histórias, noutras senti-as demasiado constrangedoras e deprimentes.
Todavia, a coletânea vale bem a pena de ser lida, pela qualidade, perfeição e riqueza de escrita, que é transversal a todos os contos, apesar de dois ou três deles terem ficado incompletos.