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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

"O espião que saiu do frio" de John le Carré


Excertos
"Que julgas tu que os espiões são? Sacerdotes, santos e mártires? São um deplorável cortejo  de tolos vaidosos, e também traidores, sim;"
"Não podemos construir o comunismo sem acabar com o individualismo."

Uma obra com mais de 50 anos, e considerada um clássico no seu género e talvez o romance de espionagem mais famoso da história, "O Espião que saiu do frio", do inglês John le Carré, o grande mestre no estilo e ele próprio um ex-expião, narra um conflito sangrento no jogo da obtenção de informações secretas entre os dois lados do muro de Berlim nas décadas de 1950-60.
Leamas dirige a célula de espionagem da Inglaterra em Berlim Ocidental, onde possui uma rede de agentes do outro lado, só que uma mudança de liderança a leste leva à morte em série dos seus informadores e à destruição da sua célula. No regresso a casa é desafiado a abandonar os serviços, a se humilhar publicamente para ficar desacreditado e ser assediado pelos seus adversários, para deste modo poder deslocar-se à Alemanha Oriental e proceder à sua vingança. Só que pelo meio surge uma relação amorosa e do outro lado o desenrolar do processo está cheio de surpresas, é que no jogo de traições e no uso dos seus agentes de forma enganosa nenhuma das partes se pode deixar atada por princípios e os logros vêm de quem está do nosso lado.
Um romance que além do suspense, junta reflexões sobre a ética no confronto entre o modelo de liberdade individual no ocidente e o da sobreposição dos interesses coletivos à pessoa então no oriente europeu, levados ao extremo no mundo secreto da espionagem no auge da guerra fria que discretamente foi sangrenta e cheia de traições.
Fácil leitura, escrita escorreita e um retrato de uma realidade discreta que ainda sobrevive no conflito diplomático e de interesses entre os Estados que raramente vem ao de cima. Gostei.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Contos de Clarice Lispector


Este livro contém 61 contos daquela que é uma das principais artífices da escrita em língua portuguesa de todos os escritores de expressão lusa no século XX: a brasileira Clarice Lispector, nascida na Ucrânia. Este conjunto tem contos de extensão variada e só não reúne os que foram publicados pela primeira vez sob o título de obra "Laços de Família", pelo que poderíamos dizer que é uma coletânea de quase todos os contos desta autora.
Os contos não são uniformes em termos de extensão: vão de apenas uma única página até próximo da trintena; as temáticas são diversas, desde questões sociais, infância, problemas da degeneração pela velhice e indo até aos desejos corporais mais básicos; e o estilo de escrita é diversificado, até porque entre os mais antigos e os mais recentes há um espaço temporal de mais de três décadas, contudo todos estão excelentemente escritos, uns numa linguagem linear simples, como "Viagem a Petrópolis", outros com monólogos interiores e fluxo da consciência com técnicas modernistas que requerem um certo esforço para a compreensão da narrativa "Seco estudo de cavalos". Também não posso dizer que gostei de todos igualmente, uns deram-me grande prazer de ler, outros não tanto e alguns até foi com sacrifício que concluí a sua leitura.
Nesta coletânea, os contos estão arrumados e sequenciados de acordo com os livros em que foram inicialmente publicados, ao todo cinco, sendo evidente que a harmonia dentro destes conjuntos é maior que o todo, mas o que mais destaco é a mestria do domínio da escrita e da língua, alguns textos serão morais, outros amorais e até alguns por vezes a roçar o imoral ou a expor os íntimos desejos de uma mulher como os que foram publicados em "A via crucis do corpo", talvez os mais fáceis mas que gostei menos.
Antes apenas lera o romance/novela "A paixão segundo G. H." que adorara, alguns contos retomam o estilo e as obsessões: baratas, cabelos ruivos, náuseas animais e deambulações em torno de pormenores. Esta leitura serviu sobretudo para admirar a genialidade da escrita.

sábado, 19 de janeiro de 2019

"O Agente Secreto" de Joseph Conrad



Excertos
"é provável que, à sua maneira, os revolucionários mais ardentes nada mais façam do que procurarem a paz em comum com o resto da humanidade"

"A loucura e o desespero são uma força."

Uma citação deste livro numa leitura recente despertou-me interesse na obra, já que o polaco, naturalizado inglês, e um dos expoentes literários britânicos do início do século XX Joseph Conrad, que está entre os escritores que venero, sobretudo devido à sua abordagem profunda aos dilemas de consciência e ação na pessoa humana, tão bem representado em "O coração das trevas" capacidade que até foi depois transposta para uma magnífica obra cinematográfica, passada num ambiente e época bem diferente por Francis Ford Coppola no filme Apocalipse Now.
No livro "O Agente Secreto" da imagem é referido na contracapa como policial, mas é muito mais do que um romance deste género. Tem polícias, tem terroristas e teias de espionagem, mas é sobretudo uma história onde se aborda piscologicamente os dilemas, os vícios destes grupos de atividade, eventuais convicções e os seus frequentes receios, numa história onde o mais evidente são diálogos equívocos magistralmente construídos entre as personagens que misturam: catástrofe, crime, medo, solidão e busca de paz interior - o que logicamente não é possível neste tipo de intriga politica e ideológica. Mais importante do que a saída do confronto entre espiões e policias, a obra salienta o que cada um sente e pensa à medida que a ação, fiasco terrorista e investigação vai avançando. As personagens não são ocas obsessivas por a descoberta do mistério, são seres humanos densos, com sonhos, ideias do mundo e do outro que tentam sobreviver no seu trabalho nem sempre legal.
A estória conta como o Sr. Verloc - um quarentão, calado, calmo e casado com uma mulher bem mais nova que tem um irmão talvez autista, sendo estes dois filhos da anfitriã de quem ele fora hóspede e agora todos membros do seu agregado familiar - possui uma vida de dupla de espião a um serviço estrangeiro e está ligado a movimentos anárquicos e socialistas. Os rendimentos de Verloc são disfarçados com uma loja de produtos de cariz erótico e ainda dando informações à polícia. Tudo corria bem até que uma mudança na embaixada altera a estratégia e o obriga a fazer um atentado em Greenwich para culpar o movimento anarquista e levar o governo de Londres a rejeitar o acolhimento de refugiados ligadas a esta ideologia.
Verloc não tem estofo para a empreitada, mas a necessidade de manter a família leva-o a concretizar o ato que acaba num fiasco e tragédia que arrastará cunhado, mulher e as boas relações com o polícia, um herói reconhecido cujos hábitos estão em confronto com o seu novo chefe que não se deixa levar no logro se estar perante terrorismo de anarquistas, o que levaria a Inglaterra a perseguir inocentes ex-criminosos do seu círculo social que o detetive quer culpar.
Desencontros de mentalidades e equívocos de como pensa o outro levam a imprevistos, cujo leitor reconhece serem fruto dos erros de análise psicológica dos personagens.
O estilo de escrita é de grande qualidade literária, muitas vezes ausente em obras policiais, e colocado ao serviço da descoberta do interior das pessoas, criando um romance de grande envolvimento analítico que é uma obra-prima por conjugar o policial, a reflexão e a boa literatura. Gostei muito.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

"2084 O Fim do Mundo" de Boulalem Sansal


Excertos
"correr em direção à queda é uma inclinação muito humana."

" a vida do crente perfeito é uma continuidade ininterrupta de gestos e palavras que se repetem, sem que lhe reste qualquer espaço para sonhar, hesitar, refletir; descrer, eventualmente, crer, talvez."

"O escravo que se reconhece escravo será sempre mais livre do que o seu senhor, mesmo que este seja o rei do mundo."

Interessou-me de imediato o tema deste romance, uma visão distópica futura em resultado do aparecimento de uma idade das trevas devido à tomada do mundo por uma ditadura global religiosa, uma obra do argelino Boulalem Sansal. "2084 O Fim do Mundo" foi vencedor do prémio da academia francesa em 2015.
O título pretende deixar clara a relação com o romance "1984" já falado neste blogue, um novo alerta de que certos maus sinais do presente podem conduzir ao fim da liberdade e a um regime de poder absoluto, só que a via seguida para esta distopia não é a apresentada antes por Orwell, agora alicerça-se num fanatismo religioso e no risco de uma guerra santa global que termina numa nova idade das trevas e ao fim do mundo como o conhecemos agora.
Ati foi exilado para um sanatório distante por tuberculose, nesse mundo questiona o seu País, o Abistão, único no mundo, onde todos são submetidos a uma fé e às suas cláusulas sem possibilidade de duvidar devido ao risco de morte, mas há noticiadas e boatos de guerras contra infiéis inimigos que não poderiam existir num Estado global. A elite religiosa governa e vive num espaço fechado em condições muito diferentes das consideradas conformes para o Povo. Após a sua cura, no regresso encontra um arqueólogo que descobriu uma cidade de antes da conversão da humanidade e este dá-lhe a entender que a história pode ser muito diferente da narrada oficialmente. Apesar da semente da dúvida estar lançada, a sua reinserção do sistema obriga-o a seguir as regras, até que se cruza com Koa em quem encontra a mesma curiosidade e perguntas. Começa então uma nova caminhada onde vão descobrir guetos de infiéis que sobrevivem em conluio com a elite, servindo a fundamentos da luta e a interesses da classe alta, empreendem uma viagem à capital, a cidade santa, onde se cruzam com  líderes num mundo de luxo mas num conflito fraticida para conquista total do poder, conhecem alguém com nostalgia do século XX que poucos sabem ter existido, memórias de uma época com problemas mas em que havia liberdade e não apenas submissão a uma lei religiosa criada à medida dos interesses dos líderes... uma revolução está em curso e eles serão peças usadas neste xadrez de uma sociedade organizada para a submissão do Povo.
Apesar da contracapa falar da globalização do islamismo como mote da obra, não sei se por questões de segurança do escritor, a verdade é que a estória decorre no domínio de uma nova religião que não é nenhuma das grandes da Terra no presente, embora certas características indiciem qual lhe terá servido de raiz principal, veja-se a máxima "Não há outro deus senão Yölah e Abi é o seu Delegado", mas na obra é assumido que resultou do aproveitamento de oportunistas gananciosos de outra anterior com valores, podendo até argumentar-se que tal só terá ocorrido no futuro sem acusar qualquer líder religioso até hoje, mas a similitude com algumas ideologias e radicalismos do presente torna esta obra num alerta para o caminho que a humanidade pode estar a trilhar. Contudo penso que nenhuma grande religião se pode sentir isenta dos vícios perigosos apontados em 2084.
Os capítulos tem características diferentes ao longo do desenrolar da estória, o primeiro é sem dúvida mais filosófico com uma análise sobre o aproveitamento religioso como arma de submissão física do povo e da sua mente capaz de travar a liberdade de pensamento. A seguir vêm a tentativa de explicar o nascimento da nova civilização e as incoerências do seu modelo, depois a caminhada da descoberta até ao clímax, no final da ainda se levantam alguns aspetos que dão que pensar sobre as virtudes do presente que se podem irrefletidamente deitar fora.
As referência a 1984 são muitas não só no texto, mas também nalgumas situações da narrativa e citações, mas é uma obra totalmente diferente da de Orwell. Também tem alguns aspetos menos aprofundados, mas muito do seu valor está nas entrelinhas e na capacidade de nos deixarmo-nos surpreender com a imaginação de um autor que consegue falar dos perigos do fanatismo religioso, possivelmente defendendo uma sociedade agnóstica,  a partir de um país islâmico ao criar uma cultura de tal forma estilizada que não o tornou num alvo a abater pela sua liberdade de escrever um romance deste teor quando muitos outros foram vítimas de fatwas por blasfémia denunciando o mesmo que Sansal... só por isto vale a pena ler o livro, além de toda a reflexão contida no romance. Talvez isto também justifique o prémio literário alcançado e sem gerar polémicas religiosas, numa obra que é de fácil leitura e um alerta para que a humanidade abra os olhos aos sinais deste tempo.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

"Hamlet" William Shakespeare


Excertos
"Ser ou não ser, eis a questão:"
"...pois mais facilmente torna o poder da beleza a honestidade chula do que pode a honestidade fazer da beleza algo a si parecido."
"A loucura dos grandes não se pode descurar."

Após leitura da anterior obra que assumia similitudes intencionais com esta tragédia, reli novamente aquela que é uma das peças mais importantes de William Shakespeare "Hamlet", embora antes a tivesse lido em inglês, o que me obrigou a um grande esforço e a sensação de perda de pormenores. Agora reli-a em português, mas numa edição bilingue, cuja tradução procurou preservar, dentro do possível, o estilo de sintaxe original, a forma do verso e a antiguidade da estrutura, sendo viável confirmar este intento, descrito no fim do livro, comparando linha a linha os dois textos postos em páginas lado a lado.
Esta peça passa-se no palácio Elsinore na Dinamarca, onde o jovem príncipe Hamlet se vê confrontado, logo após a morte do rei seu pai, com o casamento de sua mãe rainha com o cunhado, só que o falecido aparece a pedir justiça, pois, contrariamente ao tornado público, fora morto pelo seu irmão que lhe tomara o trono e a mulher. Então o filho irá engendrar uma representação de teatro dentro da obra para desmascarar o crime, simulando loucura, que leva a perturbações que envolvem traições e o uso de servidores e nobres enganados e novas fidelidades ao poder. Assim, meio do assunto central, existem paixões em torno do príncipe, questões de lealdade e honra e peripécias nomeadamente de soberania com conflitos com a Noruega e acordos secretos com a Inglaterra que no conjunto desembocam em tragédia para quais todos as personagens.
A peça parece uma sucessão de quadros que vão montando as histórias de vingança, traição, paixão e reflexões sobre a vida, o amor, a honra, a fragilidade humana e a morte. Assim surgem importantes frases que se tornaram citações famosas desta obra, cuja leitura nem sempre é fácil pelo estilo, densidade e mesmo subtilezas escondidas, algumas vindas de conceitos da época não evidentes hoje.
Como obra e enredo está-se perante uma das maiores obras-primas da literatura mundial que vale o esforço que exige a sua leitura. Gostei muito, mesmo que por vezes tivesse de repetir a leitura de certas partes do texto para perceber convenientemente o seu conteúdo.