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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

"A Leste do Paraíso" de John Steinbeck

"A leste do Paraíso" de John Steinbeck é um romance cheio de mensagens subliminar tendo como base a vida de três gerações de duas famílias que no final do século XIX se cruzam no vale do Salinas na Califórnia. Uma é a do próprio escritor, os Hamilton, que cresceu do idealismo desinteressado e humano do seu patriarca imigrante. A outra, ficcionada, os Trask é progressivamente marcada pela luta entre a bondade e a maldade e a possibilidade de uma pessoa vencer o mal que há em si.
Steinbeck serve-se do relato bíblico do fraticídio de Abel por Caim e da oportunidade deste em se reabilitar do seu crime, refugiando-se a Leste do Paraíso, para evidenciar que a recusa do idealismo em aceitar o mal pode ser causa de rejeição de quem necessita de se reabilitar, mas cabendo a este a responsabilidade de escolher o bem.
Apesar da filosofia subjacente, a obra é muito acessível, está brilhantemente escrita, as personagens cativam o leitor, a trama é muito bem construída e o fio da história mantém um interesse continuado mesmo quando intercalado de informações históricas da época que vai desde a guerra dos Estados Unidos com o México à I Grande Guerra Mundial. Um romance magnífico que recomendo a qualquer leitor e dá para perceber a genialidade de Steinbeck, o vencedor do prémio Nobel da literatura de 1962.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Votos de FELIZ NATAL

Imagem extraída daqui

Geocrusoe deseja a todos os leitores deste blogue espalhados pelo mundo, tanto interessados em ciências da Terra como em livros ou com outros gostos, que tenham um Feliz Natal e aproveitem esta quadra para presentear os amigos com bons livros dos mais variados géneros.

domingo, 21 de dezembro de 2014

"Mataram a Cotovia" de Harper Lee

"Mataram a Cotovia" de Harper Lee, é um livro ao estilo de memórias da infância de uma menina que vai descobrindo os contrastes entre a população da sua pequena cidade no Alabama, marcada pelo racismo e o segregacionismo, e o comportamento do seu pai, advogado, viúvo cheio de valores humanos e defensor da equidade de todas as pessoas, que procura incutir de forma inteligente estes valores nos seus filhos.
O objetivo do progenitor poderia ser conseguido sem sobressaltos não fosse ele nomeado defensor de um negro contra uma acusação de um homem branco pertencente a uma família desestruturada de valores, passando então o advogado a lutar pela justiça, contra o preconceito social e ainda na garantia da proteção dos seus filhos nesta tempestade.
O romance, embora relatado pela mente de uma criança, tem uma escrita muito poética e os valores vão sendo descobertos de uma forma progressiva e até mesmo a crítica ao comportamento coletivo é temperada pelo bom senso, compreensão e exposição de algumas pessoas que educam a protagonista, sobretudo o pai. O livro é uma obra prima, marcante e foi prémio Pulitzer de 1961 e de facto é uma obra maravilhosa que recomendo a todos.

domingo, 14 de dezembro de 2014

"Os luminares" de Eleanor Catton


"Os Luminares" da neozelandesa Eleanor Catton é um romance de ficção e entretenimento com recurso ao suspense em torno de um crime ocorrido numa cidade recém-criada pela corrida ao ouro na Costa Ocidental da Nova Zelândia em meados do século XIX.
A obra, extensa (884 páginas), com uma caracterização física e psicológica profunda das personagens, apresenta uma escrita muito cuidada, rica e tradicional. O texto possui uma estrutura semelhante à dos romances ingleses e franceses característica da época em que se desenrola a estória, com vilões, prostitutas, ingénuos, vinganças, crimes, pesquisas criminais, julgamentos em tribunal e paixões num mundo onde as mulheres são uma raridade. As pistas vão sendo expostas com o desenrolar do enredo, mas apenas se esclarecem as dúvidas com um regresso aos antecedentes do crime na última parte do livro que vai até à exposição no final.
"Os Luminares" foi prémio de ficção Governor General 2013 no Canada, destinado a autores residentes ou nascidos neste País, como também Man Booker Prize 2013, entregue a obras escritas em inglês na Commonwealth. Nem sempre estes galardões correspondem a obras que me agradem pela positiva, mas neste caso fiquei muito bem impressionado, tendo ainda em conta a maturidade da escrita numa jovem então com 27 anos e o talento demonstrado, o que evidencia que se podem fazer bons romances atuais sem cortar com a tradição de escrita e estrutura literária clássica. Gostei muito e recomendo a todos a leitura.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

"Quincas Borba" de Machado de Assis


Apesar de Quincas Borba ser uma personagem fictícia introduzida no primeiro romance dos dois de Machado de Assis contidos neste livro, na realidade "Quincas Borba" é uma obra bem diferente no modo de escrita e na estrutura de "Memórias póstumas de Brás Cubas".
Agora não se está perante as memórias ou uma autobiografia do protagonista a qual envolve uma paixão de infidelidade conjugal, mas sim do relato exterior da vida do herdeiro do filósofo rico e criador do "Humanitismo" Quincas Borba: o professor rural Rubião e guardião do cão "Quincas Borba", homónimo do seu primeiro dono para lhe preservar o nome após a sua morte que opta por passar a viver na capital Rio de Janeiro.
Igualmente escrito com humor e ironia sobre os comportamentos sociais e políticos na capital, onde não falta uma paixão de Rubião, mas agora não satisfeita, mas também existe o problema da identidade e alienação psicológica do protagonista, a garantia de fidelidade do cão e duvidosa de Sofia, os amigos verdadeiros e os oportunistas de ocasião. Uma obra que penso mais madura e profunda, o romance de Machado de Assis que mais gostei. Recomendo a qualquer leitor tipo de leitor que goste de ficção pela facilidade de leitura e qualidade da sua escrita.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" de Machado de Assis


Acabei de ler o romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas" de Machado de Assis, o escritor brasileiro que para a mesma época se encontra em termos de importância ao nível de Eça de Queirós.
Na estrutura é um romance autobiográfico em estilo de memórias pessoais de Brás Cubas com a originalidade literária deste as escrever após a sua morte, embora sem referências à sua vida no além. Em termos de estilo e forma, apesar de anterior em cerca de 20 anos, este romance tem uma construção semelhante ao "Dom Casmurro" do mesmo autor já postado neste blogue, diferindo pelo seu maior distanciamento ao mundo religioso, maior proximidade à realidade política e pelo facto de agora o protagonista não ser a vítima de traições mas sim assumir o papel oposto.
Um romance cheio de ironia e humor, brilhantemente escrito, com retratos e algumas reflexões sobre o estilo de vida na cidade do Rio de Janeiro no último quartel do século XIX, cujo texto se presta sobretudo ao prazer e entretimento suave do leitor. Gostei, mas não tem a riqueza e a imaginação criativa e de análise do comportamento humano de "O alienista".
O livro prossegue com outro romance de Machado de Assis: "Quincas Borba", personagem que já aparece em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e que agora penso descobrir nesta obra escrita 10 anos mais tarde.

domingo, 23 de novembro de 2014

"A Selva" de Ferreira de Castro

Acabei de ler "A Selva" de Ferreira de Castro, talvez o romance com maior sucesso editorial internacional de um escritor português na primeira metade do século XX e compreendi agora a razão por que se tornou tão famoso esta obra de ficção mas parcialmente baseada nas memórias da vida do autor.
Um romance com um texto muito bem escrito, fácil e acessível a qualquer pessoa, uma história simples que apela aos valores humanos e denuncia a exploração do homem pelo homem sem defender nenhuma ideologia em concreto, uma descrição da floresta amazónica com uma densidade, qualidade e plasticidade visual difícil de igualar, sendo a selva a verdadeira protagonista da obra.
No romance a vida brota da Amazónia no seu potencial máximo e por isso a selva é também uma cooperante assassina na luta pela sobrevivência, os nativos surgem como o povo ameaçado no seu território que se defende perante os recém-chegados que não os sabem acolher sem os descaracterizar, o homem surge como o principal inimigo de si mesmo, independentemente da sua classe ou etnia e a personagem principal é o sonhador que vê as suas crenças desmoronarem e renasce diferente com projetos de futuro.
Ferreira de Castro, para muitos o iniciador do neorrealismo, escreve uma obra fácil e ao mesmo tempo densa, que desperta prazer e curiosidade de leitura, mas cheia de imagens fortes que divulgam a Amazónia, a história da exploração desta terra pelos europeus, a vida difícil dos seringueiros na obtenção do latex no pós-primeira grande guerra mundial, o choque de mentalidades, o aproveitamento dos mais fracos e a sua desunião e um apelo pelo valores para que o homem não seja o algoz do outro homem. Um grande romance que recomendo a qualquer leitor.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

"O Alienista" de Machado de Assis

O conto "O Alienista", onde o Dr. Simão Bacamarte estuda cientificamente alienados, escrito por Machado de Assis, um dos maiores escritores do Brasil e filho de uma Açoriana, talvez seja a gema literária escrita na língua portuguesa mais brilhante no género de alegoria ou parábola. Uma história divertida e irónica, cheia de crítica social implícita e mordaz para com o ser humano, independente da sua classe, profissão ou grau de formação.
Na edição da Porto Editora, brilhantemente ilustrada, este conto ao nível de originalidade e de crítica nada fica atrás de "Animal Farm" de George Orwell, tendo sido escrito várias décadas antes, o que mostra o valor literário e a rica imaginação do seu autor.
Neste mundo ser alienado não será tentar sobreviver com uma vida de virtudes numa sociedade desequilibrada, egoísta e cheia de oportunistas? É esta a interrogação ou a descoberta do alienista ao tentar recolher e tratar os doentes psicóticos da sua cidade e ao perceber o comportamento individual e coletivo desde os seus habitantes mais humildes até às suas gentes mais importantes. 
Um pequeno livro que é uma obra-prima, divertida, de fácil leitura e brilhantemente escrito, mas que convida a uma grande reflexão. Um conto que recomendo a todos a sua leitura e para o qual nunca será tarde, nem cedo para se ler, tanto na adolescência como na velhice e sempre uma fonte de prazer.

domingo, 16 de novembro de 2014

"Mar Morto" de Jorge Amado

Jorge Amado em "Mar Morto" expõe a vida arriscada e miserável dos homens do mar ligados ao saveiros de São Salvador que uniam pela água as cidades na baía de Todos-os-Santos e do rio Paraguaçu nos anos de 1930. O romance é escrito de forma poética e destaca o sofrimento das mulheres destes homens devido à grande incerteza de garantias do seu futuro e dos seus filhos devido à grande probabilidade de perda dos seus maridos no mar.
O escritor utiliza o amor entre Guma, saveireiro, e Lívia, criada na cidade, para intensificar esta realidade e evidenciar os contrastes entre os pobres do bairro do porto e certos exploradores urbanos.
O livro vale muito pela forma poética do texto e também pelo retrato social, pois que a trama não tem a força de outras obras maiores passadas do autor neste Estado da Bahia, mas a obra dá imenso prazer à leitura devido à riqueza literária da sua prosa. Gostei e recomendo.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"A Grande Arte" de Rubem Fonseca


Poucos livros do género policial e banditismo têm a genialidade de conjugar as grandes emoções deste tipo trama e ser em simultâneo uma obra de arte literária que deveria ser de culto. Rubem Fonseca consegue em "A Grande Arte" fazer uma paródia cheia de ação e referências culturais ligada ao submundo do crime, prostituição, narcotráfico e advocacia de investigação com um protagonista do tipo herói falhado, exceto na sua obsessão e sucesso com as mulheres, mas que gera simpatia no leitor, e criar um romance que é uma obra-prima.
Esta edição tem um prefácio de Francisco José Viegas e um posfácio de Vargas Llosa que fundamentam perfeitamente por que este romance violento, divertido e de puro entretimento deve ser de facto uma obra de referência no seu género.
Rubem Fonseca na sua escrita fria e do género reportagem acelerada, memórias e algumas brejeirices, intercalada de expressões irónicas e de riqueza cultural, cria uma trama única e que mostra como se transforma uma temática para muitos considerada menor num romance de nível literário superior do melhor ou o melhor que já li no género, que justifica o escritor ter o prémio Camões e  valoriza a literatura escrita em Português. Um livro recomendável e acessível a qualquer leitor.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

"O século primeiro depois de Beatriz" de Amin Maalouf


"O Século Primeiro depois de Beatriz" do libanês Amin Maalouf é um romance escrito em forma de crónica/memórias de um idoso sobre uma época futura e distópica em resultado não da explosão demográfica que tememos mas de um controlo artificial da natalidade que favorecia o nascimento de rapazes em detrimento das raparigas para satisfazer os anseios e as preferências históricos radicadas em muitos homens em várias sociedades.
Tirando proveito do desequilíbrio na relação entre os dois géneros surgido nesse período, Amin Maalouf faz uma intensa denúncia de muitos dos defeitos da atual sociedade global: desde a desigualdade norte/sul, o racismo, os complexos entre povos colonizadores e colonizados do passado, os mecanismos políticos de controlo de etnias, ditaduras africanas e oportunismos dos dirigentes das nações e, apesar de negritude do ambiente social, é em simultâneo uma homenagem cheia de ternura à mulher no seu papel de companheira, filha e estabilizadora da paz no seio da humanidade face à prevalência das tendências violentas no género masculino.
Tendo sido escrito há cerca de 20 anos, é interessante ver que a obra é anterior ao domínio da internet e da computação na sociedade, aspeto que o autor na previu, pelo que apesar de se retratar uma sociedade futura à data da obra esta decorre no primeiro quartel do século XXI que já vivemos, mas os mecanismos de difusão e de comunicação entre as pessoas no livro são os tradicionais do final do século XX, mas os vícios denunciados são bem atuais. Um livro que gostei e recomendo.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"Os transparentes" de Ondjaki


Editora Caminho

"Os Transparentes" de Ondjaki é uma espécie de retrato da vida de Luanda pós-guerra civil em estilo que se pode dominar como uma versão de realismo mágico africano e com uma exposição do "linguajar" daquela cidade de Angola. Aqui se cruzam etnias das várias províncias do País, memórias e feridas dos tempos violentos, inequidade social, corrupção, domínio absoluto e demagógico do poder político instalado e uma estratégia típica de sobrevivência que gera uma mistura cultural muito original e brilhantemente exposta no romance.
Ora irónico, ora sarcástico e por vezes sentimental e triste, o romance desenrola-se sobretudo em torno das pessoas que vivem e se cruzam num prédio de apartamentos no bairro da Maianga com níveis culturais, profissões e estilos de vida diferentes que serve de denúncia da maioria dos problemas da cidade.
Possui uma escrita criativa que caracteriza uma tendência dos tempos atuais, em que existe uma vontade de experimentalismos na redação do texto em termos de ortografias, pontuações e uso de maiúsculas que se pode gostar ou não, mas que neste caso não me parece acrescentar ou tirar o interesse que a narração intrinsecamente possui. Gostei do livro, o qual é de fácil leitura a qualquer pessoa.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

"Agosto" de Rubem Fonseca


"Agosto" de Rubem Fonseca é uma viagem alucinante que mistura factos reais e ficcionais de jogo, corrupção, crime, política, prostituição e investigação criminal ao longo do mês que desembocou no suicídio do Presidente do Brasil Getúlio Vargas.
Escrito numa linguagem popular e sem almofadas para suavizar o choque da frieza dos comportamentos criminosos e do enredo e interesses partidários, o autor traça vários retratos que mostram as diversas realidades do que foram aqueles dias de crise política na violenta cidade do Rio de Janeiro, onde a vida humana pouco vale, tanto para autoridades públicas, como para redes do submundo e onde a honestidade e os princípios nas pessoas correspondem à situação de exceção.
Rubem Fonseca não faz julgamentos de forma direta, apesar de o desajustamento social do protagonista e honesto comissário servir de contrapeso de reflexão sobre a sociedade. O livro lê-se de rajada, tal como são atirados de forma sucessiva o evoluir dos acontecimentos daqueles dias.

sábado, 18 de outubro de 2014

"O homem sem qualidades" de Robert Musil - Volume III

Que se poderá dizer de um volume de um romance que é constituído pelos capítulos rejeitados pelo escritor para completar o anterior tomo, mais aqueles que ele escreveu para dar a continuidade à história mas que não concluiu antes de morrer e ainda os esboços de versões de capítulos que davam um rumo muito diferente aos acontecimentos antes publicados e alterados por Musil?
É assim o terceiro volume de "O homem sem qualidades" que termina com prefácios e posfácios do autor à sua própria obra em estilo de crítica ao romance.
A verdade é que o volume III tanto pode ter capítulos fastidiosos por serem sobretudo de uma inércia de repouso associada aos mais alto estado a que o amor pode chegar que inibe a ação, onde se aproveita para por em confronto ideias, sentimentos e conceitos filosóficos, como pode ser emotivo e entusiasmante ver versões alternativas mais arrojadas de dar continuidade à história que Musil se inibiu de seguir, não sei se por questões de moral, se por desembocarem num beco, e ainda é divertido ler textos preliminares dos capítulos anteriores não corrigidos nem ampliados nas suas fases primitivas e com anotações antes da serem fixados no romance.
Na verdade o romance não foi concluído, mas existem versões que concluem as principais partes não rematadas anteriormente, outras que as reabrem e o mundo da reflexão filosófica e suas contradições é posto à prova. Confesso que gostei, não consegui deixar de a ler, mesmo aquelas partes que parecem discussões etéreas intermináveis... mas nunca serão capítulos fáceis.
O amor/paixão entre os dois irmãos num estado de inação nos capítulos tornados definitivos, muito platónico e pouco sensual, fez-me lembrar o sexto andamento da Sinfonia Turangalila de Messiaen "Jardin du sommeil d'amour" que integro abaixo.

domingo, 12 de outubro de 2014

"O homem sem qualidades" de Robert Musil - Volume II


O volume II de "O homem sem qualidades" apesar de publicado três anos depois, vem em perfeita continuidade do primeiro, tendo como principal particularidade a introdução da irmã de Ulrich, fisicamente muito semelhante a este, que funciona como um avatar do protagonista para desempenhar o comportamento contrário dele. Embora esta levante as mesmas questões filosóficas ao irmão com a profundidade característica da obra e não pareça discordar dele, na prática, a imperfeição dos seus impulsos não a impede de agir contra a moral e valores defendidos de modo consciente.
Assim, se no primeiro volume as discussões e os problemas de moral bloqueiam o agir e as decisões, no segundo, apesar de se analisar os temas como as questões de moral, as preocupações do espírito e da alma de um povo como num ensaio, mesmo perante as contradições no mundo sobre as ideias e as múltiplas culturas do império Austro-Húngaro, agora, num clima de exaltação, tomam-se posições e a palavra de ordem é: ação.
Neste confronto irmão-irmã que se completam, sente-se que se vai desenvolvendo um sentimento fortíssimo que roça a paixão ou mesmo o amor, oculto à sociedade, pois tal seguramente vai contra todos os seus princípios e mesmo dos seus intervenientes, ficando em aberto para o volume seguinte a tentativa de resolução das consequências das decisões e ações tomadas no fim desta parte do livro.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

"O homem sem qualidades" de Robert Musil - Volume I



"O homem sem qualidades" de Robert Musil é um extenso romance de ficção cujo primeiro volume foi publicado em 1930 e reflete sobre as contradições do império austro-húngaro e da aristocracia em Viena que vive em torno do protagonista Ulrich e de um evento para assinalar de forma única os 70 anos de reinado do imperador Francisco José e deste modo marcar a importância do país no mundo e, a apesar do peso da cultura germânica, a sua distinção do ser alemão da Prússia.
A obra tem a particularidade de, com a guerra a insinuar-se, os personagens alheios à ameaça mergulharem em debates filosóficos sobre o bem, o mal, a diferença de alma e espírito no indivíduo e na sociedade, a importância das ideias e o papel da cultura e da moral, bem como a evolução destes aspetos no tempo até à época dos acontecimentos. Nesta dissertação o romance faz uma ponte entre a pura ficção e o ensaio, onde se destaca Ulrich,  o homem sem qualidades devido à profundidade com que aborda as temáticas e busca da perfeição e exatidão que lhe impede a ação, à semelhança do que acontece ao nível das decisões no seio da organização das celebrações, o que permite fechar um ciclo de pensamento neste volume.
Pela profundidade filosófica, ideias abstratas e personagens contraditórios, o romance evolui lentamente e com uma grande densidade de conceitos e pensamentos históricos, que, apesar de magnificamente escrito, dificultam a apreensão de todas as questões e justifica o facto de ser uma obra de culto erudito.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

"O mistério da estrada de Sintra" de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão

Por norma, não leio obras de ficção em formato digital, o denominado ebook ou livro eletrónico, ao contrário do que acontece com ensaios sobre socioeconomia e política atual. Todavia tenho descarregado romances antigos, sobretudo de autores nacionais, que em princípio não compraria numa livraria em concorrência com nova literatura que surjindo ou já são difíceis de encontrar. Isto como salvaguarda de surgir a oportunidade de os poder ler um dia e tal como já referira neste blogue.
Assim, recentemernte a a partir da sítio do Projeto Adamastor, acedi, descarreguei e li "O Mistério da estrada de Sintra", uma obra conjunta de Eça de Queirós e de Ramalho Ortigão publicada pela primeira vez em folhetins no jornal Diário de Notícias em 1870.
Um romance que começa como um "thriller" mistério em torno de um crime, narrado em formato epistolar e que com o tempo se vai transformando numa história romanesca de paixão, ciúme e questões de moral em pessoas da aristocracia lisboeta cruzadas com princípios de honra inglesa da época vitoriana e onde tudo fica no fim esclarecido e justificado.
Não sei exatamente quais as partes que são de Eça, mas suspeito pelo estilo de escrita, de qualquer forma é uma obra de juventude destes autores, ainda sem a ironia e a crítica social que desenvolveram genialmente, sujeita aos costumes e princípios morais então em voga e ainda não despojada dos floreados sentimentais e fáceis do período romântico. Assim, a obra vale sobretudo para compreendermos a evolução literária do autores e marcar uma época. Um romance acessível a qualquer público, novelesco, mas sem a densidade e pujança do que depois estes escritores foram capazes de criar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"A Capital" de Eça de Queiroz


O romance "A Capital" de Eça de Queiroz  apesar de escrito na primeira metade da vida de produção literária deste grande escritor português, só foi publicado 25 anos após a sua morte e segundo a editora Presença a versão corrente e agora lida sofreu retoques finais por seu filho José Maria, tendo esta editado recentemente um texto com algumas diferenças.
A obra é a história desde a infância até juventude de Artur Corvelo, que de rapazola quieto, triste e tímido vai estudar para Coimbra onde se fascina pelos sonhos de ser poeta e escritor famoso, mas que de repente se vê sem bens e retido na pacata província, até surgir uma herança e rumar a Lisboa para o sucesso idealizado, aqui é rejeitado e alvo de todos os oportunistas e vícios da capital que lhe sugam o dinheiro.
Eça recorre à sua brilhante escrita irónica e mordaz para fazer uma crítica forte a todos os estratos sociais, ideológicos e estilos de vida de Portugal do último quartel do século XIX, com destaque o lisboeta, embora lentamente o romance vá perdendo vigor por se tornarem previsíveis os vários tipos de enganos e desencantos que o protagonista sofrerá  com a sua estadia na capital.
O fim desta versão tem reminiscência de Hamlet. Gostei do romance, só que não tem a grandeza e o brilhantismo de obras geniais de Eça de Queiroz que já li, como "A cidade e as Serras", "O crime do Padre Amaro" e, sobretudo, "Os Maias", entre outras.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"A Mascarada" de Alberto Moravia


"A Mascarada" do italiano Alberto Morávia tem a coincidência de denunciar o que é a mascarada política num país fictício ao longo da preparação de um baile de máscaras, no qual se simulará um atentado ao ditador para alcançar outros objetivos, sustentar vícios privados e preservar uma máscara pública, num romance onde quase ninguém socialmente é o que mostra, mas encarna uma personagem conveniente ao que lhe convém aos seus interesses egoístas, enquanto oportunamente se usa e abusa dos idealistas  e dos mais frágeis que entretanto passam pelo caminho.
O romance tem um escrita muito fácil e uma trama que se desenrola com suspense e ironia permanente, mas onde cedo se percebe que os estratagemas da mascarada irão todos falhar, exceto o aproveitamento político que consegue dar a volta e subsistir.
Um romance divertido que se lê muito bem, onde as reflexões e a ironia são ferramentas de denúncia de um mundo hipócrita e estratificado, neste caso coberto por uma ditadura, mas penso que na realidade pode sobreviver noutros regimes políticos. Gostei e recomendo a qualquer tipo de leitor.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

"A ilha" de Aldous Huxley


Acabei de ler "A Ilha" de Aldous Huxley, onde um jornalista consegue aceder e compreender o modelo de gestão social de uma ilha situada no Índico interdita a muitos estrangeiros, sobretudo a pessoas da imprensa, para proteção do seu estilo de governação, cuja forma e as prioridades são bem diferente das do resto do mundo.
O autor expõe assim uma sociedade utópica, governada por ideais para denunciar muitos dos vícios da sociedade ocidental, mas também demonstra que perante a globalização uma alternativa do género dificilmente resiste à ambição económica e política instalada na rede mundial.
A obra que aborda assuntos que vão deste a educação, a saúde, a morte, o consumismo e a religião, neste campo contrastes entre o dogmatismo e a reflexão budista, é heterogénea, tem momentos de crítica social que parecem denúncias perfeitas do mundo atual, noutros, Huxley entra em devaneios e contradições, inclusive o recurso a psicotrópicos para compreender o fim em si.
Em "A Ilha" mostra-se um mundo muito mais viável e contemporâneo que a visão futurista de "O admirável mundo novo", mas onde o ideal da perfeição e a centralidade do ser humano são os pilares da sociedade, infelizmente valores que estão ameaçados por uma civilização consumista, belicista e preconceituosa por crenças dogmáticas que não valorizam o Homem. Gostei da obra e recomendo.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

"Gaibéus" de Alves Redol


"Gaibéus", o nome que  chamavam aos trabalhadores à jorna que se dirigiam em rancho para o Ribatejo na época ceifa do arroz, de Alves Redol é reconhecido como o romance pioneiro do estilo literário do neorrealismo em Portugal em 1939.
A obra retrata o sofrimento dos jornaleiros rurais e, mais de que expor uma luta de classes, mostra a submissão e as dores a que é capaz de se sujeitar quem não concebe outro modo de ganhar o seu pão. Não que no seio do grupo não haja consciência da exploração: há quem silenciosamente se sinta revoltado, há quem sonhe com alternativas de emigração, há mulheres que se rendem ao assédio dos patrões e se sentem manchadas sem possibilidade de fuga e há doentes que recusam o facto a troco de uma moeda e até há os que se sentem um pouco superiores por se situarem mais acima na hierarquia dos explorados, sem verem que apenas são instrumentos da perpetuação dessa servidão.
O romance, que utiliza intensamente o vocabulário popular e típico desta atividade, não tem protagonistas que se destaquem na história. Tem várias personagens cujos  problemas e sonhos se vão desenrolando nos dias da ceifa e mostram as várias faces desta exploração sem direitos, mas onde é evidenciado que são seres humanos, que pensam na sua sorte e sofrem, mas sem perspetivas de futuro ou organização coletiva para enfrentar o problema. e como tal vítimas de um sistema social injusto.

sábado, 23 de agosto de 2014

"O Falador" de Mario Vargas Llosa

A leitura de "O Falador" desenvolve no leitor as sensações típicas da escrita de Mario Vargas Llosa, mas ao contrário do cruzamento cronológico de diálogos e espaços intratexto de "Conversas na Catedral" e "Casa Verde", aqui temos capítulos alternados onde nuns o narrador principal é o "autor" da obra: um cidadão urbano, racional atento à causa da aculturação indígena, sobretudo a tribo machiguenga e associado às memórias de um amigo com iguais preocupações; e nos outros, uma tentativa de relatar as tradições, mitologia, cosmologia e cultura mágica na perspetiva do homem da selva contador nativo machiguenga.
Assim se dão a conhecer não só os problemas de extinção de uma civilização, como as suas características em olhares que cruzam personagens, mentalidades e conversões ocidentais e nativas.
A obra não tem uma evolução linear da sua história, embora seja um romance cujas pontas soltas se completam e se unam ao longo do desenrolar e conclusão do romance e por vezes obrigam o leitor a mergulhar na forma que se estima ser o modo de pensar e ver o mundo através da mente machiguenga, tribo à qual este livro faz sem dúvida uma magnífica homenagem. 

domingo, 17 de agosto de 2014

"Nossa Senhora de Paris" - Victor Hugo


"Nossa Senhora de Paris" de Victor Hugo que acabei de ler é acima de tudo um trabalho de divulgação sobre a arquitetura da catedral parisiense de Notre Dame e de informação sobre a história evolutiva do património arquitetónico desta cidade, desde a sua fundação até a situação contemporânea do livro em 1831, tendo como acessório intercalado um romance de amor ao estilo romântico, tipo a bela e o monstro e cercado por peripécias de ódios e paixões extremados, bem como a situação dos marginais que sempre viveram na capital de França e sobre os quais este escritor teve frequentemente uma atenção especial ao longo da sua carreira. 
Não é por isto uma obra homogénea, ora nos dá profundas lições de história da arquitetura e do seu papel como livro aberto da cultura dos tempos até ao surgimento da imprensa, que substitui a arte de construção como principal forma de registar o saber das civilizações, ora nos dá informações do evoluir político da sociedade das teocráticas para a democrática libertada do jugo religioso, com pertinentes críticas mordazes das classes sociais e remata tudo isto com o enredo de amor do corcunda de Notre Dame, do ciúme do arcediago desta por uma suposta e bela cigana que desperta os ódios racistas, supersticiosos e das crendices típicas da idade média e de aventuras de outros apaixonados de fraco caráter para completar o retrato do modo de sobrevivência da época em Paris.
Pode-se não concordar plenamente com o papel dominante que Victor Hugo dá à arquitetura para compreender o passado, mas que este nos dá magníficas lições de história e de arte: dá; pode-se achar um pouco rocambolesco a trama de amor e das peripécias das suas personagens, mas que são úteis à informação e ao interesse da obra: são. Gostei do livro, embora não seja tão consistente quanto "Os Miseráveis".

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

"O Rouxinol e a Rosa" de Oscar Wilde


O livro corresponde a um conjunto de nove contos de Oscar Wilde, o primeiro é o que dá o nome à coletânea, unidos pela escrita poética, o relato fantástico e moralizante do tipo fábulas, ilusões de príncipes e personificações de crenças religiosas para denunciar problemas de justiça.
Como típico do período romântico, muitas vezes as situações são expostas de forma extremada, até mesmo pontualmente de forma exaustiva e cansativa, quer ao nível dos sentimentos das personagens, como da descrição da beleza, da fealdade e do património. Interessante o facto de que mesmo quando se pretende uma lição moral nem sempre o resultado final do conto é o mais lógico, Wilde tende como que, em paralelo à denúncia da injustiça, passar a ideia que a realidade nem sempre acaba do modo desejado e correto, deixando um desconforto que leva à reflexão.
Gostei da maioria dos contos, alguns podem ser clássicos pela sua moral e capacidade de entretimento, mas é evidente que Wilde não se rendia a todas as crenças e tradições morais e religiosas da sociedade em que vivia e aproveitou a escrita para uma denúncia subtil de vícios instalados nos vários tipos de poderes e cobertos por valores que o autor considera falaciosos.

domingo, 3 de agosto de 2014

"O nome da rosa" de Umberto Eco

"O nome da rosa" de Umberto Eco foi um dos principais sucessos literários na Europa em meados da década de 1980 e teve outro êxito na versão cinematográfica imediatamente a seguir, que então vi e esperei para me esquecer de quase toda a trama para ler o livro, que é talvez a obra mais famosa deste escritor italiano.
Um romance sobre livros, questões teológicas e políticas do final da idade média que se enquadra tanto no género policial, como histórico, onde, através de uma investigação em torno de uma série de crimes sucessivos de frades ligados às funções de copistas, bibliotecários, guardiães do saber e se encobrimento das heresias e conceitos perigosos para a fé numa abadia remota das montanhas da península itálica, Eco aproveita para dissertar sobre os principais conflitos entre o interesse material e político da Igreja (inclusive a pobreza desta como tema de fé) no tempo do papa João XXII e do imperador germânico Luís da Baviera, bem como expor as questões teológicas, os princípios e modo de agir da inquisição ainda antes da contrarreforma e ainda dar a conhecer a vida religiosa, as superstições e os mitos característicos nos alvores do fim da submissão da ciência ao poder religioso. Interessantíssimo o tratamento dado ao medo dos teólogos ao riso, à comédia e a dúvida se Jesus alguma vez riu.
Sob o ponto de vista policial os principais ingredientes destas obras estão presentes, todavia este são muitas vezes intercalados por profundas dissertações sobre as questões acima mencionadas, tornando-se numa fonte de informação histórica e perdendo o aspeto ligeiro típico da caça ao criminoso ou criminosos. É igualmente uma denúncia de que a paixão por livros, pelo saber e fanatismo de fé pode ser levada a extremos tais que se torna também numa obscuridade e numa ameaça. Um grande livro sem dúvida, mas nem sempre fácil pela sua enorme riqueza e profundidade temática, mas que demonstra a compatibilidade entre o gosto popular e o erudito transformando-o num clássico de literatura do género.

sábado, 2 de agosto de 2014

"O Eleito" de Thomas Mann


"O Eleito" de Thomas Mann é um dos últimos romances deste escritor e pertence à fase do autor de temática preferencial pela reflexão religiosa relativa à tendência para o mal, a possibilidade de redenção ou do incontornável castigo tradicionalmente discutidas na moral e filosofia judaico-cristã e tendo como suporte lendas mágicas, mitos tradicionais e o fantástico. 
No presente romance um monge iluminado pelo "espírito da tradição" relata as lendas mágicas em torno das origens pecaminosas do papa São Gregório Magno e da sua redenção até à escolha por Deus para liderar o catolicismo. Isto exposto num modo característico das biografias medievais de santos recheadas de mitos bestiários, milagres e fantástico, hagiografias desenvolvidas com o objetivo de serem lições de ética, moral e de teologia. Neste romance cuja escrita muitas vezes é mesmo próxima da do estilo dos livros desse período ou do barroco.
Em "O Eleito" ao contrário de "Doutor Fausto" de Mann e de Goethe, o pecado mesmo que na origem da pessoa e ética e socialmente monstruoso tem sempre perdão na misericórdia divina, desde que o culpado reconheça, se arrependa e procure a remissão através da escolha de uma via de autopunição.
Embora tenha gostado da história, não se compara às pérolas mais terrenas de "A Montanha Mágica" ou de "Os Buddenbrooks", nem à novela platónica de "A Morte em Veneza" ou à riqueza cultural do romance da mesma fase mítica "Doutor Fausto".

sexta-feira, 18 de julho de 2014

"No céu não há limões" de Sandro William Junqueira


Acabei de ler "No céu não há limões" de Sandro William Junqueira, um escritor português na nova geração que começa agora a tornar-se conhecido e comentado. Pessoalmente penso que é daqueles livros que será o tempo a dizer se foi um grande obra revolucionária com uma escrita e estrutura original ou fruto de um estilo de sucesso e de elogios de moda e passageiros.
Comecei por gostar muito da escrita com figuras de estilo geradoras de imagens bem diferentes do tradicional, depois pareceu-me que era um desenrolar de frases fortes que se queriam originais, construíam uma história, cujo enredo era secundário e se desenrolava ao ritmo da inspiração do momento.
O romance em estilo distópico passa-se num país imaginário em guerra civil na frente (terra do meio) por a solidariedade dos mais afortunados (norte) ter sido cortada pelo "cansaço" com a parte do estado vítima de uma série infortúnios (sul), pelo meio um conjunto de personagens trabalhadas, mais ou menos invulgares, entre as quais se desenvolvem vários laços de subserviência, de domínio psicológico ou físico e por vezes com passado e futuro em aberto, tal como o romance e onde o combate entre o bem e o mal em termos religiosos está sempre presente. 
Um livro que seguramente desperta paixões em quem gosta de novidades de forma, se sente atraído pelo estilo ou anda em busca daquela obra que marque a diferença das outras. Noutros, como eu, despertará algumas dúvidas de consistência do romance e da sujeição da trama aos interesses da escrita, talvez também surjam quem simplesmente desgoste. Existem alguns aspetos no estilo e na forma que fazem lembrar Gonçalo M. Tavares e penso que vale a pena ler e cada um ajuizar individualmente. Apesar de algumas dúvidas, confesso que mantive o meu interesse em vir a ler outros trabalhos do escritor.
Ouvi o editor dizer esta semana na televisão sobre o livro algo do género: "Um romance tipicamente do século XXI." Será por aqui que seguirá a literatura?

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Com os Holandeses - J. Rentes de Carvalho


Não se trata de um romance, mas sim de um livro de memórias e comentários de como Rentes de Carvalho vê os holandeses a partir da sua experiência de décadas de permanência na Holanda.
Rentes de Carvalho não faz um retrato simpático, mas antes uma exposição pessoal honesta das virtudes e defeitos que vê nos holandeses, em Amesterdão e na organização sócio-politica e administrativa dos Países Baixos. Elogia o que considera positiva, mas não omite as críticas, por vezes duras do que como português não compreende, nem pensa ser louvável naquele povo.
Utiliza uma linguagem ora irónica, ora crítica, ora elogiosa de fácil leitura que desperta gosto na em se ler, embora a obra possa estar já algo desatualizada, pois funda-se em apontamentos de 1971, com uma atualização da década de 1980, sendo este o principal problema do livro.
Apesar de tudo gostei e como o li nos Países Baixos, foi-me possível confirmar vários aspetos mencionados e ver a evolução entretanto ocorrida em vários domínios do comportamento social dos holandeses.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Holanda, impressões finais



Primeiro importa deixar claro que neste campo Holanda, são mesmo as províncias da Holanda do Sul, com Roterdão, Haia, Delft e Leiden, e da Holanda do Norte com Amesterdão e um passeio por Volendam e ilha de Marken, não se confundindo com o Estado dos Países Baixos.

Na Holanda do Norte, Amesterdão é de facto lindíssima e rica, milhares de pontes, centenas de canais e casas de empensas apertadas ricamente decoradas confere-lhe uma beleza singular, mas a sua bandeira de tolerância, que a leva aos coffeeshops e ao Bairro da Luz Vermelha emprestam-lhe também uma aspeto decadente e demonstra o carácter do holandês, mais do que tolerante, está aberto a todo o tipo de comércio, inclusive amoral. O centro da cidade é do mais ruidoso que conheço na Europa e o lixo deixado pelos numerosos turistas, com muitos jovens atraídos pelo exótico da legalidade das drogas leves e prostitutas na montra como qualquer artefacto comercial, dão um aspeto sempre sujo da zona mais movimentada da urbe que nem as frequentes limpezas conseguem dar vazão.
Se gostei de Amesterdão, confirmo que é bonita e vale a penas conhecer, mas o ar de moral decadente e os ciclistas que concorrem com os automóveis e não são de todo simpáticos para com os peões também fragilizam o meu gosto e não me sentiria bem a viver dentro desta cidade.



Volendam e Marken (na foto) têm a característica de a primeira ser católica e de ambas terem sido terras de pescadores, mas onde hoje o mar salgado deixou de lhes tocar devido à engenharia dos diques, só que as famílias daí dependentes vivem sobretudo depois de apoios do Estado, preservando-se para fins turísticos os seus bairros agora com um ar muito artificial para visitante ver. Os lacticínios em contrapartida estão pujantes, mas também abertos para o turista. Na visita foi pelo guia que se tornou evidente o desprezo protestante pelos cristãos ligados ao Vaticano, evidenciando que uma coisa é ser-se tolerante oficialmente e para fins de comércio, outra é tal resultar de uma atitude assimilada pelo caracter do cidadão e infelizmente as impressões com que fiquei dos holandeses não foram das mais positivas neste ponto.
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Na Holanda do Sul, Roterdão é uma cidade moderna cujo centro faz lembrar uma cidade média da América do Norte pelos numerosos arranha-céus, só que aqui abundam ciclistas em vez do automóvel e reina um comportamento delicado para com o peão e a simpatia dos habitantes está conforme com a ideia de civismo que se tem do norte da Europa. Não tem a beleza da capital da Holanda do Norte, mas a diversidade de arquitetura contemporânea, as numerosas esplandas em ruas largas de pouco trânsito, a arte de rua, o asseio e o ar moderno são trunfos que admirei, até no seu principal museu a arte do século XX é rainha e encontram-se magníficas peças. Confesso que o peso económico do porto e a força das empresas mostram a pujança do país e da urbe, isto misturado com gente de grande educação no trato que me cativaram de facto.



Leiden (na imagem abaixo) e Delft são cidades ricas em património histórico e cultural, também devido à universidade na primeira e têm uma enorme beleza e simpatia. Novamente os canais e as casas de tijolo típicas em torno de igrejas de majestosas externamente são pontos fortes e as esplanadas dão ar cosmopolitas só que aqui não decadentes e merecem uma visita.



Haia é uma cidade algo incaracterística, o seu centro histórico está altamente marcado por imóveis modernos, mas muitas vezes sem o equilíbrio entre o novo e o antigo, só que o largo onde se encontra o parlamento e o governo merecem um visita, tal como o museu Mauritshuis.


sábado, 5 de julho de 2014

Férias - Holanda: A explorar as cidades de Haia e Delft

Depois de Amesterdão, mas agora sem sair da minha base em Roterdão, prossigo com as explorações pela Holanda, desta vez através de visitas a cidades próximas: Haia e Delft

 Haia - fonte wikipedia


Haia, a sede do real governo dos Países Baixos, que sei ter importantes museus e onde a água continua a ser uma presença marcante.


Delft - fonte wikipedia

Delft terra do pintor Vermeer, agora já deverá ser bem diferente do tempo do seu famoso quadro do Porto de Delft, mas que sei ser um importante centro universitário e me dizem continuar a ser uma cidade fascinante, aspeto que agora estou decidido a confirmar.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Férias - Holanda: Roterdão

Roterdão casas cúbicas - imagem Wikipedia

Depois de descobrir Amesterdão, da qual oportunamente espero apresentar aqui as minhas impressões, chegou o momento de conhecer mais cidades holandesas, para já outra igualmente ligada à água, mas sobretudo do ponto de vista económico: Roterdão, sede de um dos portos mais movimentados da Europa e do mundo e terra natal de Erasmo e do seu elogio da loucura para através das letras criticar a sociedade para a transformar e gerar um mundo melhor.
Roterdão, uma cidade praticamente destruída pelos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra, que para além dos seus museus e do seu porto, alvo de visitas guiadas, tem na sua arquitetura contemporânea arrojada do pós-guerra um dos focos de maior interesse, sem dúvida que o contraste com Amesterdão deverá ser grande, mas essas diferenças fazem parte dos aliciantes para tentar compreender a Holanda, um dos países economicamente mais ricos do planeta.

domingo, 29 de junho de 2014

Férias - Holanda: Amesterdão

Imagem wikipedia

Em 2014 volto a uma cidade de canais, isto cerca de um ano depois de visitar Veneza que me fascinou no ano passado, desta vez viajo pelo norte da Europa: Amesterdão na Holanda, a terra que Rembrandt escolheu viver e onde fez grande parte das suas pinturas, a sede do Concertgebouw para dignificar a interpretação da música e onde muitos judeus portugueses se refugiaram dos "pogromes" lusitanos e daí ter nascido Espinosa, isto devido à tolerância cultural e religiosa dos seus habitantes.

Por agora é demasiado cedo para me pronunciar sobre a cidade, primeiro há que explorar os cheiros, as cores, a comida, a arquitetura, os museus, a música e as vivências, mais tarde por aqui penso expor as minhas impressões sobre Amesterdão e ainda circular por outras terras do reino da Holanda: um Estado que ao contrário de Portugal, ao perder o seu império de ultramar e ao ter uma escassa área de terra para os seus habitantes, soube encontrar soluções para manter um elevado nível económico e de bem-estar socioeconómico aos seu povo e até conquistar terras ao mar para alargar o seu território.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Bichos de Miguel Torga


Uma série de vários pequenos contos, na sua maioria protagonizados por animais do meio rural português, tanto domésticos como selvagens e que segundo Torga formam uma espécie de arca de Noé... que até entra no último conto.
Com a escrita característica de Torga e os seus regionalismos trasmontanos, no seu conjunto mostram-se não só as vivências rurais das pessoas, como o quotidiano e o destino dos animais de quinta e dos que os cercam, predadores ou não, mas sempre humanizados com sentimentos de heroísmo, ironia, esperteza e por vezes com uma dose de fatalismo previsível.
Leem-se todos os contos facilmente, que formam um conjunto divertido, bucólico e deixam um retrato do que foi um mundo rural e da sua cultura popular já quase extinta.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

"Um Homem: Klaus Klump" & "A máquina de Joseph Walser" de Gonçalo M. Tavares


O livro "Um Homem: Klaus Klump A máquina de Joseph Walser" de Gonçalo M. Tavares reúne dois romances publicados inicialmente em separado e que correspondem aos dois primeiros volumes da tetralogia "O Reino" passado num país onde as relações humanas são como que mecanizadas, frias e sem o tempero dos sentimentos, não se pode dizer que é um estado totalitário, mas não é um regime saudável.
Em "Um Homem: Klaus Klump" vemos o dia-a-dia deste cidadão quando o seu país entra em guerra, não se sabe se foi invadido ou foi tomado por uma fação, Klump adere à resistência e prossegue as suas relações com amantes, mas abandona uma e é traído pela outra que o entrega à máquina no poder, é preso e consegue fugir. À sua volta contacta com indivíduos que cooperam como máquinas de sobrevivência ou resistem como máquinas de espalhar a morte de onde se destaca uma das mulheres que friamente vive nesta ambiguidade e não só sobrevive como está num elevado patamar social quando a guerra termina.
O mundo e o tempo de Walser é concomitante com o da história de Klaus, existem inclusive algums referências e interligações às personagens do primeiro romance, mas estas nunca são intervenientes diretos no segundo. A complexidade e interligação entre o homem como máquina e a máquina com que o protagonista trabalha, a máquina que faz a guerra, a máquina que morre, a máquina que é amiga ou mata é o mote para a reflexão no mundo de Joseph. A guerra é como que um período de intensificação destas máquinas, mas também pode virar a uma habituação e a guerra então morre por cansaço e indiferença das máquinas humanas, mas será que a sobrevivente está preparada para os desafios dos ataques da máquina humana em tempo de paz?
Gonçalo M. Tavares é para mim um escritor contemporâneo de escrita ímpar, acima de qualquer onda publicitária, vale por si, pela sua criatividade, pela sua frieza de criar relações humanas e sociedades distópicas e deprimente onde cada pormenor é dissecado com uma crueza que dói e maravilha que o lê. Todos os livros que li dele são grandes obras, mesmo quando correspondem a pequenas histórias...

quinta-feira, 19 de junho de 2014

"Rosa Brava" de José Manuel Saraiva


Rosa Brava de José Manuel Saraiva é uma biografia romanceada de Leonor Teles, talvez a rainha mais odiada da história de Portugal, com início na sua juventude e prolongando-se até ao seu exílio no final da vida.
O romance ficcionado por um jornalista não deixa de refletir a escrita jornalística, simples mas sem um fulgor de estilo literário de um escritor de ficção, embora se leia bem, sente-se esta singeleza e pobreza ao contar-se a vida de uma das personagens mais polémicas que esteve na base da queda da dinastia de Borgonha, das  guerras fernandinas e da crise do reino que colocou levou ao início da dinastia de Avis.
A obra vale sobretudo pelo relato de uma época turbulenta e dos principais acontecimentos de então e está feita de uma forma fácil de ler, aquecida com o calor de diálogos simples do autor e apimentada, talvez com alguma criatividade, com as paixões despertadas pela beleza e intimidade de Leonor Teles que com ardis, vinganças e rotura de princípios chegou a rainha.
Gostei de recordar e compreender melhor o período e a pessoa em causa...

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"Orlando - Uma biografia" de Virginia Woolf


"Orlando - uma biografia" é uma das obra de Virginia Woolf mais conhecidas e de maior sucesso.
Conta a vida desta personagem fruto da pesquisa de um suposto biógrafo que chega a comentar os principais acontecimento de Orlando, um pessoa da alta nobreza e rica que nasceu homem no final do século XVI e se transformou de modo fantástico em mulher aos trinta e poucos anos e sobrevive até à data de publicação da obra em 1928.
Orlando anseia escrever a melhor poesia e ao longo da sua extensa vida aperfeiçoa o seu poema, contacta escritores famosos, que considera seres acima dos outros, e é ridicularizado por estes. Procura o amor ideal e ao encontrar a paixão descobre a traição. Entra na diplomacia e sente o vazio do protocolo. Vira a mulher sabendo o que é ser homem e sente as condicionantes sociais do género feminino. Mergulha na sociedade em busca de uma cultura superior e depara-se com a futilidade. Assistiu ao passar de reis e rainhas com quem se cruzou, observou o progresso tecnológico e industrial e alcançou o sucesso literário, de esposa e mãe numa sucessão de eus que são lembrados no fim da obra.
Não deixa de ser um livro estranho, onde o fantástico se cruza com a história da Inglaterra e as evoluções da sociedade. Ora irónico, ora crítico, ora divertido, ora denso e massudo, mas gostei.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

"Caligrafia dos sonhos" de Juan Marsé


"Caligrafia dos sonhos" do catalão Juan Marsé é uma série de episódios, distribuídos por capítulos, de um adolescente num bairro pobre de Barcelona no final da década de 1940 e contados com uma escrita magnífica que parecem mesmo memórias em forma de sonhos. Estes atravessam os amores, desamores e dificuldades de figuras da rua, passam pelas aventuras de infância à juventude do protagonista com a família e os amigos, o seu despertar para a sexualidade, a sua fértil imaginação e os seus gostos pessoais, entra nos riscos de quem enfrentava o início do franquismo e a marginalidade e vai até à passagem precoce de Ringo na vida adulta.
A forma brilhante que Marsé adota no texto valoriza fortemente a história, algumas personagens femininas são descritas com tal intensidade que fazem lembrar as mulheres dos filmes de Pedro Almodovar, transformando acontecimentos banais de bairro em peças de arte literária. Gostei muito livro e recomendo a qualquer leitor.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

"A Voz dos Deuses" de João Aguiar


"A voz dos Deuses" romanceia a liderança de Viriato através das memórias de um filho fictício de uma relação entre um histórico príncipe bracarense exilado em Cineticum (Algarve) com uma nobre fenícia, o qual teria sido próximo deste herói real que está na memória dos Portugueses e na origem da nossa identificação como Lusitanos. 
No livro ficamos a conhecer não só as principais batalhas e feitos de Viriato, como a sua estratégia militar e as grandes dificuldades dos romanos para derrotarem este povo da Hispânia, o que maior resistência lhes ofereceu na península e só conquistado após a traição e morte deste líder guerrilheiro. 
João Aguiar introduz ainda no romance algumas viagens do autor das memórias para assim nos relatar os costumes, as crenças e a diversidade dos povos peninsulares e da guerrilha quando da romanização ibérica.
A escrita em "A voz dos Deuses" de João Aguiar, que foi jornalista e escritor, é simples e despretensiosa e este livro foi não só o seu primeiro romance, como deu início a uma trilogia, que em ficção, em parte baseada em factos reais, cobriu a história do território nacional no tempo da conquista, resistência, consolidação e declínio do poder do império romano na Ibéria. Esta obra deixa já abertura para o romance: "A hora de Sertório", sobre o romano que liderou a resistência lusitana num período em que mais do que a libertação do território este povo desejava sobretudo ser governado com justiça.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

"Nação Crioula" de José Eduardo Agualusa


Escrito em estilo epistolar, o romance baseia-se em alguns factos reais, como o navio negreiro Nação Crioula, intercalados com acontecimentos de ficção.
A obra está estruturada como um conjunto de cartas de Fradique Mendes (personagem fictícia mantida por vários escritores do século XIX em artigos de jornais na sua época em Lisboa) entregues a Eça de Queirós e nas quais se relata a paixão do protagonista por Ana Olímpia (destinatária de várias missivas) e sua vida social em Luanda, se descreve o tipo de relações comerciais entre esta colónia e o Pernambuco no Brasil, bem como as contendas entre escravocratas, abolicionistas, negreiros e tensões para o fim desta exploração de mão de obra por parte de várias nações europeias.
José Eduardo Agualusa aproveita assim para expor numa escrita muito linear e epistolar os dilemas do fim da escravatura, vários preconceitos e desumanidades que modelavam a vivência de Luanda, Brasil, Portugal e perspetivas filosóficas, religiosas e políticas em confronto no império português com as visões e ideias vindas do norte da Europa, bem como alguns aspetos do comportamento dos africanos. O livro lê-se muito bem, gostei muito, tem uma escrita acessível e recomendo a qualquer  tipo de leitor.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

"Claraboia" de José Saramago

Editorial Caminho

"Claraboia", o segundo romance escrito por José Saramago no início da década de 1950 sob o pseudónimo de Honorato e cuja editora em 1953 nem se dignou a responder nem a publicar, é o único livro do género saído postumamente por opção do autor face à desfeita de só ter sido contactado para a sua publicação quando começou a ter nome na década de 1980, deixou tal a decisão aos seus herdeiros para após a sua morte.
Neste livro a escrita característica de Saramago ainda não nascera: todos os sinais de pontuação estão presentes, não há parágrafos longos e o encadeado de diálogos tem a devida separação. O livro espreita, como por um claraboia para relatar a vivência de seis famílias residentes no mesmo prédio e não sai deste edifício.
Quem leu a obra madura do escritor reconhece na trama as preocupações frequentes do autor, mas sendo uma obra do período da ditadura certas insinuações surgem disfarçadas. Estão já presentes várias das temáticas a serem desenvolvidas mais tarde: a luta de classes aqui disfarçada de assédios amorosos, questões filosóficas a partir do saber da experiência da vida e pelo confronto causa monárquica versus republicana, bem como a questão da identidade e objetivo de vida. No estilo, Saramago já se recorre à ironia introspetiva para denúncia e fazer análise psicossocial muito presente nas suas obras principais.
Não sendo uma obra com a maturidade como outras posteriores, é um romance simples, linear e interessante que se lê bem que já aponta para o Saramago do período Nobel. Gostei.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

"O Dia dos prodígios" de Lídia Jorge


"O Dia dos Prodígios" é o primeiro romance da grande série de obras escritas por Lídia Jorge, uma das autoras contemporâneas nacionais que maior número e diversidade de prémios literários de Portugal e do estrangeiro tem recebido.
Um romance publicado em 1980 que deve ter sido então uma pedrada no charco pela forma de escrita. A narrativa é constituída sobretudo pelo encadear de frases orais, por vezes articuladas, outras como que interrompidas por uma pontuação livre ou ainda com intercalação de afirmações, quase tudo brotando dos diálogos das personagens que convivem numa pequena aldeia isolada do interior do Algarve e onde se descreve, fala e se relata não só factos maravilhosos que ocorrem na terra que parecem pressagiar um grande evento, bem como se comenta a vida alheia. Por vezes a autora divide o texto em colunas, uma menor destinada a comentários e a outra à continuação do texto. Assim, aos poucos e de uma forma nem sempre linear, vai-se montando ao ritmo da pasmaceira do dia a dia o viver de uma pequena comunidade rural vítima da emigração e do esquecimento no final do Estado Novo... até que mais tarde se dá a Revolução do 25 de Abril e o nascer da esperança.
Para muitos o livro retrata de uma forma alegre e livre a mentalidade, os hábitos e os defeitos que caracterizavam o cidadão rural médio de então, o que nem sempre é abonatório: álcool, violência gratuita sobre animais e doméstica e alguma grosseria cruzam-se na montagem de um texto irónico e divertido que já foi adaptado ao teatro, mas é evidente que pertence a um período onde a ameaça da desilusão com libertação alcançada com Abril ainda não ensombrava a sociedade.
Lídia Jorge talvez seja das escritoras mais versáteis na escrita e este livro é bem diferente no estilo de outras obras posteriores de que gostei mais, embora talvez menos originais que é a grande marca desta obra aberta positivamente para o futuro.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

"O Castelo" de Franz Kafka

Edições Livros do Brasil

É mais fácil ler o romance "O Castelo" de Franz Kafka  do que dissertar sobre ele. A trama está cheia de contrassensos absurdos como num sonho e as peças não se encaixam, nem seguem a ordem natural das coisas. Contudo cada momento é justificado profundamente na discussão das personagens com K, recorrendo a uma engenhosa e extensa argumentação plena de subtileza que desmonta as ideias contrárias em confronto sem dela brotar uma lógica consistente.
Um agrimensor estrangeiro vai ao encontro de uma vaga aberta no condado do castelo, chega à terra e sente uma desconfiança de toda a população e dos funcionários para com ele. É admitido, mas o lugar não abriu por necessidade, só que no sistema burocrático não mais é viável aquele ser cancelado, pois o seu funcionamento bloqueia a correção até por que a sua perfeição inexplicável é um facto e aceite por todos e a lógica dos decisores vem de entidades inacessíveis.
Para quem já leu "O Processo de Kafka verifica que os dois romances seguem rumos opostos para o personagem K. No Castelo este vai ao encontro do poder que não precisa dele mas aceita-o, para logo a seguir se lhe tornar inacessível, K pretende alcançar a remissão dos seus erros de que não foi acusado. Em "O Processo" é a máquina da justiça que vai ao encontro de K, este não sabe que mal cometeu, tenta e não consegue libertar-se da culpa de que o sistema o acusa. As duas obras completam-se na perfeição.
O livro da foto tem um posfácio de Max Brod, amigo de Kafka, a apreciar obra e expondo textos rasurados e não publicados nas versão inicial e póstuma deste romance. A sua apreciação sobre os 2 romances mencionados não se limita a uma visão terrena do conteúdo e crítica política, estende-se a uma perceção teológica e filosófica, análises que enriquecem em muito a interpretação, embora eu não consiga libertar-se da ideia mais terrena daquele absurdo Governo, até que alguns destes são mesmo  pecados da administração pública. Um excelente livro, que pode não ser acessível a todos, mas que serve como denúncia e reflexão ao sistema político em que vivemos.

domingo, 11 de maio de 2014

"Falconer" de John Cheever

Sextante Editora

Acabei de ler "Falconer" de John Cheever. O título corresponde ao nome da prisão aonde Farragut: toxicodependente desde a sua missão militar, pai, marido e professor; vai cumprir pena por fratricídio. A descrição do dia-a-dia no estabelecimento servirá ao protagonista para refletir na sua viva, angústias, família, infância, sexualidade e desenvolver o contacto social e também íntimo com os restantes reclusos bem como conhecer a traição e compreender como é o funcionamento subjacente ao sistema prisional.
Escrito numa linguagem realista e pouco vestida de artificialismos estilísticos, típica da literatura norte-americana, o livro não faz grandes juízos de valor, mas pela exposição expõe e aborda as causas das angústias, os receios do passado complementado com o desejo de liberdade e de remissão do cidadão norte-americano (um número, uma pessoa e uma consciência) na sociedade. Uma obra característica dos anos 1970, a geração onde a droga e o esforço da compreensão do eu numa sociedade em mudança do conservadorismo social para uma liberdade individual foi marcante.
Gostei, apesar do ambiente prisional não é deprimente, embora a vontade de remissão não seja um caminho alegre, contudo não tem a força de outros retratos dos Estados Unidos feitos mais recentemente como Submundo de Dom deLillo e de Liberdade de Franzen já aqui falados, até pela pequena dimensão deste romance não permite maiores aprofundamentos dos temas abordados.