"O Outro Pé da Sereia" de Mia Couto tem duas histórias ao longo do livro, intercaladas por capítulos que se cruzam no espaço mas estão distanciadas em 440 anos. A mais antiga em 1560 romanceia a vinda de Goa para Moçambique para a região do Zambeze do jesuíta Gonçalo da Silveira, personagem história tida como o primeiro mártir da evangelização portuguesa. A mais recente em 2002 numa aldeia da zona do martírio do missionário que se prepara e recebe um casal de afro-norte-americanos negros de uma ONG interessados em descobrir as feridas deixadas pela escravatura para compensar os descendentes de forma de aliviar a consciência de pertencerem a uma sociedade privilegiada mas onde são ainda alvo de preconceitos.
No relato histórico na linha condutora da narração denuncia-se o contrassenso na evangelização se aproveitar para implementar a exploração e escravatura dos africanos, mostrar a coexistência do cristianismo e das crenças animistas que levam a conversões em sentidos contrários de ambos os lados, pondo a nu o conflito de interesses e o choque de culturas.
A estória que decorre no século XXI, parodia os complexos de culpa e de indemnização dos descendentes africanos em estados ricos, como o aproveitamento de populações negras que exploram a situação e criam casos para justificar apoios e, em paralelo, são usadas memórias e uma imagem de Santa de 1560 e outros dados posteriores como meio de denuncia de injustiças históricas enraizadas em Moçambique e onde muitas vezes foram os seus habitantes os exploradores de si mesmo.
O romance tem duas escritas, a do relato histórico, em estilo de crónica romanceada com um português escorreito e a do romance neste século, onde Mia Couto utiliza a sua técnica de criação de palavras e parafrasear provérbios para construir a sua paródia e cultivar subtilezas irónicas que caracterizam o seu estilo. No conjunto é um romance divertido e triste, onde as feridas do colonialismo e da guerra fraticida brotam como pistas para reflexão e conhecimento dos problemas na sociedade moçambicana atual. Gostei.
4 comentários:
adoro esse autor, mas esse eu não li. beijos, pedrita
É interessante, não só pelas questões que levanta, como pela informação histórica que contem e por permitir aquele gozo típico da escrita criativa de Mia Couto.
Já li vários do Mia e gosto bastante e este pela descrição também já me chamou a atenção...
P.S. Já li o Volfrâmio do Aquilino e adorei, é mesmo um excelente livro
Boas leituras
Nuno
Volfrâmio tem uma riqueza lexical que não estou habituado nos escritores atuais.
O outro pé da sereia (que é a imagem) tem de facto informações históricas e imensos comentários na trama moderna que fazem pensar.
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