Excerto
"As pessoas existiam para se iludirem a si mesmas e às outras, para se torturarem a si mesmas e às mais, para se entredestruírem por amor, por amizade, ou por distração. Tudo isto se organizava numa conspiração colossal, sem fito ou nexo mais que a intenção firme de sobreviver triunfalmente menos à morte que à própria vida."
Acabei de ler o único romance do poeta, novelista, contista e ensaísta português Jorge de Sena "Sinais de Fogo", um dos autores do século XX que mais admiro pela sua originalidade nas formas narrativas e qualidade de escrita, contudo a presente obra foi um murro muito forte no estômago.
Nos anos de 1930 Jorge é um adolescente filho da burguesia que vai descobrindo com dois amigos colegas a realidade da vida sexual dos adultos e da sua geração, vive intensamente o confronto entre professores e os alunos mais revoltos e entra na juventude onde se torna universitário mas, episodicamente, brotam dele versos que não consegue explicar que depois parecem materializar-se na sua vida. No verão de 1936 Espanha está a mergulhar na guerra civil e a ditadura em Portugal dá grandes passos de controlo ideológico e ele vai para a casa de um tio passar as férias na cidade-praia da Ribeira da Foz e zona balnear por excelência de espanhóis. Aqui, ele assiste, já com olhos de homem, a movimentos subversivos políticos de esquerda, cruza-se com atividades para intervenção no país vizinho e mergulha na devassidão e vícios da classe burguesa. Participa em atos orgíacos e sente que as pessoas com quem convive são afetadas e mudadas pelos que ele pratica e de que se sente culpado, após uma morte regressa a casa, mas o mundo já não é o mesmo e reflete sobre as relações entre os humanos, as imagens em espelho que formamos uns dos outros e a sua poesia transborda-o.
Jorge de Sena morreu repentinamente antes de acabar este extenso romance com mais de 600 páginas, mas a obra parece concluída, pois o arco entre o adolescente à descoberta, o jovem iniciante e o adulto a amadurecer está montado. A escrita é das que mais admiro em termos de estilo clássico escorreito na literatura portuguesa do século XX, mas foi o mergulho na divulgação explícita e praticamente sem tabus da vida sexual da burguesia, e não só, e de muitos vícios neste campo que me deram um murro muito forte. Esta surge como elemento de reflexão das relações humanas em sociedade onde se vive uma realidade pública e outra privada de um modo concertado e acomodado mas que tece uma teia que une a sociedade.
Apesar de não ser pornográfico, existem pormenores e descrições de atos sexuais, prostituição masculina e feminina, homossexualidade e reconhecimento do direito de praticar livremente a vida íntima que se encontra amordaçada pela moral pública que servem de ponte para um tratamento filosófico destas questões, concorde-se ou não com o escritor, que dá um passo muito mais em frente do que deu Proust na sua obra. Aliás várias vezes pareceu-me que este influenciou muito Sena.
A verdade é que gostei do enredo, tal não impede que me tenha sentido por vezes chocado e incomodado, o que não me aconteceu com Proust. Não se trata de uma obra banal, mas sim de um tratado profundo das relações humanas onde o sexo está presente de forma central. A escrita é soberba, mas só recomendo o romance a quem esteja preparado para ler com uma mente aberta de que em literatura não deve haver censura, independentemente de se concordar ou não com as ideias defendidas na obra de ficção.
2 comentários:
não conheço. beijos, pedrita
Este romance posso ter prurido em recomendar, mas o escritor ao nível da sua poesia e os seus contos contos vale a pena conhecer.
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