Páginas

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

"Gaibéus" de Alves Redol


"Gaibéus", o nome que  chamavam aos trabalhadores à jorna que se dirigiam em rancho para o Ribatejo na época ceifa do arroz, de Alves Redol é reconhecido como o romance pioneiro do estilo literário do neorrealismo em Portugal em 1939.
A obra retrata o sofrimento dos jornaleiros rurais e, mais de que expor uma luta de classes, mostra a submissão e as dores a que é capaz de se sujeitar quem não concebe outro modo de ganhar o seu pão. Não que no seio do grupo não haja consciência da exploração: há quem silenciosamente se sinta revoltado, há quem sonhe com alternativas de emigração, há mulheres que se rendem ao assédio dos patrões e se sentem manchadas sem possibilidade de fuga e há doentes que recusam o facto a troco de uma moeda e até há os que se sentem um pouco superiores por se situarem mais acima na hierarquia dos explorados, sem verem que apenas são instrumentos da perpetuação dessa servidão.
O romance, que utiliza intensamente o vocabulário popular e típico desta atividade, não tem protagonistas que se destaquem na história. Tem várias personagens cujos  problemas e sonhos se vão desenrolando nos dias da ceifa e mostram as várias faces desta exploração sem direitos, mas onde é evidenciado que são seres humanos, que pensam na sua sorte e sofrem, mas sem perspetivas de futuro ou organização coletiva para enfrentar o problema. e como tal vítimas de um sistema social injusto.

sábado, 23 de agosto de 2014

"O Falador" de Mario Vargas Llosa

A leitura de "O Falador" desenvolve no leitor as sensações típicas da escrita de Mario Vargas Llosa, mas ao contrário do cruzamento cronológico de diálogos e espaços intratexto de "Conversas na Catedral" e "Casa Verde", aqui temos capítulos alternados onde nuns o narrador principal é o "autor" da obra: um cidadão urbano, racional atento à causa da aculturação indígena, sobretudo a tribo machiguenga e associado às memórias de um amigo com iguais preocupações; e nos outros, uma tentativa de relatar as tradições, mitologia, cosmologia e cultura mágica na perspetiva do homem da selva contador nativo machiguenga.
Assim se dão a conhecer não só os problemas de extinção de uma civilização, como as suas características em olhares que cruzam personagens, mentalidades e conversões ocidentais e nativas.
A obra não tem uma evolução linear da sua história, embora seja um romance cujas pontas soltas se completam e se unam ao longo do desenrolar e conclusão do romance e por vezes obrigam o leitor a mergulhar na forma que se estima ser o modo de pensar e ver o mundo através da mente machiguenga, tribo à qual este livro faz sem dúvida uma magnífica homenagem. 

domingo, 17 de agosto de 2014

"Nossa Senhora de Paris" - Victor Hugo


"Nossa Senhora de Paris" de Victor Hugo que acabei de ler é acima de tudo um trabalho de divulgação sobre a arquitetura da catedral parisiense de Notre Dame e de informação sobre a história evolutiva do património arquitetónico desta cidade, desde a sua fundação até a situação contemporânea do livro em 1831, tendo como acessório intercalado um romance de amor ao estilo romântico, tipo a bela e o monstro e cercado por peripécias de ódios e paixões extremados, bem como a situação dos marginais que sempre viveram na capital de França e sobre os quais este escritor teve frequentemente uma atenção especial ao longo da sua carreira. 
Não é por isto uma obra homogénea, ora nos dá profundas lições de história da arquitetura e do seu papel como livro aberto da cultura dos tempos até ao surgimento da imprensa, que substitui a arte de construção como principal forma de registar o saber das civilizações, ora nos dá informações do evoluir político da sociedade das teocráticas para a democrática libertada do jugo religioso, com pertinentes críticas mordazes das classes sociais e remata tudo isto com o enredo de amor do corcunda de Notre Dame, do ciúme do arcediago desta por uma suposta e bela cigana que desperta os ódios racistas, supersticiosos e das crendices típicas da idade média e de aventuras de outros apaixonados de fraco caráter para completar o retrato do modo de sobrevivência da época em Paris.
Pode-se não concordar plenamente com o papel dominante que Victor Hugo dá à arquitetura para compreender o passado, mas que este nos dá magníficas lições de história e de arte: dá; pode-se achar um pouco rocambolesco a trama de amor e das peripécias das suas personagens, mas que são úteis à informação e ao interesse da obra: são. Gostei do livro, embora não seja tão consistente quanto "Os Miseráveis".

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

"O Rouxinol e a Rosa" de Oscar Wilde


O livro corresponde a um conjunto de nove contos de Oscar Wilde, o primeiro é o que dá o nome à coletânea, unidos pela escrita poética, o relato fantástico e moralizante do tipo fábulas, ilusões de príncipes e personificações de crenças religiosas para denunciar problemas de justiça.
Como típico do período romântico, muitas vezes as situações são expostas de forma extremada, até mesmo pontualmente de forma exaustiva e cansativa, quer ao nível dos sentimentos das personagens, como da descrição da beleza, da fealdade e do património. Interessante o facto de que mesmo quando se pretende uma lição moral nem sempre o resultado final do conto é o mais lógico, Wilde tende como que, em paralelo à denúncia da injustiça, passar a ideia que a realidade nem sempre acaba do modo desejado e correto, deixando um desconforto que leva à reflexão.
Gostei da maioria dos contos, alguns podem ser clássicos pela sua moral e capacidade de entretimento, mas é evidente que Wilde não se rendia a todas as crenças e tradições morais e religiosas da sociedade em que vivia e aproveitou a escrita para uma denúncia subtil de vícios instalados nos vários tipos de poderes e cobertos por valores que o autor considera falaciosos.

domingo, 3 de agosto de 2014

"O nome da rosa" de Umberto Eco

"O nome da rosa" de Umberto Eco foi um dos principais sucessos literários na Europa em meados da década de 1980 e teve outro êxito na versão cinematográfica imediatamente a seguir, que então vi e esperei para me esquecer de quase toda a trama para ler o livro, que é talvez a obra mais famosa deste escritor italiano.
Um romance sobre livros, questões teológicas e políticas do final da idade média que se enquadra tanto no género policial, como histórico, onde, através de uma investigação em torno de uma série de crimes sucessivos de frades ligados às funções de copistas, bibliotecários, guardiães do saber e se encobrimento das heresias e conceitos perigosos para a fé numa abadia remota das montanhas da península itálica, Eco aproveita para dissertar sobre os principais conflitos entre o interesse material e político da Igreja (inclusive a pobreza desta como tema de fé) no tempo do papa João XXII e do imperador germânico Luís da Baviera, bem como expor as questões teológicas, os princípios e modo de agir da inquisição ainda antes da contrarreforma e ainda dar a conhecer a vida religiosa, as superstições e os mitos característicos nos alvores do fim da submissão da ciência ao poder religioso. Interessantíssimo o tratamento dado ao medo dos teólogos ao riso, à comédia e a dúvida se Jesus alguma vez riu.
Sob o ponto de vista policial os principais ingredientes destas obras estão presentes, todavia este são muitas vezes intercalados por profundas dissertações sobre as questões acima mencionadas, tornando-se numa fonte de informação histórica e perdendo o aspeto ligeiro típico da caça ao criminoso ou criminosos. É igualmente uma denúncia de que a paixão por livros, pelo saber e fanatismo de fé pode ser levada a extremos tais que se torna também numa obscuridade e numa ameaça. Um grande livro sem dúvida, mas nem sempre fácil pela sua enorme riqueza e profundidade temática, mas que demonstra a compatibilidade entre o gosto popular e o erudito transformando-o num clássico de literatura do género.

sábado, 2 de agosto de 2014

"O Eleito" de Thomas Mann


"O Eleito" de Thomas Mann é um dos últimos romances deste escritor e pertence à fase do autor de temática preferencial pela reflexão religiosa relativa à tendência para o mal, a possibilidade de redenção ou do incontornável castigo tradicionalmente discutidas na moral e filosofia judaico-cristã e tendo como suporte lendas mágicas, mitos tradicionais e o fantástico. 
No presente romance um monge iluminado pelo "espírito da tradição" relata as lendas mágicas em torno das origens pecaminosas do papa São Gregório Magno e da sua redenção até à escolha por Deus para liderar o catolicismo. Isto exposto num modo característico das biografias medievais de santos recheadas de mitos bestiários, milagres e fantástico, hagiografias desenvolvidas com o objetivo de serem lições de ética, moral e de teologia. Neste romance cuja escrita muitas vezes é mesmo próxima da do estilo dos livros desse período ou do barroco.
Em "O Eleito" ao contrário de "Doutor Fausto" de Mann e de Goethe, o pecado mesmo que na origem da pessoa e ética e socialmente monstruoso tem sempre perdão na misericórdia divina, desde que o culpado reconheça, se arrependa e procure a remissão através da escolha de uma via de autopunição.
Embora tenha gostado da história, não se compara às pérolas mais terrenas de "A Montanha Mágica" ou de "Os Buddenbrooks", nem à novela platónica de "A Morte em Veneza" ou à riqueza cultural do romance da mesma fase mítica "Doutor Fausto".