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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

"A Lebre de Olhos de Âmbar" de Edmund de Waal


O arranque das leituras do ano 2020 coincidiu com uma excelente obra, uma das que mais gostei nos últimos anos. "A lebre de olhos de âmbar" do artista plástico inglês de ascendência holandesa e judaica Edmund Waal, mas não é um romance, nem ficção, é sim a história da família judia Ephrussi desde o início do século XIX de que o autor descende, com base na sua investigação e da sua relação com uma coleção de pequenos objetos japoneses que atravessou várias gerações e chegou até ele.
Edmund é um escultor oleiro que ganhou uma bolsa para Tóquio para desenvolver o intercâmbio cultural e linguístico entre a Inglaterra e o Japão. Na sua estada neste País, onde residia um seu tio-avô, entra em contacto com uma coleção de família de pequenos utensílios nipónicos antigos, feitos para prender objetos aos quimonos, artisticamente esculpidos e denominados netsuke, de que depois se torna herdeiro descrevendo vários deste conjunto de 264 peças. O fascínio dos netsuke leva-o a tentar saber como chegaram até aos seus antepassados, atravessarem gerações e sobreviverem a duas guerras mundiais e perseguições.
A história começa como o seu tetravô, um judeu polaco no interior da Ucrânia, criou uma empresa em Odessa, enriqueceu, colocou os seus filhos em Paris e Viena para ampliar os negócios e estes construíram um dos maiores impérios financeiros na Europa, grandes palácios, integraram-se na elite austríaca e francesa, tornaram-se mecenas, colecionaram obras de arte e conviveram com grandes artistas e pensadores deste Continente: Renoir, Monet, Pissaro, Moreau, Rilke, Proust, Mahler, etc. Membros serviram de modelo a grandes personagens da literatura e a quadros impressionistas, enfrentaram o preconceito a judeus, viram o seu esplendor e riqueza devassado pelos progroms, queda do império Austro-húngaro e ocupação de França pelos nazis. Os que sobreviveram até hoje são cidadãos comuns, dispersos por três continentes mas onde a cultura, a arte e o colecionismo está presente, partilham outros credos religiosos e continuam profissionalmente válidos e ativos.
Neste relato compreendemos o estilo de vida, os defeitos e o glamour da alta sociedade europeia por mais de 100 anos. Veremos como  Charles Ephrusi foi o modelo de Proust para Charles Swann e por quem os netsuke entraram na família em Paris e os enviou para Viena. Saberemos como estes escaparam à Gestapo, passaram por Tóquio e agora estão em Inglaterra em casa de Edmund. Veremos como caiu o império centrado em Vienta, como foi a entrada de Hitler na cidade e a ocupação inicial desta e dos americanos em Tóquio.
Os autor escreve muito bem e narra de uma forma que até os momentos difíceis e de horror estão trespassados por ternura, não faltam reflexões pessoais de Edmund, descrições do que o património da família foi e é hoje e de como era a vida nessas cidades das elites sociais. Como a guerra espoliou e como Estados atuais apagaram as suas culpas. Tudo isto sem nunca o texto se render ao amargo dos lesados devido ao amor de família que atravessa toda a narrativa até se virar para as atuais crianças futuras herdeiras dos netsukes.
Fácil de ler, com várias fotos e uma grande obra escrita já no século XXI que mostra o que foi e é a Europa ao longo dos últimos 200 anos. Uma maravilha que recomendo.
Um netsuke em forma de noz (imagem Wikipédia)

6 comentários:

Pedrita disse...

bom saber que é uma leitura agradável. eu escolhi um livro extenso para começar 2020. com pouco trabalho, achei que seria bom ter uma boa leitura para acompanhar o tempo. beijos, pedrita

Carlos Faria disse...

Eu tenho evitado obras muito extensas nos últimos dois meses, depois dos Cisnes Selvagens.
Este livro, não é apenas agradável, é muito bom no seu conteúdo, é a forma e a informação dada de molde a cultivar com prazer.

Joaquim Ramos disse...

Pois é, comprei os cisnes devido a varias recomendações, mas o tamanho do livro e da letra assustam a sua leitura. Quando acabo um livro, dá-me prazer escolher o próximo, hesitar entre o género, o tamanho, às vezes até faço perdurar a hesitação - maluquices que me dão prazer, porque tenho muito, mas mesmo muito por onde escolher. E depois, leio de quase tudo; romance, romance-historico, romance-filosófico, policial, ensaio, thriller etc...
Quando terminar a Criação do Mundo (vai a meio, porque gosto de ler Torga bem devagar, a saborear cada página) já decidi ler um bem mais pequeno e a escolha recaiu no Novecentos de Alessandro Baricco.
Boas leituras.

Carlos Faria disse...

Joaquim
Nunca li Baricco, mas este de Waal vale bem a pena, é pequeno, excelentemente escrito e dá para perceber não só o universo cultural e social da Europa antes das 2 grandes guerras, como famílias judias constroem os seus impérios e a letra é graúda. Bem senti a barreira a vencer sempre que abria os Cisnes até me decidi enfrentar aquela letrinha.

Maria disse...

O Carlos abriu o ano com chave de ouro. Fui ver quando comprei e li este maravilhoso livro: Maio de 2014. O tempo voa mesmo :)
Deu-me um prazer imenso ler este livro, recordo que na altura pesquisei bastante sobre os netsuke.
Há livros e autores que nos marcam, e este foi um deles.

Bom ano.
🌹

Carlos Faria disse...

Concordo, este é um livro que deixa mesmo boas marcas.