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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

"O Mestre e Margarita" de Mikaíl Bulgákov


"O Mestre e Margarita" escrito pelo russo Mikhaíl Bulgákov em plena ditadura de Estaline é daquelas obras alegóricas e metafóricas cujo enredo simboliza algo muito diferente da história narrada e só nesta perspetiva pode ser entendido e admirado, pois se levado à letra é um romance de imaginação e loucura vertiginosa.
Dois literatos, na época da lua cheia do equinócio da primavera (semana da Páscoa), discutem numa alameda de Moscovo um texto a publicar que evidencie a inexistência de Jesus, então o Diabo decide intervir, instalar-se na cidade e semear a confusão, explorando os principais defeitos e vícios das pessoas e instalando o caos generalizado, incluindo algumas mortes, escolhendo os escritores e um grupo ligado a um teatro como meio para atingir os seus fins. Intercaladamente há uma segunda narrativa com reflexões e a perspetiva de Pôncio Pilatos a descrever os dias da paixão de Yeshua em Jerusalém numa Páscoa longínqua. Só a meio da obra e com a entrada do Mestre na história se percebe ser este o romance escrito por ele e interdito por influentes no seio editorial, em paralelo ele se apaixonou por Margarita, uma bela mulher bem de vida e disposta a largar tudo por ele quando este desaparece.
Enquanto na antiga história da paixão, muito pormenorizada e com grandes diferenças do relato evangélico de Mateus, que escreve aqui notas dos seus dias com Yeshua, se vê alguém bom ser acusado e condenado inocentemente sem recorrer ao poder sobrenatural para alcançar a vitória do bem e onde a cobardia de Pôncio Pilatos conduziu à derrota da justiça, na história atual em Moscovo, Wolan e o seu séquito diabólico, pelo contrário utilizam toda uma panóplia de magia e feitiçaria para espalhar o seu mal e cativar as pessoas com eventos onde a imaginação e loucura é levada ao extremo e lembra contos de fadas e bruxaria com um enorme desvio à realidade natural das coisas.
Como alegoria, Bulgákov faz uma crítica feroz a Estaline e ao aparelho que consegue ainda ultrapassar o líder nos seus excessos, não faltando analogias a desaparecimentos, à censura, as clínicas psiquiátricas, à tortura e ao confisco, mas onde a cobardia do meio cultural colabra e é a principal ferramenta da instalação do mal na sociedade. Sem compreensão desta metáfora, o romance torna-se ilógico tal a sequência de traquinices inverosímeis que vão acontecendo ao longo do livro, por vezes os tradutores anotam a referência indireta e crítica aos defeitos do regime ditatorial que em denúncia numa escrita fluída e elegante duma narrativa que parece louca e divertida enquanto descobre uma situação grave que se vivia então em Moscovo e por isso considerado uma obra-prima da literatura do período soviético. Por tudo isto a obra pode não ser fácil para todos.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"A Amiga Genial" de Elena Ferrante



"A Amiga Genial" de Elena Ferrante é a primeira obra que leio desta escritora italiana contemporânea, correspondendo a um dos maiores fenómenos literários dos últimos anos por em simultâneo coincidir com um grande êxito editorial e reconhecimento de qualidade do romance, sendo este o motivo que me despertou interesse após ouvir numerosas recomendações para a respetiva leitura.
Este título corresponde ao primeiro volume de uma tetralogia que conta pelos olhos da narradora as histórias de vida e da amizade desta com outra rapariga da mesma idade iniciada nos bancos da escola primária até ao começo da velhice integradas na teia das relações sociais do seu bairro pobre e popular de origem em Nápoles até ascensão e sucessos pessoais da autora e da sua amiga nesta cidade. O presente tomo vai da infância, passa pela adolescência e chega até à entrada da vida adulta da sua colega e decorre a partir da década de 1950. A autora que deseja ser escritora vai descobrindo que a companheira possui uma genial inteligência, mas descobre-se que há uma admiração mútua, grandes sonhos de ambas em ascensão socioeconómica, uma influência nos comportamentos entre si, onde cada uma considera a outra um modelo de capacidades, vontade de estudar e exemplo para condicionar a sua atitude.
A escrita do livro é magnificamente agradável e desperta um grande prazer de leitura que se associa ao conteúdo narrativo, onde somos cativados pelas lutas de sobrevivência destas personagens, as descobertas íntimas da puberdade, do amor, os estilos de vida familiar e social num bairro pobre de operários com pequenos empresários locais, os defeitos do sistema, desde a sombra das redes do crime organizado, aos esforços dos empreendedores, às vicissitudes porque estes passam até aos preconceitos e hábitos destas gentes que os preserva num gueto de onde é muito difícil sair ou subir na vida.
É um livro de muito fácil leitura, onde a análise social é exposta por meios simples, descomplicando a narrativa e a reflexão, gostei de tal modo do volume que imediatamente encomendei os restantes três para próximas leituras, reforçado pelo facto de ainda este ano Nápoles ter sido a minha região de férias e descoberta, havendo passagens que me recordam aqueles dias tão agradáveis que ali passei. Recomendo a qualquer leitor.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

"O Lobo das Estepes" de Hermann Hesse


"O Lobo das Estepes" do escritor germânico Hermann Hesse, laureado com o prémio Nobel da literatura, apresenta o desencanto e revolta de um homem com a humanidade mas que inconscientemente anseia integrar-se no mundo que refuta e despreza por considera a sociedade rendida a um estilo de vida banal e medíocre nas suas relações em comunidade, curiosamente a sua luta para ultrapassar esta misantropia e depressão que o atrai para o suicídio desenvolve-se, precisamente, com a ajuda de pessoas de grupos sociais marginais e despromovidos, como prostitutas e músicos de salão traficantes de psicotrópicos, que lhe demonstram como valorizar e aproveitar a vida, desde a produção de arte genial e eterna, até tirar proveito da obra popular passageira capaz de só despertar o prazer frugal do momento e fundamental para temperar a vivência do ser humano e assim se justifica apostar na sobrevivência e adiar a morte inevitável em alternativa a se tornar num alienado vencido.
O romance tem uma espécie de prólogo editorial que pertence à obra, possui uma grande densidade psicológica e um conjunto de reflexões que evidenciam a contraditória luta íntima entre o aspirar ao sublime e a perfeição, exemplificados nas obras de Goethe e Mozart, e a importância de aproveitar o banal para tirar proveito da vida que justifique a sobrevivência numa luta de personalidades múltiplas de que cada indivíduo é na realidade composto, onde até mesmos génios como Goethe e Mozart são capazes de ser crianças e de amar a brincadeira, havendo assim que equilibrar a convivência na alma de cada um entre o desejo para os ideais e as tendências internas para os seus opostos.
Este romance, que é de facto uma obra-prima, antecede em muito a questão levantada por Umberto Eco em "O nome da Rosa": se o riso também faria parte de Deus ou era fruto do mal, sendo que Hesse, de uma forma diferente, evidencia que no ser humano a felicidade está em saber conjugar o sério, perfeito, maduro e imortal, com o divertido, tosco, infantil e passageiro que tempera a vida. Gostei muito do livro e a escrita é magnífica, os meus sublinhados de ideias interessantíssimas a reter surgiram em muitas das suas páginas, é uma obra que recomendo a leitura, mas a quem gosta de obras profundas e onde a facilidade do conteúdo exposto não seja um fator limitante ao prazer de ler.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

"As altas montanhas de Portugal" de Yann Martel



Acabei de ler o romance "As Altas Montanhas de Portugal" do escritor Canadiano Yann Martel, este é o quarto livro que leio deste autor que se tornou mundialmente famoso com "A vida de Pi" que ganhou o prémio booker prize em 2002 e foi adaptado ao cinema, mas é o primeiro que leio traduzido em Português.
Todos os romances de Martel têm uma estrutura, conteúdo e estilo original fugindo aos rótulos de outras escolas literárias, misturam acontecimentos fantásticos, mas distintos do realismo mágico ibero-americano; relacionamentos humanos com animais abordando análises de compreensão psicológica destes; questões filosóficas de cariz religioso e teológico e o impacte da morte nos protagonistas a partir de familiares próximos. Este não é exceção. Junta três narrativas distintas que se cruzam no Nordeste de Portugal, denominado por Altas Montanhas de Portugal, e, de forma mais ou menos direta, faz referências a personagens e animais comuns às três histórias.
A primeira alguém afetado por fatalidades na família próxima expressa a sua amargura adotando um andamento à recuas e vai procurar um artefacto religioso que descobre por indícios num diário de um missionário que trabalhou no seio da escravatura, empreende então em 1904 uma viagem de automóvel de Lisboa às Altas Montanhas de Portugal, uma inovação da época com todo o pasmo e aventura que esta travessia do País provoca descrita de uma forma divertida e sarcástica que envolve um Jesus simiesco. A segunda decorre numa sala de morgue de um hospital em Bragança onde o médico legista ouve uma dissertação de sua mulher falecida que aborda semelhanças da vida de Cristo e as obras de Agatha Cristhie, terminando com  a vida de um idoso autopsiado a pedido da viúva com um resultado original e envolvendo um primata. A última narrativa fala de um político que ascende a senador no Canada que confrontado com a perda da mulher desiste de tudo para se refugiar nas Altas Montanhas de Portugal, a terra dos seus ascendentes, com um chimpanzé .
A escrita é elegante e cheia de notas nostálgicas, descrições estéticas e sentimentais de uma forma bela, apesar do rigor descritivo de certos factos históricos e geográficos, têm por vezes erros ou alterações intencionais  do autor e traz até hoje animais pré-históricos da fauna ibérica.
A ideia de fundo do romance parece sintetizada no final da primeira narrativa: a humanidade é fruto de símios que se elevaram e não o resultado de anjos caídos. O livro lê-se bem e é agradável, mas algo estranho sem atingir o nível da obra mais famosa de Martel e mostra um retrato de Portugal pelos olhos de um Canadiano.