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sábado, 23 de novembro de 2013

"As velas ardem até ao fim" - Sandór Marai


"As velas ardem até ao fim" de Sandór Marai é daquelas obras pouco volumosas mas com uma densidade de conteúdo que os torna num grande livro e foi o primeiro que li deste escritor húngaro.
Uma infância, adolescência, juventude e início da vida adulta marcada por uma grande amizade que sobrevive e acompanha todas as etapas de crescimento do protagonista, militar de carreira, que de repente viu o amigo fugir deixando um conjunto de indícios de traição e semeando o veneno da dúvida.
Quarenta e um anos depois, na velhice de ambos, o amigo anuncia-se, combinam reencontrar-se num jantar a dois no palácio do general na sua propriedade de caça, mas devido a um apagão este dá-se à luz das velas. Então todos os fantasmas levantados, factos ocorridos e recordações do passado vêm à refeição e o eterno desejo do protagonista esclarecer o passado impõem-se no serão.
Na busca das respostas do ocorrido há tanto tempo, desenvolve-se uma densa dissertação sobre o que é a amizade, a sua importância na vida e os compromissos e responsabilidades entre amigos. Será tudo isto suficiente para se revelarem todos os segredos que os separaram?
Um livro que, mais que um romance, é um ensaio sobre a amizade, o amor, a traição a paixão e os gostos na diversidade da humanidade. Um excelente e denso texto de alta qualidade literária e profunda reflexão.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Quantas Madrugadas tem a Noite - Ondjaki

Editorial Caminho

Diante de umas "ngalas" (cervejas), alguém aproveita o ambiente de Luanda para alimentar a conversa pela noite dentro, relatando de modo frenético as desaventuras de um grupo em torno do corpo de um amigo que pelos vistos não encontra as condições para o seu descanso e funeral, tantas são as burocracias e os interesses que se intrometem no assunto, e assim a estória vai-se arrastando pela madrugada alimentada pelo álcool.
Em estilo coloquial e com a liberdade que um relato regado pela cerveja permite, Ondjaki, de forma irónica e divertida, expõe o linguajar de Luanda: o seu vocabulário próprio, a gíria das pessoas dos bairros populares, o calão, os estrangeirismos, as variações de sintaxe e os efeitos ortográficos para expressar a entoação e a pronúncia das gentes da capital de Angola.
O texto é um magnífico trabalho linguístico e estilístico da diversidade da língua, aspeto assumido mesmo pelo narrador quando fala do modo como trata o Português. Interessante também a caracterização das vivências do povo e de Luanda: uma sociedade alicerçada no estilo de vida africano, mas com influências culturais do colonialismo e da atual globalização, o que gera uma miscigenação única e brilhantemente retratada neste despudor regado a ngalas necessárias para estender a conversa pelas madrugadas da noite.
"Quantas Madrugadas Tem a Noite" é um livro divertido mas a ler, sobretudo, para descobrir a genialidade de Ondjaki na forma de mostrar e tratar a língua Portuguesa na sua variante de Luanda.

domingo, 17 de novembro de 2013

"A Varanda do Frangipani" - Mia Couto

Editorial Caminho

Depois do prémio literário Neustadt atribuído pelo conjunto da obra a Mia Couto, um galardão quase com a mesma importância de um Nobel, decidi revisitar este escritor moçambicano que inunda os seus livros com vocabulário do seu País e trabalha as palavras de forma a evidenciar o Português falado na sua Pátria.
"A Varanda do Frangipani" (árvore daquela região que altera os períodos de floração com os de folhagem caduca, esta característica uma raridade naquelas latitudes) é um pequeno romance policial, do tipo fantástico que decorre num remoto lar de idosos e serve de parábola à decadência de Moçambique no pós-guerra colonial e civil quando o Pais entrou em paz, mas com um sistema corrupto e cheio de feridas por sarar. 
Ao ritmo calmo e nostálgico da velhice vai decorrendo o trabalho de detetive de onde brotam as feridas do colonialismo, a morte dos antigos valores e cultura e os ecos do estado a que o País chegou: onde a corrupção é o capim em que todos se alimentam, onde ser-se honesto é ser um fruto bom numa árvore podre sujeito à rejeição ou à contaminação.
Apesar deste ambiente, é um livro onde a esperança sobrevive, há humor, muita ternura, é de leitura fácil e o potencial do grande escritor está todo na obra. Recomendo a sua leitura.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

História de Duas Cidades - Charles Dickens

Editora Civilização

"História das duas cidades", também conhecida por "Conto das duas cidades", de Charles Dickens é um romance de amor - ódio, leviandade - dedicação, vingança - arrependimento que se gera no absolutismo francês, com todos os abusos repressivos da aristocracia sobre o povo, e amadurece no período de absoluto terror da revolução francesa com todos os abusos da desforra desse mesmo povo sobre a aristocracia e a história decorre entre Paris e Londres, capitais de desconfiança mútua. 
Ora repetindo uma ideia ou palavra, ora com uma ironia subtil que atravessa a obra, ora com um sentimentalismo exagerado típico do período romântico e alimentando a curiosidade com insinuações de acontecimentos futuros, Dickens coloca a nu as injustiças sociais dos sistemas em vigor nas duas cidades na segunda metade do século XVIII e as suas consequências devido ao carácter de personagens de vários estratos sociais e morais, cria até uma representativa de todos os excessos da aristocracia francesa "Monseigneur" (Meu senhor).
Assim nasceram as "... vozes de vingança, e faces endurecidas nas forjas do sofrimento a tal ponto que nenhum vestígio de piedade podia fazer nelas qualquer mossa." Assim nasce a revolução francesa e a inicialmente designada "República Única e Indivisível, da Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte", esta última palavra, cujo tempo e a vergonha parecem querer apagar da verdade da história, com a ajuda da nova Santa Guilhotina, aliada à vingança levam a aristocracia a ficar no "registo condenada à destruição e ao extermínio." Nesta deixa de haver suspeitos, inocentes, crianças, doentes, parentes ou simplesmente sentimentos, pois a fúria da populaça é insaciável e a todos condena inclusive os bons e justos da estória  "Digam ao vento e ao fogo onde devem parar; mas não a mim." mas na obra não faltam os sensatos, dedicados e heróis que tudo doam em favor dos justos.
O romance é tido como um dos relatos mais fieis da selvajaria da vingança em França depois da tomada da Bastilha em 1789, sobretudo no período de 1792-94. Funda-se em vários relatos documentais e é  uma visão da revolução de um estrangeiro independente, com isenção face às partes em conflito. Por vezes tem a ansiedade de um thriller, noutros o anticlimax para reflexão e é um apelo à justiça social para que não se "Voltem a lançar à terra as mesmas sementes de ganância e de tirania, e colherão sem dúvida os mesmos frutos condizentes com as espécies semeadas." Altamente recomendável este livro.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"Guerra e Paz" de Lev Tolstoi - Análise global da obra

Conclui a leitura de "Guerra e Paz" do grande escritor russo Lev Tolstói. Um dos romances mais importantes da história da literatura mundial e apesar da sua dimensão, cerca de 1700 páginas em 4 volumes, é de fácil leitura pela linguagem acessível, elegante e linear, com a vantagem de cada tomo ter uma espécie de final, pelo que embora se aconselhe a leitura sequencial e completa, é viável parar-se no termo de cada volume.
A obra tem o título original de "Guerra e Mundo" e percebe-se bem este nome depois de lida, apesar de como ficou conhecida no ocidente. Efetivamente o romance é uma estória que envolve personagens fictícias da aristocracia russa de São Petersburgo e Moscovo e líderes da guerra napoleónica e esta serve de reflexão sobre a humanidade, a sociedade e a luta entre povos. É uma obra que seguramente amadurece o leitor e corresponde a um pico superior da literatura, como forma de arte e formação.
No 1.º livro apresentam-se as os protagonistas da novela até aos alvores da progressão Napoleão para leste com a ida dos russos à guerra fora do seu país, terminando com a famosa batalha de Austerlitz.
O 2.º volume mostra o dia-a-dia da aristocracia russa nos salões e clubes sociais de elite em tempo de paz: os amores, paixões e vícios envolvendo idealistas, oportunistas, acomodados, inquietos, ricos, falidos, cidadãos eticamente fortes ou de moralidade duvidosa, progressistas e conservadores face à revolução revolução francesa.
O 3.º volume mostra a instabilidade social da invasão de Napoleão até Moscovo, faz um retrato da guerra, da sociedade rural russa onde a aristocracia age como dona do povo e faz uma crítica de como a história apresenta os grandes acontecimentos da humanidade, com reflexões sobre o papel do herói, do cidadão anónimo, das sementes revolucionárias e dos valores por que se luta que podem desembocar na vitória ou derrota de um exército ou de um povo, independentemente dos atributos atribuídos aos líderes.
O 4.º volume é a volta de Napoleão a casa com o esgotamento físico, psicológico e erros estratégicos que levariam à sua própria derrota só com a paciência do exército russo sem necessidade de uma intervenção bélica. Isto ntercalado com reflexões sobre o que move os povos e demonstra as lideranças como titeres reféns dos acontecimentos Segue-se a 1.ª parte do epílogo com o destino final dos personagens e a estória acaba aqui. A 2.ª parte é um apêndice pós-romance, são as 50 páginas difíceis da obra feitas em forma de ensaio sobre erros de análise dos historiadores e uma reflexão dialética à cerca da liberdade e das condicionantes que controlam as decisões, menorizando o papel dos heróis na história da humanidade e inclusive da cultura e das ideias filosóficas de uma época.
As principais dificuldades de leitura da obra são: o receio inicial da sua dimensão (levei só um mês a ler); as numerosas citações e algumas passagens na língua culta da época, o francês (traduzido em rodapé); e para alguns a intercalação de reflexões sobre a história e o papel dos líderes e dos povos. Um romance que todos deveriam ler.