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sábado, 26 de outubro de 2024

"Uma casa para Mr. Biwas" de V. S. Naipaul

 

Regressei pela segunda vez à leitura do laureado com o prémio Nobel da Literatura V. S. Naipaul, um escritor de origem indiana e natural de Trinidad e Tobago de expressão inglesa. O romance "Uma Casa para Mr. Biwas" relata a vida de Mohun Biwas desde o seu nascimento até à morte.

Mohun, nascido numa família miserável, com seis dedos, mas cedo perdeu o apêndice excedente, cujo arauto do pândita que o integrou na comunidade expressou que nunca deveria estar perto de água, pois por esta ele traria desgraças à família, cedo ficou órfão por transgressão à recomendação, o que levou à morte do pai. Acolhido depois por uma tia que o protege e após os primeiros trabalhos de infância descobre o seu dom para letras e escrita, nesta arte conhece a Shana do clã Tulsis com quem, inconscientemente, é levado a casar e a viver esmagado pela força da comunidade numerosa de dois irmãos e muitas irmãs da esposa, dos respetivos maridos e dos muitos sobrinhos, todos sob a alçada da matriarca e seu cunhado. Inconformado nesta opressão, retalia, protesta, incita à rebelião, sendo exilado para sucessivas propriedades do clã, onde presta trabalho quase escravo, enquanto Shana  se mantém subserviente à sua família e lhe vai dando filhos e ele como um longo acumular de desgraças e antipatias. Nesta senda, aspira à sua libertação através de conseguir uma casa livre dos Tulsis, até chegar à capital de Trinidad onde consegue um trabalho num jornal especulativo que o torna conhecido mas não liberto do clã e sempre com o sonho de conseguir a sua casa.

É sem dúvida um grande romance, contudo o peso do clã e a descrição crua das tradições da cultura hindu que ao longo de quase todo o livro esmagam Mr. Biwas (baseado no pai do escritor) criaram-me uma aversão à narrativa e um preconceito contra a comunidade indiana que tornaram esta leitura dolorosa. Uma quase versão do Job bíblico nos tempos da II Grande Guerra naquela ilha das Caraíbas.

Tenho de reconhecer que em termos de obra, esta, além de extensa, tem um grande valor literário e força, mas mesmo temperada com sarcasmo e ironia para suavizar o asco da caracterização do clã Tulsis (cujo autor parece se ter baseado também na sua própria família materna), foi difícil prosseguir a leitura e, ao contrário de A Curva do Rio que gostei muito, este bom romance deixou-me marcas amargas, mas valeu a pena ler.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

"A pele do Tambor" de Arturo Pérez-Reverte


Regressei ao escritor espanhol: Arturo Pérez-Reverte, um autor profícuo e diversificado de romances históricos, policiais ou ensaios e um bom analista da cultura hispânica. "A Pele do Tambor" enquadra-se no género ligeiro de investigação criminal e tem o tempero de mostrar o mundo menos exposto dos interesses terrenos da igreja e do Vaticano.
Numa sala de controlo da rede informática do Vaticano é detetado a entrada de um hacker que deixa uma mensagem ao Papa sobre uma igreja em Sevilha que mata para se defender, a situação abre uma investigação a partir do da secretaria de serviços estrangeiros e do departamento sucessor da Inquisição, sendo então encarregue do caso o padre Lorenzo Quart, que mais não é que um agente de espionagem da Santa Sé.
Em Sevilha Quart depara-se com um templo que um banco e a diocese estão interessados em demolir para investimento e especulação imobiliária, isto contra a vontade do pároco e de uma família nobre ligada àquela igreja, situação que parece já ter causado acidentes mortais dúbios e atritos familiares entre o gestor bancário e a sua mulher nobre, além de contratar alguns rufias para levar a cabo atos sujos de modo a conseguir os seus intentos. O padre vê-se numa situação de proteger os interesses do Vaticano sem se imiscuir nas guerrilhas locais, incluindo da diocese, enquanto também uma mulher jovem e atraente está no cerne do caso.
Costumo gostar das obras de Pérez-Reverte por ser um autor que junta boa escrita literária aos diferentes tipos de ficção que produz, pelo que é viável ler um policial sem sentirmos que estamos perante literatura de cordel de mero entretimento. A Pele do Tambor não é exceção, contudo, foi uma obra que embora me tenha entusiasmado nas primeiras páginas - quando o hacker quebra as seguranças do Vaticano e se sente em seguida o saudosismo dos senhores todo-poderosos da Santa Sé de agirem sobre o mundo na defesa dos seus interesses terrenos, cheios de grande frieza e pouco humanismo em nome de um deus que dizem ser amor - só que depois o interesse desvaneceu-se um pouco sem aquela ansiedade de uma obra de suspense. É um romance simpático, que mostra o grande encanto de Sevilha, que conheço, e tem um final surpreendente. Gostei mas não me deslumbrou. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

"A ilha dos Espíritos" de Camilla Läckberg

 


Neste período estival, onde tenho dado preferência a romances preferencialmente de entretimento, acabei de ler mais um romance policial da escritora sueca Camilla Läckberg: "A Ilha dos Espíritos", que onde continua a narrar casos que vão passando pelo casal da pequena cidade de Fjällbacka, constituído pela escritora de suspense Erika Falks e seu marido Patrik Hedström detetive na esquadra do Município Tanumshede.

Madeleine antiga colega de liceu de Erika refugia-se na pequenina ilha dos Espíritos com seu filho junto de Fjällbacka  depois de uma ocorrência que levou à morte do seu marido, em paralelo, o seu antigo namorado Mats e colega de turma mudou-se para Fjällbacka pouco após ter sido agredido em Gotemburgo tornando-se contabilista de um grande investimento na sua nova cidade, só que quando surgem dúvidas nas contas e se encontra com a sua antiga paixão aparece morto a tiro. Outra mulher refugia-se em Copenhaga devido a ser vítima de violência doméstica. Na esquadra a equipa heterogénea investiga a morte de Mats e não encontra pistas. A irmã de Erika recupera psicologicamente de um acidente com a morte do seu filho por nascer enquanto a outra trata dos seus recém-nascidos gémeos e investiga as lendas da ilha dos Espíritos que nunca abandonam a ilha e convivem com os seus visitantes, em conversa com o marido vai acompanhando o caso e visita antiga colega. Só que as coisas ficam complicadas e precipitam-se com com o surgir de casos de droga e mais mortes e precipitações de polícias imprudentes e a intuição de Erika. Em Gotemburgo e Estocolmo investigações de casos à partida independentes vêm mostrar-se que fazem parte todos do mesmo caso e a cooperação dá os seus frutos finais. 

A trama em cada romance desta escritora nunca é linear, vai-se montando um quebra-cabeças com episódios individuais associados a cada uma das personagens, ora de investigação, ora da vida familiar, ora do convívio social que no fim levam à descoberta dos crimes violentos e, frequentemente, uma segunda narrativa de memórias do passado vai sendo intercalada, uma repetição do passado com ecos no presente. Marido e esposa jogam no limite da cooperação entre o sigilo das vidas profissionais e a investigação conjunta e as tensões familiares e da esquadra. São romances policiais onde a vida familiar e a atividade detetivesca se desenvolvem em paralelo, se entrecruzam e têm pesos iguais no evoluir da narrativa, num tom marcadamente feminino que mais perto do final acelera.

Romances simpáticos, fáceis de ler que entretêm neste calor de verão e vão mantendo o interesse na leitura e no desenrolar investigação.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

"Operação Shylock" de Philip Roth

 

Citações

"Não, o carácter de um homem não é o seu destino; o destino de um homem é a partida que a vida prega ao seu carácter."

Acabei de ler "Operação Shylock" do escritor norteamericano Philip Roth, um romance onde o protagonista é o próprio Philip Roth, o qual em 1988, em recuperação de uma depressão gerada por um medicamento para a insónia, descobre que em Jerusalém está um sósia a usar o seu nome e fama para veicular a ideia de os judeus regressarem à Europa, de onde saíram após a queda de Hitler, para assim evitar um segundo holocausto devido a uma provável destruição de Israel, um sionismo invertido, a que chama diasporismo. Perante esta situação e contra vontade da mulher, utiliza a intenção de entrevistar um outro escritor e de ver um julgamento de um colaborador nazi denunciado, decide  ir a àquela cidade e tentar por cobro à situação e enfrentar o usurpador da sua personalidade, só que as peripécias que daí resultam são tantas que se transforma numa odisseia envolvendo judeus, palestinianos, espiões, militares, uma mulher deslumbrante, antigos colegas e amigos.

O romance é um autêntico desenrolar de virtuosismo e de imaginação de situações bizarras, ora absurdas, ora de descrições da realidade de vida no médio oriente, tudo sempre temperado por um humor sardónico e uma sensação de obsessões, o que permite, ao abrigo destes artifícios, denunciar a realidade histriónica que se vive em Israel e nos territórios ocupados, bem como escalpelizar a mentalidade judia dos sionistas regressados à Terra Prometida face aos restantes hebreus que vivem ambientando-se à vida na sociedade norteamericana e os traumas psicológicos que resultam nuns e noutros, bem como, nos antigos residentes da Palestina que se viram desposados das suas propriedade e alvo de permanente perseguições.

O absurdo e a sensação de confusão e obsessão, com o humor que trespassa a obra faz parecer uma obra hilariante, contudo, mostra a realidade complexa e histriónica que afeta os povos que ali coexistem, denunciando, por esta via, injustiças, comportamentos abusivos, vítimas e feridas que são atuais e extremadas com a guerra que está a assolar os palestinianos, permitindo compreender melhor a realidade do médio-oriente. Sem ser um manifesto político no verdadeiro sentido do termo, é sem dúvida um obra que utiliza a literatura ficcionada para mostrar ao mundo um problema real provocado pelo sionismo. Sem ter a crueza de um Guernica de Picasso, tem o mesmo efeito de denúncia da guerra que utiliza todos o meios para dominar o outro e onde os judeus não são inocentes. Um excelente livro que se mantém atual, escrito por um judeu que não se coíbe de dizer que o é, mas... nem todos são iguais.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

"O Álibi Perfeito" de Patricia Highsmith

 


Acabei de ler 5 contos deliciosos sobre crimes escritos pela norte-americana: Patricia Highsmith, dos quais, o primeiro: "O Álibi Perfeito", dá título o livro.

Frequentemente, nos romances policiais e contos desta autora, a narrativa é contada do lado dos criminosos e muitas vezes apresenta-nos as razões de queixa que estes têm das suas vítimas, gerando assim uma empatia para com os culpados. Nestes contos há diversidade, em quase todos o protagonista é o criminoso.

Em álibi perfeito, o crime é perpetrado logo no início, percebe-se que bem planeado para o autor conseguir libertar para si a mulher que ama, mas cativa do seu tutor, só que de um alibi e um comportamento não previsto tudo parece que vai acabar bem... até num pormenor ser tudo desfeito. Noutro crime planeado, é tudo bem programado, cronometrado, mas a dependência de terceiros inocentes mostrou que não se pode contar com ninguém quando tal é fundamental. Há ainda uma história onde os criminosos caem na sua armadilha e outra em que são vítimas de testemunhas que não contaram. Pelo meio há o conto onde se conseguiu o crime perfeito e os autores gozam a libertação de quem os oprimia.

Maldade humana e maquinações em contos curtos, mas deliciosos e bem escritos: uma mistura que faz deste pequeno livro uma pérola de entretenimento de literatura policial. Gostei muito.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

"O Imoralista" de André Gide


 Citação

"Desgostos, remorsos, arrependimentos são as alegrias de outrora, vistas de costas."

Acabei de ler "O Imoralista" do escritor francês, laureado com o prémio Nobel da literatura, André Gide, correspondendo à minha estreia neste autor.

Michel é um jovem órfão de mãe, respeitador das regras morais e um brilhante estudioso da história das civilizações clássicas da Europa, um tipo de investigação que segue as mesmas pisadas de seu pai, mas, perto da hora da morte deste, ele toma a opção de casar com uma conhecida de família para assim transparecer perante o progenitor o seu enquadramento num futuro tradicional estável. Apesar do luto, os noivos decidem ir para a Tunísia em viagem de núpcias e conhecer os restos arqueológicos do império romano e de Cartago, só que ele adoece gravemente e na cura reconhece que ressuscitou para a vida, mas já não é o mesmo. Agora quer viver a vida sem amarras e a moral mais não é que um constrangimento ao verdadeiro disfrutar da vida. Então fascina-o tudo o que sai fora das regras. Entretanto, no regresso à França, é a sua mulher que adoece. Michel então empreende uma viagem ao norte de África para a cura desta, mas nem ele é o mesmo, nem a evolução é igual ao pretendido.

Como seria de esperar de um Nobel, o texto está brilhantemente bem escrito, trespassa para o leitor o sentimentos de Michel, as sua confusão fruto da mudança e as descrições do norte de África e de Itália são como fotos impressionistas, onde a atmosfera dos lugares é mais forte que a geografia.

Logicamente o romance é polémico, a preocupação de Gide em questionar as amarras da moral que limita o usufruir da vida, sente-se. O encanto pelo belo rústico e físico nos homens e, sobretudo, efebos, quase não há personagens femininas além da esposa, pode incomodar homofóbicos. A ideia de que os bem-comportados e integrados na sociedade são hipócritas conscientes ou inconscientemente é chocante, mas como refletir sobre a vida sem questionar os costumes e a moral instalada e incomodar?

Gostei, mas não é uma obra compreensível para todos ao nível da filosofia subjacente e deste romance poder-se-iam tirar do texto dezenas de pensamentos para reflexão.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Contos de Tchékhov - Volume 4

 

Li o quarto volume da extensa coleção Contos de Tchékhov da Relógio d'Água, gosto muito deste contista russo e esporadicamente vou à biblioteca pública buscar um volume para assim ir lendo a coleção.

Este volume possui 14 contos, os dois últimos mais extensos, quase novelas com perto de 100 páginas, os anteriores, na sua maioria, na ordem de uma dezena de páginas. Temos ao longo das diferentes narrativas curtas protagonistas de várias classes e situações mais ou menos comuns, desde um guardador de um cadáver que o abandona por um serviço pago, à mulher que trai o marido com um jovem enquanto aquele trabalha, à jovem que se apaixona pelo talento de um pintor medíocre e outra por um estatístico, ao caso das memórias de uma paixão passada que abre uma exceção no presente até a um lobo que ataca um redil cujas culpas caem num humano, etc.

Já as narrativas mais longas tornaram-se me mais cansativas, para mim Tcheckhov é mesmo genial em histórias curtas, numa, um espião tem ocasião para se apaixonar e não para desenvolver o seu objetivo ao ver uma relação de uma amante apaixonada por um homem que não se quer incomodar com a esta e não tem coragem para o assumir. Na outra, assistimos ao regularizar das relações matrimoniais dentro de um casamento com um início incerto cujo comodismo se instala com o tempo.

Confesso que me delicia a escrita (ou tradução) de Tchekhov, e as histórias curtas, embora possam relatar situações tristes, banais e a vida de gente comum, de tão bem narradas que estão, dão sempre grande prazer de ler. Gostei muito

segunda-feira, 1 de julho de 2024

"O Silêncio" de Don DeLillo

 



Acabei de ler "O Silêncio" do norteameriano Don DeLillo, apesar de no original ter como subtítulo "Um romance", está-se mais perante um conto ou novela que nem chega a 90 páginas.

Cinco pessoas combinam jantar no intervalo do grande jogo do super bowl em casa de um casal: uma professora de física, seu marido inspetor de seguros, um ex-aluno e professor de física, e um casal amigo, muito viajados que a chegar de avião de uma visita a Paris. Tudo na expectativa da partida, enquanto os professores esperam falam de Einstein, do mundo físico imaginado pelo cientista, ele pensa no apenas em jogadas enquanto o outro casal no avião ele fixa o monitor e vai lendo as informações e ela anota pensamentos e momentos para seus livros ou mais tarde recordar. Até que se dá um apagão global de todos os sistemas informáticos e todos os ecrãs se apagam, TV, telemóvel, computadores, comunicações dos avião. Uma catástrofe que as pessoas não estavam preparadas, um silêncio que obriga as pessoas a falar se ainda forem capazes.

Tenho gostado de todos os livros de Din DeLillo que tenho lido, todos resultam em obras que possuem momentos e diálogos desconcertantes que tocam os receios da humanidade ocidental atual e os riscos da civilização contemporânea, como que esta esteja à beira de cair num precipício para uma catástrofe final. Este não é exceção, não é uma distopia típica, eis um escritor menos absurdo que Kafka de há um século atrás, sem dúvida mais realista, toca nas sombras provocadas pelo desenvolvimento socioeconómico das últimas décadas, mas com ele sinto sempre aquela sensação estranha de que estamos a viver num mundo absurdo, um sonho que não é um pesadelo, mas sem luz ao fim do túnel.

Gostei muito e recomendo a quem ainda não conhece este escritor ou a todos que gosta dele, um pequenino mas típico Don DeLillo.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

"O Intruso" de Stephen King

 

Citação

 "O universo não conhece limites"

Ao fim de muitos anos regressei a um dos escritores de maior sucesso das últimas década, o americano Stephen King e procurei uma obra relativamente recente que juntasse dois dos ingredientes para tal popularidade: literatura de ficção policial e de terror e optei por "O Intruso".

Ralph Anderson decide prender em pleno estádio e durante um jogo de final dos escalões juvenis o seu treinador, um muito popular da cidade: Terry Maitland, pelo assassínio e violação com extrema violência de uma criança. Todas as provas se conjugam para ser ele o criminoso: testemunhos na zona próxima do crime, câmaras de vigilância, impressões digitais e evidências de sangue nas suas roupas. Só que pouco depois o advogado de defesa consegue evidenciar que Terry estava a mais de 100 km e de novo câmaras, testemunhos e impressões digitais asseguram essa realidade, mas em auxílio da polícia vêm as perícias  laboratoriais como o ADN que o levam a levar ao juiz quando um atentado justiceiro termina na morte do potencial culpado. Como explicar a ubiquidade do criminoso? Anderson não fica satisfeito e um conjunto de incidentes agrava tudo, só que o trabalho detetivesco vai evidenciar uma realidade para além do normal, que ultrapassa o natural, é uma luta contra o mal enraizado em crenças e lendas e nesta guerra há que salvar a imagem da vítima acusada, tudo indica, injustamente. Poderá Anderson vencer esta força do mal e reparar a honra que ele sujou?

A narrativa, após a prisão inicial, segue a forma de um trabalho policial clássico, com um conjunto de depoimentos e contra-argumentos da defesa intercalados com choques emocionais do lado da família das vítimas e do preso, além de dúvidas do lado dos investigadores, que são descritos por um autor que domina bem a escrita literária e expostos de uma forma consistente. Perto do meio da obra, quando subtilmente começam a surgir indícios menos naturais, a forma desliza para aspetos incríveis e as suspeitas do terror vão deslizando cada vez mais com passagens para campo do terror, não psicológico, mas paranormal e com momentos repugnantes para o final e deixa-se de estar num simples policial lógico até ao desenlace final mas num misto de ciência e paranormal.

Confesso que a parte natural de investigação da luta da acusação com a defesa me cativou, mas os argumentos lendários transportados para a realidade da narrativa esbarraram com a minha mentalidade científica que nem no campo lúdico se sente atraído, exceto em histórias mitológicas que pretendam representar grandes dilemas humanos como nos clássicos antigos ou as óperas de Wagner. Todavia, é um romance muito fácil de ler, bem escrito e acessível a todos, mas não recomendo a quem o terror o transporte para o reino dos pesadelos ou suscetível a náuseas

quinta-feira, 13 de junho de 2024

"A Premonição" de Agatha Christie

 

Acabei de ler "A Premonição", uma obra de investigação detetivesca da famosa escritora inglesa Agatha Christie, este tem como protagonistas para deslindar o mistério o casal Tommy e Tuppence, menos famosos que Miss Marple e Poirot, mas também figuram em diversos romances desta autora.
Na sequência de uma visita à Tia Ada ao lar, onde tudo parece em ordem, Tuppence conhece outra residente, Mrs. Lancaster, que lhe pergunta "era sua a pobre criança? e insinua que esta chora ainda por detrás da lareira. Pouco depois, a Tia morre e descobrem que aquela lhe ofertara um quadro com uma casa à beira de um canal de que Tuppence se lembra de ter visto antes, só que Mrs. Lancaster fora levada do lar repentinamente e limparam todas a vias de chegar ao contacto com ela. Correrá ela risco de vida? Qual a sua ligação à casa do quadro e onde ela a vira? Após descobrir o lugar e tentar saber histórias do passado daquela terra rural, Tuppence sofre um ataque que coloca Tommy também na investigação e um mistério de mortes em série no passado e uma rede criminosa são desmontados. 
A obra apresenta elementos de cultura geral artística mais ampla que os habituais romances com Miss Marple e Poirot e também é menos linear, mesmo a meio do livro não sabemos ainda se houve ou não um crime, de quem e o que procuramos, é mais uma suspeita do que um facto que coloca Tuppence com o seu faro a investigar. Por isso a trama evolui calmamente em meio rural inglês conservador, só que o mistério vai-se adensando até se tornar claro que de facto algo deve ter acontecido e com ajuda do o marido com a sua experiência de ex-agente secreto que ambos deslindam o caso. Gostei, apesar de não ser um policial dos mais típicos da escritora 

sábado, 1 de junho de 2024

"À Espera da Subida das Águas" de Maryse Condé

 

Citação

"Mas não é preciso ser perfeito para ser amado. Caso contrário, o amor seria uma recompensa e não um milagre."

Li pela primeira vez uma obra da Maryse Condé, francesa, natural da ilha de Guadalupe, é considerada a maior escritora da Caraíbas, com obras que falam das feridas do colonialismo, da escravatura, das guerrilhas e miséria nas Antilhas, "À espera da subida das águas", estende este tema à África francófona e ao Médio-Oriente nas últimas décadas. 

Babakar é um obstetra formado em Montreal, vive em Guadalupe em solidão enquanto vai atendendo grávidas, recorda uma amizade universitária, África onde nasceu e assistiu às devastações de uma guerra civil liderada pelo seu amigo e um amor perdido. Entretanto sua mãe falecida dá-lhe conselhos e avisos em sonhos. Numa noite tempestuosa é chamado a um parto de uma imigrante haitiana clandestina que morre, adota a criança, mas um companheiro da defunta informa-o que têm de ir para o Haiti com a bebé encontrar a família para a morta ter descanso. Decide seguir o conselho e partem para uma terra de pobreza, de anarquia e conflito e estabelece-se neste caos, cria magníficas amizades, com um "libanês" e outras personagens ligadas à política tirana do pais que vivem naquele estado falhado e procura o melhor para a sua filha.

O romance tem uma estrutura que inclui várias biografias das principais personagens da obra e assim assistimos a diferentes histórias paralelas que completam o evoluir da trama e expõem os problemas de uma guerra civil e ditaduras em África, da guerra no Líbano, do legado da escravatura e do caos em que se transformou o Haiti nas últimas décadas, além das feridas do colonialismo.

Num estilo que paira entre o realismo mágico e as crenças da religião vodu com mistura de vivos e mortos, assiste-se ao milagre da resistência da amizade e do amor às dificuldades de se viver em terras devastadas pelas tensões humanas e as catástrofes naturais.

Apesar do desfile de agruras, não é um texto triste, uma certa leveza e humor atravessa as dificuldades e tempera a obra que se torna agradável de se ler enquanto mostra os problemas das terras por onde Babakar e outras personagens vivem. Gostei e recomendo.

sábado, 11 de maio de 2024

"O Mundo Ardente" de Siri Hustvedt

 

Acabei de ler "O Mundo Ardente" da escritora norteamericana Siri Hustvedt, esposa do famoso Paul Auster que faleceu enquanto lia este romance.

O romance compõe-se como uma compilação de testemunhos, excertos de diários e artigos de especialidade em torno de uma artista plástica falecida, Harriet Burden, esta, com uma cultura artística, literária e filosófica enciclopédica, cujo suposto autor do livro estudou. Ela que se caracterizou pela insatisfação de considerar que às mulheres não era reconhecido o seu real valor artístico em comparação com outros artistas homens de igual calibre. Para demonstrar tal tese e em busca do reconhecimento da sua obra, Harriet programou três exposições em Nova Iorque assumidas por outros três homens distintos que lhe serviram de máscara. Assim, o projeto iniciou-se e decorreu de acordo com o previsto, mas à terceira a relação com a sua máscara complicou-se e resultou numa situação inesperada para esta mulher lutadora e irrequieta, esposa de um comerciante de arte que a punha na sombra, provavelmente pelo mesmo motivo que ela procurou denunciar.

Um obra, ao estilo pós-moderno, cheia de notas e referências e menções a filósofos, psiquiatras e artistas, onde se vai montando um complexo retrato da protagonista e a força desta, visto pelos olhos dela e de quem lhe foi próximo ou apenas testemunha social. Deste modo se vai conhecendo as suas relações familiares e com as restantes pessoas que vão surgindo ou participando no romance, o seu projeto artístico, o seu estilo e o seu esforço para vencer numa sociedade masculinizada e preconceituosa.

Por teoricamente o romance ser escrito por numerosas personagens e em situações diversas, o texto também comporta numerosos estilos, ora de entrevista, ora de memória, ora de reportagem, ora de ensaio, ora de gente exótica, ora de amigos, ora de gente em litígio ou que lhe tem um amor ardente que caracterizou a vida de Harriet Burden. Um excelente livro, nem sempre fácil, mas um magnífica obra literária que evidencia o valor da escritora menos reconhecida que o marido, mas talvez tal seja a melhor prova da razão da protagonista ficcionada.

sábado, 6 de abril de 2024

"O Evangelho segundo Jesus Cristo" de José Saramago

 

Citações

"Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens."

"o homem só é livre para poder ser castigado"

"Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar de tanto sangue."

Tenho um grande respeito pela liberdade de criação artística e uma aversão enorme a qualquer tipo de censura pública religiosa ou política no campo das ideias ou das obras criativas das pessoas, mas confesso que a força das minhas convicções religiosas levaram-me a adiar mais de 30 anos a leitura de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago, um dos meus escritores favoritos, português e laureado com o Nobel da literatura. Agora, numa fase de agnosticismo e de uma intensa revolta com a vida, aventurei-me, finalmente, a ler este romance, que mereceu grandes elogios por uns e indignação e contestação de outros.

A obra procura apresentar uma biografia alternativa de Jesus Cristo, sem preocupações de rigor histórico, é um romance de ficção, embora este aproveite e reescreva muitos dos episódios narrados nos evangelhos, vistos por um narrador omnisciente que acompanha o protagonista desde o momento da anunciação a Maria da encarnação deste filho, passando pela infância dele e aspetos da família de Jesus e com grande especulação sobre José. Depois prossegue com a saída de Jesus de casa e recria uma vida social e privada deste, incluindo sua comunicação com o Diabo e Deus-Pai, e a sua relação com Maria Madalena, os apóstolos até ao cumprimento da sua missão na cruz.

Por norma todas as situações são complementadas com comentários e apreciações do narrador num tom sarcástico ou irónico típico de Saramago, que subvertem em muitos os aspetos das bondade do Criador da sua justiça e amor deste para com os homens, por vezes são provocadores e podem mesmo ser incómodos para um crente que aceita a doutrina cristã sem espírito crítico. O autor não é mesmo nada complacente com a pregação da moral e doutrina católica.

A escrita e forma é a típica de Saramago e é conhecida, a vida de Cristo e a perspetiva messiânica são de facto reescritas neste livro, sendo que as alterações biográficas bem menos subversivas que o papel atribuído a Deus sobre o controlo da humanidade. Gostei de ler, mas não deixa de ser uma obra em que o autor assume confrontar a visão do Criador dada pelo cristianismo. Valeu talvez a pena esperar estes anos para ler este romance e entendê-lo sem me chocar e despojado do peso de uma fé acrítica.

quinta-feira, 7 de março de 2024

"a cidadela BRANCA" de Ohran Pamuk

 

Citações

"Procurar descobrir o que somos, refletir tão longamente sobre nós mesmos não poderia senão fazer-nos infelizes!"

"Todos nós sabemos que, para reencontrar a vida e os sonhos desaparecidos, é preciso sonhá-los novamente."

Voltei ao escritor turco, laureado com o prémio Nobel da literatura Ohran Pamuk, de quem lera apenas um livro há vários anos. "a cidadela Branca" é um romance diferente que de forma indireta a narrativa levanta as questões de "quem sou eu?" e "porque eu sou como sou?".

O autor expõe um manuscrito com um relato do cativeiro de um veneziano estudante que, quando jovem, no século XVII foi capturado pelos turcos e levado para Istambul, onde o Sultão o doou a um conselheiro como escravo, sendo o dono tão semelhante fisicamente a cativo como um gémeo e um cientista  interessado no saber, investigação astronómica, outras civilizações e criador de artefactos a quem chama de Mestre. Este tenta extrair conhecimento do italiano e, aos poucos, começa uma troca de saberes e surgem as questões. Num jogo de espelhos inicia-se uma autoanálise onde cada um escreve como foi, os seus erros e as suas memórias, a dado momento começa a confundir-se quem é o Mestre ou outro. Entretanto, o Sultão vai pedindo conselhos e apreciando as invenções que resultam daquela equipa, até se aperceber da inter-relação dos dois e lhes pedir a construção de uma arma capaz de conquistar os territórios europeus onde luta até à batalha junto à cidadela branca, a que se segue final surpreendente.

Como todas as obras de introspeção, não é uma narrativa acelerada, o que é ainda travado pelos parágrafos extensos, em estilo de reflexão e onde os diálogos são expostos como memórias, apesar da riqueza do texto, senti uma nostalgia ou uma infelicidade permanente enquanto lia. Não é um livro grande, mas a leitura não fluía pela necessidade de atenção e densidade do texto, tal não impede o reconhecimento de que se está perante uma excelente obra e de grande originalidade, mas não um simples livro lúdico e muito fácil.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

"O Apóstolo" de Hall Caine

 

Citação

"Os estadistas conhecem muito bem a crueldade clerical que se esconde por detrás de leis seculares."

Acabei de ler "O Apóstolo", livro publicado em 1897 e escrito pelo inglês do final do século XIX: Hall Caine, um autor profícuo, mas pouco reconhecido pelo seu valor literário, mas com grande sucesso à época. Adquiri esta obra por apresentar temas como a sexualidade, a liberdade e o estatuto da mulher face à religião (neste caso anglicana) e discutir preconceitos e a acomodação desta face aos vícios sociais e às elites para se preservar e manter o seu estatuto no sistema instalado da promiscuidade entre Igreja e Estado.

John Storm e Glory Quayle são dois jovens da ilha de Mann, onde se conheceram e secretamente desenvolveram um grande amor entre si não assumido publicamente. Ambos partem para Londres, ele com grandes sonhos de se tornar um clérigo e purgar a sociedade dos seus vícios, sobretudo, o tratamento discriminatório dado às mulheres  e o uso das mais humildes pelos homens de maior estatuto social, trazendo para os seus sermões as questões de castidade e a proteção dos mais pobres. Ela vem para se tornar enfermeira uma das poucas profissões dignas para mulheres naquela época, mas sonha ser uma atriz e cantora e sente-se atraídas pelas regalias, a adulação do público e o dinheiro. Na capital encontra espaço para a concretização destes anseios. Duas personagens intensamente apaixonadas e fortes na defesa das suas ideias que chocam entre si e com a sociedade quando um desmascara o farisaísmo da Igreja e das elites e a outra faz sucesso e se instala num mundo de luxo e vício.

O romance junta uma visão religiosa ultraconservadora nos costumes com opção por uma igreja pelos pobres e o conflito desta com um mundo laico, onde dinheiro, luxo e luxúria estruturam uma sociedade estratificada e onde o clero se instala comodamente. Todavia a trama não se limita a este confronto, sente-se alguns preconceitos que depois são em parte resolvidos, como a quase incompatibilidade entre ser-se atriz ou cantora profana e a dignidade cristã, uma valorização do sofrimento e martírio e também que este último aspeto é mais típico do catolicismo e assume a necessidade de reformular a ligação Igreja-Estado dado existirem personagens próximas que integram o Governo.

No texto são evidentes alguns problemas de tradução, ora parecem-me vocábulos inadequados ao século XIX, ora frases com erros gramaticais que pontualmente perturbam a leitura, contudo é um bom e grande romance. A narrativa talvez tenha algum sentimentalismo excessivo. Não sei se o não reconhecimento literário do autor se deve mais a preconceitos pelo modo como aborda assuntos religiosos e a denúncia desta moral decadente e injusta ou pela qualidade de escrita, mas a partir de "O Apóstolo" deduzo que o sucesso à época pode dever-se a escrever uma literatura fácil que se pode enquadrar num estilo de educação cristã com um pendor romântico num período de luta pelo laicismo.

Um drama acessível e novelesco que levanta várias questões morais que me impressionou, me fez pensar e gostei de ler.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"HOMO SOLIDARICUS Derrubando o mito do ser humano egoísta" de Wegard Harsvik e Ingvar Skjerve


 Citação

"o homem não é escravo dos genes e da biologia é o que permite o Homo solidaricus"

Terminei a leitura do ebook "HOMO SOLIDARICUS  Derrubando o mito do ser humano egoísta" dos políticos trabalhistas noruegueses Wegard Harsvik e Ingvar Skjerve, uma obra que junta a forma de ensaio à de um manifesto político das ideias dos autores com base no modelo de sociedade da Noruega e na crença de que o ser humano não está refém dos seus genes para ter de ser um lutador egoísta pela sua sobrevivência e ascensão social, o que é, metaforicamente, designado como Homo economicus, mas que este pode ser também fruto de uma cultura e tornar-se num espírito cooperante para criar uma sociedade melhor e constituída pelo Homo solidaricus. 

Os autores estão ideologicamente enquadrados nas ideias socialistas e são declarados adversários do liberalismo, acreditam na bondade da generalidade das pessoas e que estas estão disponíveis para o bem ao próximo, para prosseguir com a denúncia de ideias perniciosas associadas ao liberalismo e à crença na meritocracia que, segundo os mesmos, seguem filosofias radicadas no egoísmo, refere personalidades que propagam estas ideias, centrando-se na obra de Ayn Rand, que conduz a uma competição desenfreada do capitalismo tipificada no Homo economicus.

Depois expõe um conjunto de experiências no âmbito das ciências sociais e naturais, envolvendo não só sociedades humanas, mas também de primatas e outros animais, para evidenciar que a cooperação também é um mecanismo radicado na natureza favorável à sobrevivência das espécies, sendo que os cidadãos podem ser educados no sentido do benefícios da solidariedade desde que esta seja modelada por princípio de justiça de forma a transformar o homem num fruto da biologia e da cultura do tipo Homo solidaricus, onde o caso mais avançado neste sentido é a sociedade norueguesa e escandinava. 

Mesmo subscrevendo muito dos princípios e valores enunciados na obra, não deixo de sentir que se está perante um manifesto ideológico, onde as ideias fora do âmbito dos autores são todas consideradas nefastas e a crença da quase perfeição nas suas. Infelizmente, ensinou-me a vida que nas ciências sociais muitas vezes os estudos são moldados pelos preconceitos dos investigadores, pelo que a seleção das experiências apresentadas são todas no sentido da defender as ideias do autores do livro e tudo o que não está conforme com estas, sente-se que estes consideram como sendo análises e conclusões falsas e artificialmente afetados pelos preconceitos dos outros que pensam diferente que à partida não merecem qualquer credibilidade. 

Apesar da ressalva de ser um manifesto tendencioso, gostei muito do livro, bom para a reflexão sobre sombra que ameaçam o mundo atual e concordo com muitos aspetos, cita intensamente um autor que me tem marcado nos últimos anos e cujas obras em ebook já aqui apresentei: Yuval Noah Harari. Novamente a seleção é limitada aos pontos que vão no sentido dos autores deste manifesto.

Este ebook é uma tradução do Brasil, mas que recomendo a todos os que gostam de refletir ideias políticas, embora, presentemente, muitos se alheiem deste campo de reflexão, deixando espaço aberto à ocupação desse vazio de amadurecimento do pensamento para preenchimento por populistas oportunistas que podem comprometer o futuro.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Grand Hotel Europa" de Ilja Leonard Pfeijffer


 Excertos

"O que a Europa tem a oferecer ao mundo é o seu passado. À medida que o velho continente perde influência, a todos os níveis, no palco mundial talvez tenhamos pouca escolha além de vender o nosso passado."

"era um lugar fantástico. Raramente tínhamos visto tanta pobreza autêntica num país muçulmano."

"o turismo destrói precisamente aquilo que o atrai."

Há poucos romances cuja leitura me marcou o suficiente para mudar significativamente o meu pensar ou o modo como vejo o mundo à minha volta: "Grand Hotel Europa", do neerlandês Ilja Leonard Pfeijffer, fica neste restrito conjunto de obras e moldou o que penso ser a Europa de hoje, a perceber melhor o seu declínio e o papel que cabe ao turismo no disfarçar do declínio do Velho Continente.

Grand Hotel Europa tem como protagonista o próprio Ilja Leonard Pfeijffer, o seu alter-ego relata o fim da sua relação com uma italiana genovesa de famílias tradicionais e especializada em arte antiga, nomeadamente Caravaggio de quem procura o que seria o seu último quadro desaparecido e que permite um périplo por vários locais no livro. Ilja Pfeijffer narra ainda os contactos com outras pessoas do hotel para onde se mudou para escrever as memórias sua anterior paixão e onde encontra personagens tão diversas como uma poeta feminista, um polaco filósofo e conhecedor do passado e presente do velho continente, um grego petulante, um mordomo cheio de recordações do passado glorioso do estabelecimento que acolhia a aristocracia europeia e o porteiro refugiado do norte de África cheio de aventuras e que absorveu a Odisseia de Homero. Em paralelo, o escritor narra a sua intervenção num grupo de cultura subsídio dependente da União Europeia num trabalho sobre o turismo e que pretende ser uma obra de arte sobre o turista típico. Ilja conta ainda no que se transformou Veneza que se afunda devido ao turismo, local de um emprego da sua anterior companheira e ainda relata sobre outras cidades que colocam a nu o que é a Europa de hoje e os efeitos do turismo e os diferentes tipos de turistas.

O romance não é assim apenas uma obra de ficção, é também um ensaio socioeconómico sobre a atual Europa, a sua história e a força do seu passado pujante. Não conheço livro que melhor descreva o que é este Continente hoje (a obra anterior à guerra da Ucrânia) e, em simultâneo, é um manifesto sobre o que o turismo em massa está a fazer à Europa e o reconhecimento da inexistência de alternativas para este extenso museu visitável por todas as economias que se estão a sobrepor a ele. O livro contém histórias que são metáforas do triste destino desta que foi uma recente potência de âmbito planetário.

Uma escrita cáustica, sarcástica, por vezes irónica, noutras hilariante e também com passagens chocantes e deprimentes e com momentos íntimos da sua relação recém-terminada para apimentar a narrativa. Não considero uma obra-prima literária, é típico romance pós-moderno que mistura a factos com ficção para fazer um retrato da atualidade, que não é bonita e lê-se com facilidade, prazer, por vezes com algum suspense e, sobretudo, levanta pistas para a reflexão com passagens muito fortes.

Recomendo a qualquer leitor, em especial a todos colecionadores de múltiplas viagens de férias. Gostei muitíssimo.